Da Escuridão à Luz
Após tantos anos e tanto sofrimento, ele seria capaz de encontrar forças para perdoar?
O dia em que David McAllister morreu, senti ao mesmo tempo grande dor e alívio. Chovia em Miami naquela manhã de 1996. Não houve cortejo fúnebre para o velho nem flores ou elogios lacrimosos. Mas não foi por causa do mau tempo que ninguém apareceu para prestar as últimas homenagens. Na morte, McAllister colheu os ressentimentos que semeara a vida toda. Era um ladrão, vigarista e, pior, um homem impelido por uma energia maligna alimentada pela raiva e pelo ódio. Hoje, porém, percebo que poucas coisas me afetaram tanto quanto a morte daquele velho.
A história na verdade começou 22 anos antes, num domingo de sol, em dezembro de 1974.
Um menino de 10 anos acabara de saltar do ônibus escolar perto de casa, no bairro arborizado de Coral Gables, em Miami. Hugh era o nome do meio do garoto e era assim que o pai, advogado, muitas vezes o chamava. Tinha cabelos castanhos e um sorriso aberto.
Naquela tarde, Hugh pensava no Natal, apenas a cinco dias. Só percebeu o homem que se dirigia para ele quando o ouviu:
— Oi, sou um amigo do seu pai — disse o estranho com um sorriso. Naquele tempo não havia grande preocupação no bairro com estranhos, sobretudo um tão bem-vestido e polido como o homem grisalho e de meia-idade parado à frente do menino. Hugh retribuiu o sorriso.
— Vamos dar uma festa para o seu pai — disse o estranho, sempre sorrindo.
— Mas eu tenho algumas dúvidas sobre os presentes que darei a ele. Você pode me ajudar a escolhe-los? Voltaremos logo.
Hugh concordou, ávido por fazer alguma coisa pelo pai. Foram até um carro com reboque, estacionado a duas quadras dali, e entraram. O homem dirigiu-se para o norte e pouco falou quando as ruas da cidade deram lugar a campos abertos. Num trecho distante, parou.
— Acho que pegamos a estrada errada — disse, entregando um mapa a Hugh. — Veja se encontra a rodovia principal.
Enquanto Hugh examinava o mapa, o homem foi até o fundo do reboque. Um momento depois, o menino sentiu uma dor aguda, como uma ferroada de abelha, nas costas. Ao sentir outra, virou-se no banco e encolheu-se, horrorizado. O homem, de olhos frios, segurava um picador de gelo na mão.
Hugh tentou proteger-se mas o homem o puxou para o piso. Golpeou o menino repetidas vezes. Mesmo apavorado, Hugh sentiu que os ferimentos não eram profundos nem sérios, mas provocavam muita dor. O homem virou numa estrada e dirigiu-se para uma região onde havia milhares de jacarés e centenas de crocodilos.
Após um instante, disse:
— Vou deixar você a alguns quilômetros daqui. Depois ligo para o seu pai e digo-lhe para vir buscá-lo.
Rodaram por algum tempo, entraram numa estrada de terra e pararam numa clareira.
— Dê o fora — o homem ordenou.
Aliviado por ver-se livre, Hugh afastou-se um pouco e sentou-se diante de uma moita. Não viu o homem aproximar-se com uma pistola de pequeno calibre. Tampouco sentiu a bala rasgar sua têmpora esquerda.
Durante seis dias o pai e a mãe de Hugh não souberam se o filho estava morto ou vivo. A esperança desfazia-se a cada dia que passava. Ninguém testemunhara o sequestro, e a polícia não tinha pistas. Era como se o filho caçula do casal tivesse desaparecido da face da Terra.
No dia seguinte ao Natal, os pais do menino receberam um telefonema do departamento de polícia de Coral Gables. Hugh fora encontrado sentado numa pedra perto da estrada.
A história do sequestro e sobrevivência de Hugh ganhou as manchetes em Miami. Após jazer inconsciente por quase uma semana, o menino acordara e cambaleara até a estrada, onde um motorista o pegara. A bala, que saíra pela têmpora direita, cortara o nervo ótico esquerdo, deixando-o cego para sempre daquele olho. Mas todos concordaram que fora um milagre ele ter sobrevivido.
Nos dias e semanas seguintes, detetives trabalharam tentando identificar o agressor. Hugh descreveu a raiva que o homem manifestara contra seu pai e deu uma detalhada descrição ao desenhista da polícia, incluindo a tatuagem desbotada no braço. Os detetives fizeram uma lista de suspeitos potenciais. Entre eles havia um enfermeiro contratado pelo pai do menino para cuidar de um tio velho. Recentemente o pai o despedira por beber em serviço. Para os detetives, o atentado fora movido por vingança.
