A difícil adoção de ônibus à tração elétrica
O Brasil é signatário dos principais protocolos e acordos internacionais – Protocolo de Kioto, Acordo de Paris, Pacto de Glasgow, entre outros – e tem tido destacada participação nas conferências mundiais que tratam das questões climáticas. Em cumprimento aos tratados assinados, desde a década de 1990, várias iniciativas têm sido adotadas para reduzir as emissões de poluentes e mitigar os efeitos da poluição ambiental, nos mais diferentes campos da atividade econômica.
De acordo com recente documento publicado pela Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP, intitulado Rotas Tecnológicas de Descarbonização do Transporte Coletivo no Brasil, “comparados ao total das emissões brutas de GEE do País (2,4 GtCO2eq), os ônibus urbanos a diesel – incluídos os rodoviários e fretamento – contribuem com (22 MtCO2eq), pouco menos de 1% das emissões nacionais. Trata-se de uma pequena fração das emissões totais nacionais de GEE...”
No entanto, na área da poluição veicular, em especial, o processo de mudança da matriz energética dos ônibus urbanos e de caráter urbano tem chamado a atenção, principalmente, devido à concentração das emissões nas áreas citadinas.
Em que pese algumas iniciativas pontuais que foram tomadas em várias cidades brasileiras, desde a década de 1990, foi com a promulgação da Lei Municipal Nº 16.802, de 18 de janeiro de 2018, que se iniciou uma série de medidas no sentido de reduzir as emissões provocadas pela circulação dos ônibus e dos caminhões na cidade de São Paulo. Além de outras exigências, a referida lei estabeleceu que, num prazo de dez anos, deverá haver uma redução mínima de 50% e, num prazo máximo de vinte anos, uma redução de 100% das emissões totais de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil, na cidade de São Paulo.
A nova lei estabelece, ainda, que deverá haver uma redução mínima de 90% das emissões de material particulado (MP) e de 80% das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx), até o ano de 2028. Deverá ocorrer, também, uma redução mínima de 95%, tanto nas emissões de material particulado (MP) como de óxidos de nitrogênio (NOx), até o ano de 2038.
Assim, por força de uma legislação aplicável na cidade de São Paulo, a mudança do perfil tecnológico da frota nacional começou a ganhar corpo e os diferentes rumos da descarbonização começaram a ser definidos.
Atualmente, as principais rotas existentes, que tem por objetivo a não utilização de combustíveis de origem fóssil, consideram os ônibus equipados com motores elétricos, utilizando energia proveniente de baterias ou de células de hidrogênio, bem como ônibus equipados com motores a combustão, que usam o gás biometano ou algum tipo de biocombustível (HVO ou diesel verde) como fonte de energia. Cada uma dessas rotas encontra-se num diferente estágio de desenvolvimento tecnológico e nem todas estão prontas para uso universal e plena comercialização. Além disso, todas essas tecnologias alternativas demandam altos investimentos – em infraestrutura e material rodante – e apresentam custos operacionais mais altos, quando comparadas ao ônibus diesel convencional, de porte semelhante.
Como o ônibus a tração elétrica, com energia proveniente de baterias, no momento, é a solução mais viável, algumas cidades estão iniciando seus processos de substituição da frota diesel por veículos menos poluentes. Vários municípios estão testando ônibus a tração elétrica, de diferentes fabricantes; mas, os únicos que já estão operando, com uma frota de mais de 5 veículos são: São Paulo, Salvador, São José dos Campos, Cascavel, Curitiba, Diadema e Brasília. Consequentemente, todas elas estão lidando com os problemas próprios de uma mudança tecnológica implantada sem muito planejamento e sem a elaboração de um projeto, que considere as questões técnicas, econômico-financeiras, operacionais e, principalmente, de infraestrutura viária e de infraestrutura elétrica, para a carga e recarga das baterias dos veículos.
Com relação à infraestrutura viária, não é razoável utilizar um veículo a tração elétrica, que custa, no mínimo, três vezes mais do que um ônibus diesel, de igual porte, para deixá-lo parado num congestionamento ou aguardando a abertura dos semáforos, nos cruzamentos. Esse tipo de veículo é ideal para a operação em corredores exclusivos ou sistemas BRT’s, para a otimização do seu Custo Total de Propriedade – TCO e máximo aproveitamento da sua capacidade de transporte.
Por outro lado, para a operação de uma frota de ônibus elétricos é imprescindível um perfeito entendimento e entrosamento entre o poder concedente, as empresas operadoras, a concessionária de energia e, principalmente, com os órgãos de financiamento, para a compra de veículos e de equipamentos, bem como para a adaptação da infraestrutura viária e de abastecimento de energia elétrica.
