Vermeer e Banksy. Arte em flashback, arte em flashforward

Vermeer e Banksy. Arte em flashback, arte em flashforward

Conceptualizar nunca foi tarefa fácil. O mar de pensamentos e a multiplicidade de interpretações é tal que a sua fusão se torna ainda mais difícil. Falamos de um conceito instável e localizado no tempo, mas de um conceito em constante apuramento e evolução. Falamos de cultura. Raymond Williams afirma que se trata de  uma das palavras mais complicadas da língua inglesa, porque em "culture" está implícito o conceito de cultivo, de algo que se cultiva e se constrói com o propósito de se colher, de se consumir, de maneiras diferentes consoante o tempo da sua colheita.  Aquilo que colhemos, hoje em dia, é o conjunto de criações do mundo. Portanto talvez seja mais fácil começar por aí.

   Albert Camus diz que sem cultura e a liberdade nela presente, a sociedade, perfeita ou não, trata-se de uma selva e que por isso, qualquer criação autêntica é uma dádiva para o tempo futuro, e dando continuidade ao seu raciocínio, são os criadores e os cientistas que nos permitem evoluir no tempo e a simultaneamente, descodificá-lo, talvez prevê-lo também.

"The Girl with the Pearl Earing" é uma criação de Johannes Vermeer, uma dádiva para Banksy e para o que este artista recreou a partir de uma obra icónica. Walter Benjamin em "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica" diz que "por princípio, uma obra de arte sempre foi reprodutível (...) uma vez que o olho apreende mais depressa que a mão desenha, (...) o que murcha na era da reprodutibilidade da obra de arte é a sua aura", desta maneira encaixa-se aqui a questão de Banksy de actualizar o reproduzido na situação que pretende, jogando exactamente com a "aura", que é também no sentido literal da palavra o elemento principal, da pintura de Vermeer, ou na falta dela, ou melhor ainda, na substituição desta por uma outra que lhe concede um significado completamente diferente.

   Para além das técnicas extraordinárias que usava Vermeer e que fizeram dele um artista de excelência não só na arte flamenca como no mundo, "A Rapariga com o Brinco de Pérola" vingava pela sua figura feminina e pela pureza que transmitia, em diversos jogos de luz e simbolismos. Trata-se de uma leiteira que por sinal possui um chamativo brinco de pérola, brinco que se classifica como a "estranheza" e foco principal da obra, porque na simplicidade do que representa uma leiteira, não se espera o simbolismo subjacente ao brinco de pérola que usa, ao status, ao requinte.

   John B. Thompson em «The Media and Modernity», diz que "o facto de um trabalho original ou autêntico não ser uma reprodução torna-se um aspecto cada vez mais importante; e, ao mesmo tempo que a reprodução de formas simbólicas se torna mais presente/comum, o carácter não-reprodutível do trabalho original torna-se um factor cada vez mais importante na determinação do valor do trabalho no mercado dos bens simbólicos.", é por isto que hoje em dia, anos e anos depois, temos como maiores referências os grandes pintores, ou os grandes filósofos ou músicos, e daqui a muitos muitos anos talvez não teremos da mesma forma presentes os Cristianos Ronaldos, não tirando o mérito ao melhor jogador do mundo no momento, ou as figuras públicas de fama efémera, porque não são estes que conferem à cultura os seus grandes eixos, a sua essência e talvez sejam eles que também nos ajudem a viver numa "selva", mas para que esta "selva" não se multiplique, temos também estas grandes criações, tal como a de Vermeer e a de Banksy, exemplos de duas maneiras diferentes de o exprimir. Entenda-se por isto que se fundem desta maneira, os três factores mais importantes, a cultura, a arte e a sociedade e que a sociedade é tão produto das obras dos seus criadores, como essas obras são produtos da sociedade.

   Inspirada na obra de Vermeer, a "estranheza" desta obra de Banksy está no "alarme", onde o artista aproveita o seu tamanho natural, que sempre existiu naquela parede e a sua forma, e através de stencil redesenha toda a obra de Vermeer, renomeando-a, consoante o seu conceito que se encaixa nos dias de hoje, para "The girl with the Pierced Eardrum". Substitui o significado do brinco, que hoje em dia se transformou em "piercing" de pérola,e que outrora ecoava a palavra status e a ideia de uma pureza requintada na icónica figura feminina da obra da leiteira. Agora nela encontra-se uma "alarmante" caixa de alarme, vincando esta redundância. "Alarmante" porque de determinada forma nos chama a atenção, não só para a obra de arte a que faz referência mas também para esta ideia de que a cultura existe à medida que o tempo passa e que, por muito importante que seja olhar para a arte, cultura e sociedade anteriores, é sempre importante estabelecer uma ponte entre elas e os dias de hoje, e no que se transformou ao longo dessa ponte. E esta substituição de elementos por parte deste "street artist" reflecte também que nos dias de hoje, a preservação de algo é mais importante que a sua própria exibição, factor no qual Banksy ocupa um papel fundamental em trazer a arte de volta aos muitos olhos, ao urbanismo, ao confronto artístico directo com a sociedade num simples muro de rua, muro esse que deixa de ser apenas uma parede e passa a ter uma mensagem, existindo portanto uma constante comunicação com o mundo que pelas ruas deambula e com essa "selva" de que fala Camus.

   Com este feito, Banksy pretende conferir à arte clássica uma lufada de ar fresco mostrando que o que foi antes criado é agora visto com outros olhos e que quer chamar a atenção para os simbolismos que a sociedade acolhe e em como estes se transformam ao longo do tempo. Como diz Paul Valéry em "Pièces sur l'art"- "As nossas belas artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de acção sobre as coisas era insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos meios(...) as ideias e os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo.", que por outras palavras explica o que Banksy fez com Vermeer dando uma metamorfose ao brinco de pérola.

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