Vivi e continuo lembrando
Na semana passada, escrevi um pequeno tratado das minhas memórias de infância e adolescência. E não é que teve gente que gostou e até teve suas lembranças despertadas também? Que bom, né? Não que a gente deva viver do passado, ele já foi, mas conservar frescos na memória os acontecimentos que fizeram parte da nossa história anterior, pode nos dar combustível para alimentar a caldeira do hoje e gerar fogo e energia para encararmos o futuro sem medo. Me deixou feliz a sensação de saber que muitos de nós viemos de um tempo em que o que nos era mais caro eram a simplicidade, a sinceridade e, por que não, a inocência. Mesmo o mais malandro da minha turma de Catanduva, seria um exemplo de ingenuidade nos dias de hoje. Foi um tempo em que a gente se dava generosamente para nós mesmos. É, a gente curtia o pouco que tinha. Sem dinheiro para ir nos bailes? Não era sócio do clube? E daí? Fazíamos brincadeiras dançantes na nossa casa mesmo, arrastando os móveis da sala para dentro do quarto, ligando a vitrolinha (Sonata) e tocando os discos que os amigos traziam de casa. Os meninos levavam o vinho (Sangue de Boi), a mãe arrumava umas frutas (maçãs e abacaxis), botava tudo num caldeirão grande e, trá-lá-lá, estava pronto o ponche. Quem quisesse tomar algo mais forte, ia na pinga com groselha vitaminada Milani.
As ruas eram decoradas por acácias e umas árvores que davam uns cachinhos de bolinhas verdes, que a gente colhia e saia guerreando com os colegas no caminho da escola. Quase todas as casas tinham muros baixos e jardins com rosinhas e hortênsias; os portões viviam abertos, o que resultava nuns carreirões vez por outra para fugir de cães pouco sociáveis. Em quase todas as ruas havia um grande terrenos baldio, com o que chamávamos de pé de paina, que soltava uns cachos de algodão, bem como a famosa e popular 7 Copas, para nós fornecedora de uns coquinhos de gosto duvidoso, mas que todo moleque comia. Acho que aqui, em Votuporanga, também tinha máquina de arroz, que ficava coalhada de rolinhas que, Deus me perdoe, eram alvos fáceis para nossos estilingues criminosos. O atenuante era que sempre tinha um vizinho que ficava com as pombinhas mortas e, pasmem, as transformava na "mistura" do almoço.
Essas reminiscências são tão tangíveis que ainda sinto aqueles aromas tantos das árvores, o cheiro do capim margoso que virava flechas nas nossas brincadeiras de faroeste, o gosto bom e singular dos bolinhos de chuva, a sensação de liberdade que só experimentou quem correu na chuva e soltou barquinhos de papel na enxurrada. Mas, não me acho privilegiado, daqui uns trinta, quarenta anos, minhas netas também terão doces lembranças deste momento presente. No desfiladeiro das décadas, todos podem encontrar e emanar a essência da singularidade, da ingenuidade, da inocência, esses ingredientes que perfumam a vida. Viver é se misturar com o mundo e com os outros, fugindo das limitações dos círculos fechados, experimentar relações singulares, sempre pronto ao romper e reatar (a gente ficava de mau, mas no outro dia, ia chamar o amigo para brincar de bola na rua). Ter umas dezenas de anos na estante da vida potencializa o tempo distante e nos faz sentir de novo o sabor do reencontro com a gente mesmo e, à medida que o tempo passa, nós apuramos o sentido da existência.