O suspeito possuía um carro com reboque, exatamente como Hugh descrevera, e uma ficha policial que incluía assalto à mão armada, roubo de carro, falsificação e fuga da prisão. Chamava-se David McAllister. Durante semanas, Hugh examinou centenas de fotos, mas talvez por estar traumatizado pelo sequestro não conseguiu identificá-lo como o homem que o agredira. Sem uma identificação, os detetives acharam que não tinham prova suficiente para prendê-lo. Passaram-se meses, anos, e McAllister continuou a andar solto pelas ruas.
Poucas pessoas ficaram mais chocadas com o caso do que o major Chuck Scherer. Além de ter sido o sargento que ajudara na investigação, tinha dois filhos da idade de Hugh. Como os outros investigadores, achava que McAllister era o responsável.
Quando a polícia foi interrogá-lo, McAllister abriu a porta com um sorriso de escárnio.
— Bem — perguntou. — Por que demoraram tanto? Faz duas semanas que estou esperando.
— E negou envolvimento no ataque, deixando Scherer extremamente irritado.
Nos anos seguintes, o major continuou atento a ele. Todos os conhecidos de McAllister o consideravam um alcoólatra mau e desprezível. Ele não tinha amigos, e a família o rejeitava. Scherer consolou-se um pouco pelo fato de a vida ter condenado o sequestrador de Hugh a uma existência solitária e infeliz. Ainda assim, estava decidido a fazer McAllister pagar por seu crime.
Para Hugh, a vida continuou numa espiral descendente. Não se sentia seguro e raras vezes se arriscava a sair só. Quase toda noite, nos três anos seguintes, dormiu aos pés da cama dos pais, com medo de qualquer barulho.
Ao ficar mais velho, o olho cego, meio fechado, o deixava constrangido, e ele encontrava poucos motivos para sorrir, convencido de que jamais levaria uma vida normal. O medo acabou transformando-se em ressentimento por causa da inocência roubada. Apesar do apoio e estímulo dos pais e amigos continuou a viver dominado pela insegurança.
Aos 13 anos, Hugh percebeu que um lugar fora de sua casa oferecia segurança: a igreja do bairro. Frequentando-a, a mensagem cristã de esperança e perdão deixou-o muito impressionado e o tocou profundamente. Desde o ataque, vinha procurando uma maneira de enfrentar o medo e a raiva. Encontrou-a por fim ali.
Uma noite, persuadido por vários amigos que conhecera na igreja, contou-lhes sua história. Falou com hesitação, sem saber como iriam reagir. Ao acabar, descobriu, surpreso, que todos lhe davam apoio e ânimo. Com lágrimas nos olhos, percebeu pela primeira vez que sua milagrosa sobrevivência podia deixar de ser uma fonte de medo e ódio para torna-se inspiração.
À medida que a fé se aprofundava, os medos foram diminuindo, e Hugh voltou a sorrir. Compreendeu que partilhar aquela fé era o que desejava fazer de sua vida. Formou-se no ginásio e frequentou a Universidade Mercer em Macon, na Geórgia, onde estudou cristianismo e psicologia. Passou para o Seminário Teológico Batista do Sudoeste em Fort Worth, no Texas, e recebeu um diploma de mestrado em religião.
Casaram-se um ano depois e em 1994 nasceu Amanda, primeira de três filhos.
— Eu sabia que Deus tinha um motivo para me manter vivo — Hugh disse a Leslie, segurando a pequena Amanda nos braços. — Agora sei qual é.
Após mudar-se de volta para Miami em 1995, Hugh foi trabalhar como diretor de ministérios juvenis em sua igreja em Coral Gables. Os alunos muitas vezes lhe perguntavam sobre o olho, e contar a história era uma forma de aproximação. Quando ficavam sabendo o que seu orientador passara, logo se abriam com ele.
Em 1996, Hugh tinha 32 anos e estava profundamente satisfeito com a sua vida. Fizera as pazes, do melhor modo possível, com os horrores do passado, mas uma pergunta ainda o obcecava: o que faria se algum dia se visse cara a cara com o homem que tentara matá-lo. A pergunta surgia inevitavelmente sempre que contava a história e ele respondia:
— Espero ter a força de perdoá-lo. De outra maneira, acabaria vivendo num mundo de raiva e vingança, exatamente como ele.
