Você faz voluntariado para se sentir bem com seus privilégios?

Ontem, estava caminhando com um amigo na região do Jardins, capital de SP. Na saída do mercado, vimos um homem branco, de meia idade, gritando com 3 crianças negras (moradoras de rua) que pediam mantimentos na entrada do mercado. Não era um escândalo visto de longe, mas um absurdo de perto. Algumas frases literais que ele dizia:

"É por culpa de vocês, que o nosso país não evolui"

"Vocês mentem todo dia que é aniversário de vocês, mas ficam vendendo esses alimentos ali em cima. Vocês não têm vergonha?"

Fiquei paralisado. O racismo, por ser uma violência, pode resultar nesse estado. Meu amigo tomou a dianteira: "Cara, você não está vendo que elas são crianças, o que você está dizendo?". E do alto do seu privilégio branco, a situação degringolou. Ele mudou de tom e não teve pudores em se resumir como o salvador:

"Veja só, meu amigo, deixa eu te explicar. Sou morador daqui, venho nesse mercado sempre. Todos os dias eles estão aqui. Não fazem isso por passarem fome não, sei bem. Sabe o que eu estava fazendo hoje à tarde? Eu passei o domingo todo no asilo. Peguei meu carro, carreguei comida. Faço voluntariado, ajudo no sustento de 30 famílias. Conheço quem passa fome. Inclusive, morei na Europa por seis anos. Lá não tinha esse 'tipo de gente' que faz o Brasil ser como é. Eles são uma vergonha...”

A partir desse momento não escutei mais. Como em uma única fala, aquela pessoa conseguia se mostrar tão arrogante, elitista, classista? Eu disse ‘passe bem com sua branquitude’ e me afastei enquanto ele me mandou à merda e entrou em seu carro. Depois do choque, pensamos:

Do que adianta a pessoa fazer voluntariado somente para o seu próprio ego? E humilhar moradores de rua, destilar raiva contra quem passa fome, colocar culpa sobre os ombros de crianças, agir como o branco salvador. Se você chegou até aqui, busque entender seu lugar no mundo e não apenas "reconheça seus privilégios".

Às pessoas não-negras que lerem isso: ergam suas vozes contra cenas assim no cotidiano, isso sim é ser antirracista. É falar com a pessoa branca que está ao seu lado que ela é escrota. Meu amigo da história (que é branco) agiu. Não deixou passar.

Às pessoas negras que lerem isso: não se sintam culpadas por não conseguirem agir de forma ideal em todas situações de violência racial, não vamos carregar o peso do mundo inteiro em nossas costas mais. Vamos nos apoiar, vamos levar outras para cima, vamos de mãos dadas. Não precisamos ser heróis, nem coitados. Humanos.

Ficamos pensando depois nas crianças, de falar para elas todo o oposto. Imagina como deve ser crescer assim sem afeto? Recebendo esse desprezo solto nas ruas? Elas não estavam mais lá.