Cuidado com o hype

Cuidado com o hype

Evidentemente, o título deste artigo fala com quem acredita no mundo da TI a longo prazo, e não com quem quer embolsar o máximo possível com a mera especulação. Estes eu sei que vão surfar na onda do hype, vão espalhar notícias, artigos, informações pela metade prometendo um futuro maravilhoso graças a alguma revolução tecnológica (só que não), buscando alongar ao máximo o momento em que todos percebem que não era bem assim. O gosto amargo fica tanto para quem investiu seu dinheiro nisso quanto para quem participou, de boa fé, da divulgação das mentiras. Curioso como o tempo entre uma bolha e outra diminui conforme a informação corre mais solta. Será que é porque o assunto fica mais especializado, portanto, apesar de haver mais informação, é difícil pesquisar sobre esses assuntos? Há algumas coisas que indicam o perigo, mas ignoramos esses indícios, talvez porque as promessas são boas demais! Como os seres humanos somos crédulos...

Há pouco tempo, coisa de 2 anos, uma empresa que vendia bebidas (Long Island Iced Tea Corp) resolveu mudar de ramo. Mudou seu nome para Long Blockchain Corp. O valor de suas ações triplicaram da noite para o dia. Vou deixar bem claro: não foi a mudança dos negócios que fez suas ações dispararem; foi a mudança de nome, incluindo uma palavra que, então, era uma dessas buzzwords. Alguns meses depois, a Nasdaq retirou as ações dessa empresa de suas negociações. A empresa havia desistido de comprar máquinas para minerar bitcoins, pois o valor do bitcoin afundou. As ações da empresa despencaram para um patamar inferior ao valor anterior à mudança de nome.

Mas espera, comprar máquinas para minerar bitcoins? Pois é... Blockchain era uma palavra da moda por causa da bolha do bitcoin, e não pelo blockchain em si. A empresa em questão não tinha a menor intenção de trabalhar com blockchain; queria apenas ganhar dinheiro minerando bitcoins. O hype era tão grande que apenas colocar "blockchain" no nome fez pessoas pagarem absurdos para comprar ações, sem pesquisarem qual era a real intenção da empresa para com a tecnologia. Concedo: talvez algumas pessoas até tenham pesquisado, mas trata-se de um assunto muito especializado, e é fácil entender o movimento dessas pessoas considerando que muitos "especialistas" gritavam para investir em bitcoin - e blockchain era, para o grande público, indissociável do bitcoin. Assim, essas pessoas colocaram seu dinheiro lá para vê-lo derreter quando a realidade apareceu: o valor do bitcoin começou a afundar, a empresa desistiu dos planos de mineração, e, quando ficou claro que não havia ali futuro nenhum, suas ações acompanharam o declínio do próprio bitcoin.

A culpa da derrocada do bitcoin ou dessa empresa é do blockchain? Não. Blockchain é uma ferramenta fantástica para seu propósito e provavelmente substituirá qualquer sistema, hoje, cartorial (os próprios cartórios e qualquer outro sistema que necessite de autenticação, como o sistema eleitoral). Mas muita gente perdeu dinheiro porque investiu no nome da moda.

A moda, no momento, é inteligência artificial. Já venho falando há algum tempo, em outros artigos e publicações, sobre o que é inteligência artificial, e que, ao contrário do que se vê por aí, não teremos, tão cedo, um robô conversando de igual para igual com um ser humano. Recentemente ouvi, em uma apresentação, uma pessoa C-level dizendo que decidiu utilizar inteligência artificial em um determinado segmento de seu negócio, da seguinte forma: "vamos utilizar inteligência artificial aqui, ainda não sabemos como funcionaria, mas estamos convictos de que assim conseguiremos melhores resultados". A escolha de uma ferramenta sem sequer sabermos qual é o trabalho a ser realizado é um sinal de que decisões estão sendo tomadas sem racionalidade. Mais espantoso ainda é a convicção de sucesso! Em outras palavras: "não sabemos O QUE usar, não sabemos COMO usar, não sabemos ONDE usar, mas sabemos que vai ser um sucesso!".