No início de 1996, Hugh ficou surpreso ao receber um telefonema do comandante Chuck Scherer. Ele explicou que, conhecendo seu interesse pelo caso, um colega visitara havia pouco um asilo de velhos no norte de Miami. David McAllister era um dos pacientes. Scherer fora de carro até o asilo e falara com ele. Hugh ficou calado, e Scherer acrescentou:
— Você gostaria de ver o homem que tentou matá-lo?
Ideias e emoções confusas correram pela mente de Hugh. Mas ele se ouviu responder:
— Sim.., quero me encontrar com ele.
No dia seguinte chegou ao asilo. Sentiu o estômago contrair-se ao descer o longo corredor até o quarto de McAllister. Jamais se sentira tão nervoso. Seria capaz de apertar a mão do homem que lhe dera um tiro e o deixara como morto? Se não fosse, entraria em contradição com tudo o que ensinara sobre perdão aos alunos.
Ao aproximar-se do quarto, temeu que a visão de McAllister abrisse uma comporta de emoções. Ficou parado diante da porta e inspirou fundo. Foi preciso muita força e coragem para entrar.
Não estava preparado para o que viu. Deitado na cama achava-se não o monstro de seus pesadelos, mas um velho decrépito de 77 anos, pesando menos de 35 quilos. O rosto era uma máscara de pele grudada nos ossos. Os olhos, cegos pelo glaucoma, fitavam o teto.
Hugh apresentou-se e enquanto falava notou que os olhos do homem soltavam faíscas do velho atrevimento.
— Eu não sei nada disso — ele falou quando lhe lembraram a sua confissão a Scherer.
Após vários minutos, alguma coisa pareceu ceder dentro do velho. Ficou calado um longo tempo e o rosto suavizou-se. Começou a tremer e depois e chorar. Estendeu a frágil mão, e Hugh tomou-a na sua.
— Sinto muito — disse por fim McAllister. — Sinto muitíssimo.
Hugh olhava-o com ternura e pena.
— Eu quero que você saiba que fui abençoado — disse. — O que você fez não acabou com o sentido de minha vida. Foi o começo.
McAllister apertou a mão dele.
— Fico muito feliz — sussurrou.
Durante as três semanas seguintes, Hugh visitou-o quase todos os dias. O velho iluminava-se visivelmente quando ouvia sua voz. Embora estivesse quase fraco demais para falar, contou-lhe trechos de sua vida. Criado sem pai, passara grande parte da infância em abrigos juvenis e já bebia muito quando se tornou adolescente. Fora rejeitado pela família e não tinha amigos. Ficou claro para Hugh que ele lamentava sua vida cheia de raiva e vergonha.
McAllister explicou que sempre considerara Deus uma coisa em que só “os otários acreditavam”. Mas, com a ajuda de Hugh, começou a rezar.
Numa tarde de outono, no asilo, Hugh falou suavemente para o velho:
— Eu quero ir para o céu e desejo encontrar você lá. Quero que nossa amizade continue.
Naquela noite, McAllister morreu dormindo.
Mesmo hoje é difícil para mim descer a Avenida Aledo sem me lembrar daquela tarde há tantos anos quando David McAllister saiu das sombras.
A parte de mim que se sente aliviada por ele ter finalmente partido é a que encontra em sua morte a garantia de que o monstro jamais retornará. Mas foi um homem diferente o que surgiu nos últimos dias de vida de McAllister. Aquele homem sofrera muito mais do que a maioria de nós jamais imaginaria. Talvez, num certo sentido, tenha pago pelo sofrimento que causou.
Por mais estranho que pareça, aquele velho fez mais por mim do que ele algum dia poderia imaginar. Em sua escuridão, encontrei uma luz que ainda me guia. O perdão a David McAllister me deu uma força que eu terei para sempre. Você sabe, Hugh é o meu nome do meio. O menino era eu.
É muito mais fácil escrever sobre o perdão do que colocá-lo em prática. Trata-se de uma escolha — uma escolha difícil. Em geral, transmite-se o perdão pelos lábios, mas, se ele não vier do coração, de pouco vale. Por motivos compreensíveis, Christopher levou anos para poder sinceramente perdoar o homem que aterrorizou sua juventude. Mas quando chegou o momento descobriu o poder libertador e curativo do perdão, não apenas para o malfeitor, mas também para a vítima. O perdão é o bálsamo para a alma que sofre com a raiva e o ressentimento.
Autoria: Vijaya Lakshmi Pandit
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2wGrande lição de vida