Visconti filmou a arte e a beleza em meio à epidemia
Vírus e epidemias, de certa forma, sempre povoaram o cinema, na maioria das vezes compondo o gênero terror – ficção científica. Assim acontece em Contágio, de Steven Soderberg, Extermínio, de Danny Boile, e em Os Doze Macacos, de Terry Gilliam. Outra coisa é Ensaio sobre a Cegueira, do brasileiro Fernando Meirelles, que carrega a sensibilidade do livro de José Saramago. Apenas Luchino Visconti, contudo, pôs um vírus letal como pano de fundo de uma história de voyeurismo e amor platônico. Morte em Veneza, baseada no livro homônimo de Thomas Mann, é uma obra prima do cinema.
A história do músico Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde) passa-se num luxuoso hotel da Veneza do início do Século XX, onde tudo é requinte e arrogância. O Grande Hotel dos Banhos é uma ilha de beleza. Fora dali, as ruas são palco do horror provocado pelo cólera, escuras, semidesertas, adornadas aqui e ali por mendigos moribundos, famílias em fuga e pequenos incêndios.
Visconti usa a música de Mahler para dar vida aos devaneios de Aschenbach em busca da verdadeira beleza da arte. “A criação da beleza e da pureza é um ato espiritual”, diz o personagem. Ele encontra o que procura no jovem Tadzio (Björn Andrésen), adolescente cuja aparência delicada e o olhar enigmático sugerem ambiguidade sexual.
Ele próprio um cardíaco à beira da morte, Aschenbach segue os passos de Tadzio e, graças à perfeição interpretativa de Bogarde, sabemos o que pensa. Seria aquele menino a encarnação da estética da arte? O olhar dúbio de Tadzio, carregado de uma malícia tímida, não simbolizaria o enigma artístico, tão falado mas nunca desvendado?
Luchino Visconti nunca escondeu sua homossexualidade nem sua ligação com o Partido Comunista Italiano. Em sua fase neorrealista, fez filmes como Rocco e seus Irmãos, A Terra Treme e Obsessão, em que narra a tragédia das classes subalternas mediante forte carga dramática. Também trouxe para o cinema obras literárias complexas, como Noites Brancas, de Dostoiévski, e este Morte em Veneza, de Mann.
Em fase posterior, numa espécie de contraplano intelectual, passou a filmar não a realidade dos desventurados, mas a hipocrisia dos afortunados. Não mudou de lado, mas de foco. Assim acontece em Os Deuses Malditos e Violência e Paixão. Para muitos, seu melhor filme é O Leopardo, baseado no livro de Tomasi de Lampedusa. Incontestavelmente, nunca a queda da nobreza e a ascensão da burguesia na Europa do Século XIX foram descritas com tamanha riqueza de detalhes.
Visconti sempre foi exigente quanto à direção de arte. Em Morte em Veneza, a tarefa esteve a cargo de Ferdinando Scarfiotti. Figurinos e ambientações são impecáveis. Não poderia ser diferente num filme em que o tema central é o próprio conceito de beleza, reforçado pelo contraste daquilo que poderíamos chamar de conceito de horror: a epidemia que desterra e mata.