Recentemente, uma empresa de investimentos européia cujo foco são startups de inteligência articial fez um relatório bastante esclarecedor, mas cujo conteúdo não é surpreendente para quem está atento ao que é fato e o que é ficção nesse assunto. Nada menos que 40% das empresas que dizem ter inteligência artificial como motor de seus produtos simplesmente não utiliza inteligência artificial. Sem dúvida, nesses 40% há uma miríade de situações: desde ignorantes honestos, pessoas que acreditavam que o que faziam era efetivamente inteligência artificial, até pessoas que sequer estavam preocupados com isso, só queriam embolsar o máximo possível. Mas a coisa não pára aí, porque dentre os demais 60%, há uma grande quantidade (26%) que possui apenas um chatbot. Ou seja, possivelmente a maior parte das empresas analisadas simplesmente ACHA que trabalha com inteligência artificial (e outras mentem deliberadamente sobre isso para obter mais recursos).

Como falei no início do artigo, os indícios de que é necessário mais atenção e cuidado estão espalhados por aí. Basta ver a quantidade de termos ambíguos ou vagos para descrever as tarefas de possíveis IAs substituindo tarefas humanas, como, por exemplo, quando se fala em seu uso na área do Direito, e aí surgem frases como "a IA pode reduzir muito o trabalho repetitivo do advogado". Sendo a função de qualquer automação em qualquer área reduzir trabalho repetitivo, dizer que esse é o resultado esperado para a automação em uma área específica não acrescenta nada à informação que temos sobre o assunto.

O hype vai passar, mas não sem deixar feridos pelo caminho. O gráfico abaixo, o Gartner Hype Cycle (no caso abaixo, focado em chatbots, mas o princípio serve para qualquer tecnologia), mostra a evolução de um hype, e é possível ver que, para o futuro, haverá consolidação e estabilização da tecnologia, mas num nível bastante inferior ao pico da popularidade.

No caso da inteligência artificial, acredito até que o platô da produtividade está, na imagem acima, até muito elevado, em um nível próximo da metade das mais altas expectativas pré-desilusão. Consideremos os seguintes fatos:

Dado o atual estado de entendimento do público que não conhece o assunto em maior profundidade (e aí inclui-se desde pessoas totalmente leigas até CEOs futurólogos), quando finalmente ficar claro que não há nada de místico em uma ferramenta, e que ela excele apenas no domínio de problemas que podem ser resolvidos por esta ferramenta e não por outras mais simples, também ficará claro que muito do que se propõe não faz sentido. Por enquanto, ainda estamos no pico das expectativas infladas e todos querem ter um pedacinho daquilo que é assunto, mesmo sem entender direito do que se trata. Estamos vivendo uma espécie curiosa da Lei de Clarke: qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia. Neste caso, a tecnologia é avançada, mas dentro do conhecimento humano, o que torna a coisa toda esquisita, beirando a crença religiosa.

Assim, a verdade é que a liderança de mercado não estará com quem usa aquilo que é hype de qualquer maneira, e sim naquele que usa a tecnologia onde ela efetivamente traz resultado. Uma determinada tecnologia não pode ser um fim em si mesma. Seu valor está naquilo que ela, como ferramenta, proporciona: ser a forma mais simples de se resolver um determinado tipo de problema. Ser líder, ser verdadeiramente visionário, neste ínterim, é enxergar a forma mais simples de resolver um problema, e na maioria das vezes, inteligência artificial não será esta forma... A palavra é: moderação.

Carla Contini

Superintendent Casualty - Placement Liability and Motor & Market Strategy at Marsh Brasil

5y

Excelente artigo! Transformação digital virou lema do momento para a maioria das empresas, mas falta pesquisa para aprofundamento no tema, que deveria ser na mesma proporção da viralização. A ordem é ter a todo custo, mesmo que não agregue nada!

Fabio dos Santos Romero

Scrum Master | Team Couch | SSM | POPM | B3

5y

Um dos artigos mais sensatos que li nessa rede social!!! Eu fico bastante decepcionado quando eu vejo até grandes empresas vendendo uma "Incrível e inovadora tecnologia" que nada mais é do que uma tecnologia antiga mas em uma nova roupagem, e estou falando de empresas gigantes no mercado. E fazem com que grande parte do público por um pouco de tempo ou até por grande parte de tempo acreditem que realmente é uma inovação. Obrigado pelo post.

Lucas Ambrust

Software Engineer | Tech Lead | Python | C# .Net | Angular

5y

Artigo bem bacana André! Isso me lembra muito a bolsa de valores! Existe esse mesmo efeito quando sai alguma notícia sobre as empresas, igualzinho! Temos que analisar bem a situação, buscar mais informações e não agir completamente pela emoção do momento

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