Valores humanos à beira do abismo
Ao analisar alguns indicadores que comparam níveis de ‘confiança’ e ‘ética nos negócios’ entre países, três deles me afetaram em particular.
O primeiro relacionado a ‘ética nos negócios’, baseado em um estudo realizado em 2006 pela Faculdade de Economia do Porto, em Portugal, sobre alunos de 21 países que admitiram ter cometido fraude acadêmica, apontou o Brasil como um dos quatro mais aderentes à prática, onde mais de 80% dos alunos entrevistados admitiu ter colado em provas ou plagiado trabalhos. A reflexão é válida especialmente pelo fato de ser uma cidadã brasileira. Sem avaliar os motivos que levaram à prática e sem entrar no mérito “que atire a primeira pedra quem nunca o fez”, não torna menos incômodo constatar o que já se imaginava a nível tão elevado – partindo do pressuposto que todos os respondentes foram honestos no inquérito. E confesso ser surpreendente, também por uma questão pessoal de origem familiar, ver a Polônia nos top 4 com um índice de 100% nesse indicador. Ou seja, absolutamente todos os entrevistados não se intimidaram em admitir terem cometido fraude acadêmica. De modo geral, o Leste Europeu e a América Latina se destacaram negativamente no indicador – com exceção da Argentina, que implementou algumas iniciativas contra corrupção em seu sistema de ensino. No outro extremo, o positivo, ficaram os países nórdicos, onde menos de 5% dos estudantes da Dinamarca e Suécia admitiram ter copiado ou plagiado na faculdade.
No segundo indicador, os mesmos entrevistados tiveram de escolher dentre as opções “não vejo problema”, “é um problema trivial”, “me preocupa um pouco” e “é um problema sério” quando questionados sobre sua atitude face à prática. O resultado chocou ainda mais. Novamente nos destaques negativos Brasil e Polônia, mais de 50% consideram o problema como trivial e menos 10% consideram o problema como sério. Já na Dinamarca e Suécia, é interessante constatar que mais de 50% não veem a prática como um problema. Uma possível explicação é que, por não terem a prática enraizada à sua cultura, os países nórdicos não conseguem de fato ponderar o peso dos seus efeitos.
Mas deixando a parte pessoal de lado e antes de entrar no terceiro indicador referido no início do texto, vamos entender melhor o que os números destes dois indicadores traduzem, ‘propensão a cópia’ e ‘atitude face à prática’. É muito provável que haja sequelas causadas por práticas que colocam a ética humana em risco. Colar em prova pode parecer uma gota no oceano, mas é um dos primeiros e inofensivos passos que conduzem ao abismo cultural de uma nação, ecoando nos seus setores sociais, políticos e econômicos. O jornal português Diário de Notícias dedicou duas páginas à conclusão do estudo que correlacionou a fraude acadêmica ao nível de corrupção nos 21 países estudados. A reportagem de 18 de Junho de 2006 que traz na manchete “Alunos copiam mais nos países mais corruptos”, destaca que a amostra de mais de sete mil alunos entre homens e mulheres, estudantes de Economia e Administração, estão envolvidos em negócios do futuro e são potencialmente líderes econômicos e políticos, o que impacta diretamente na competitividade das nações. As pesquisadoras do estudo defenderam que as instituições de ensino têm que promover uma educação cívica que induzam a comportamentos éticos a serem replicados, principalmente, no mercado de trabalho.
Infelizmente, ‘ser uma nação de trabalhadores honestos governados por ladrões’, como defendeu o jornalista e político Carlos Lacerda na crise de 1954, não funciona. Seria para nós, cidadãos, reconfortante sentir-nos isentos do sistema corrupto e culpar apenas os que governam. Leandro Karnal, historiador brasileiro e professor da UNICAMP, insiste sistematicamente que “não existe governo corrupto em uma nação ética, e não existe nação corrupta com governo transparente e democrático”. Ele define que a “corrupção é um mal social, coletivo, e não apenas do governo”.
O terceiro indicador, no quesito ‘confiança’, não ameniza a sensação de desconforto. O programa de pesquisa de grande escala European Survey Values apresentou em 1999 um indicador que mediu o nível de confiança interpessoal de 27 países. Diante da questão “most people can be trusted”, os dois países que apresentaram menos de 10% no seu índice de confiança foram Romênia e Turquia – vale lembrar que o Brasil não foi contemplado na pesquisa. Já a Polônia, um dos fortes representantes do Leste Europeu e que apresentou péssimo desempenho nos indicadores sobre ‘ética nos negócios’, ficou abaixo dos 20%. Novamente no outro extremo, ficaram Dinamarca, Suécia e Holanda, que atingiram quase 70% no nível de confiança interpessoal. Ao buscar dados mais recentes que permitissem avaliar o comportamento destes países nos últimos anos, o estudo de 2010-2014 apresentado dessa vez pelo grupo World Values Survey mostrou que Holanda e Suécia se mantiveram no topo, com 66% e 60% no índice de confiança interpessoal, respectivamente – Dinamarca não foi contemplada nesta amostra. Já a Turquia teve uma pequena melhora em relação aos dados de 1999, atingindo 11% no índice, enquanto que a Romênia ainda se manteve abaixo dos 10%. A Polônia também mostrou uma pequena evolução, mas ainda apresentou um baixo índice na sua confiança interpessoal de apenas 22%. O Brasil foi incluído nesta amostra, e mais uma vez constatou-se um resultado negativo: o país ficou abaixo dos países que já tinham os índices mais baixos, com apenas 7% de confiança interpessoal. Em outras palavras, este dado acaba por manifestar um dos reflexos de uma cultura corrompida demonstrada nos dois primeiros indicadores apresentados.
A dramática consequência desses fatos se traduz na situação do cenário político-econômico em que vivemos atualmente. ‘Confiança’ é um elemento fundamental do capital social, fator chave para promover de forma sustentável os bens produzidos por um país e, assim, seu desenvolvimento econômico. A densidade e dinamicidade das interações entre os agendes produtores – governo, empresas, universidades e outras instituições de ensino, laboratórios de P&D, sistema financeiro, entidades de formação, etc. – regem todo o funcionamento e progresso do desenvolvimento econômico, e são diretamente afetados pela confiança. Se esta esfera, a confiança, torna-se frágil, toda a engrenagem de um sistema pode ser comprometida. Como elemento transversal desse sistema, a ‘cultura’ tem seu papel ativo no empreendedorismo, criatividade, prontidão à mudança e propensão ao risco, sendo transmitida à sociedade através dos valores passados de geração a geração. Se os valores fracassam quando colocados em xeque, a cultura é, inevitavelmente, impactada através do efeito dominó.
Não é à toa que na trajetória de uma nação, desde a sua concepção até o seu estabelecimento, o conjunto de valores entre as partes é essencial para a formação da sua cultura. O rompimento de um dos elos da cadeia ‘essência-valores-confiança-cultura-nação’ deixa todo um sistema vulnerável e um futuro à deriva, construído sem a base estrutural necessária para sustentar qualquer trajetória. O triste resultado é o que presenciamos atualmente: nações ingovernáveis e sistemas possivelmente incorrigíveis. Para os mais otimistas, pode ser que ainda haja esperança, mas certamente é preciso para pensar um pouco e dar um passo para trás.
Fernanda Owczarek
André Medeiros é estrategista de negócios para escritórios de advocacia, focando na transferência de boas práticas corporativas para o universo jurídico. Consultor e professor de Inteligência Artificial e Legal Design.
7 aExcelente reflexão Fernanda. Que orgulho de ti.