A cidade de São Paulo é um bom exemplo de como a falta de planejamento detalhado e integrado pode atrapalhar a adoção de um sistema de ônibus à tração elétrica. A municipalidade proibiu, em outubro de 2022, a compra de novos ônibus a diesel, para a renovação da frota, conforme previsto no contrato de concessão, e obrigou as empresas concessionárias a adquirirem somente ônibus elétricos, num total de 2.600 veículos, até o final deste ano. Infelizmente, os entendimentos necessários para que a concessionária responsável pela distribuição de energia na cidade estabelecesse a infraestrutura elétrica para a carga e recarga dos ônibus não lograram sucesso. As empresas operadoras, depois de uma longa e complexa negociação, para viabilizar os investimentos necessários à aquisição dos veículos, estão recebendo os ônibus encomendados e nem iniciaram a instalação dos carregadores, para carga e recarga dos ônibus, e a adaptação necessária de suas garagens.
Embora não se tenha uma política nacional com vistas a orientar as ações a serem empreendidas e o papel dos vários agentes, públicos e privados, envolvidos no processo de descarbonização da frota nacional, o Governo Federal lançou, recentemente, um programa denominado PAC–Renovação da Frota, que contemplou 67 cidades brasileiras, com financiamento direto às prefeituras e governos estaduais, para a aquisição de 2.296 novos ônibus elétricos. Nesse programa, há cidades que poderão adquirir uma frota de 256 veículos e outras que deverão receber recursos financeiros para a compra de apenas 1 ou 2 ônibus elétricos.
Para o aprimoramento do referido programa de renovação da frota, com ônibus elétricos, e observando as experiências em curso – exitosas ou malsucedidas – a Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU lançou um documento, intitulado Considerações sobre a Renovação e Modernização Tecnológica da Frota de Ônibus Urbano, dirigido às autoridades do Governo Federal, com propostas e sugestões para mitigar os desacertos e assegurar o sucesso dos projetos de substituição dos ônibus a diesel por veículos menos poluentes.
A primeira sugestão apresentada diz respeito à imprescindível necessidade da elaboração de um plano nacional de renovação e de descarbonização da frota de ônibus urbano e de caráter urbano. O propósito é garantir uma transição gradual da matriz energética, considerando a capacidade e o estágio de maturidade da indústria brasileira e levando em conta a utilização do motor diesel “Euro 6” e as novas tecnologias disponíveis ou em desenvolvimento, tais como: ônibus movido a biometano, ônibus utilizando o diesel verde (HVO) e ônibus elétrico com energia proveniente de células de hidrogênio, entre outros.
Vale ressaltar que a utilização do motor a diesel “Euro 5”, amplamente adotada nas cidades brasileiras, desde 2012, gerou redução de emissões locais bastante significativas. O inventário anual das emissões na Região Metropolitana do Rio de Janeiro revelou diminuições de 89,3% de material particulado (MP), 80,5% de monóxido de carbono (CO), 83,1% de óxido nitroso (N2O) e 90,5% de hidrocarbonetos (CxHy), no período compreendido entre 2011 e 2023.
Por outro lado, é preciso, concomitantemente, ampliar as possibilidades de acesso das empresas operadoras às linhas de crédito dos agentes financeiros, em especial do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES e da Caixa Econômica Federal – CEF. É preciso considerar, também, a possibilidade explicita de investimentos na aquisição de frota, compartilhados entre o poder público, responsável pela gestão dos serviços, e a empresa operadora, encarregada da prestação dos serviços de transporte público coletivo.
Além de contar com a participação do investimento privado, esse modelo permite a manutenção das frotas sob a propriedade das empresas operadoras, preservando as experiências e as vantagens na simplificação do processo de compra dos veículos; na garantia de manutenção adequada da frota, durante a sua vida útil; nos ajustes contratuais, em caso da necessidade de troca das baterias; e na facilitação da venda das sucatas, ao final da vida útil dos veículos.
Para a operação de uma rede de transporte, com frota superior a dez ônibus elétricos, é imperativa a elaboração de um Plano Operacional, com a definição da tipologia e porte dos veículos, identificação dos corredores ou das linhas, estimativa da quilometragem diária, determinação da autonomia dos ônibus, localização dos pontos de recarga de baterias e especificação dos modelos de carregadores de baterias.
É de suma importância a avaliação da disponibilidade do fornecimento de energia elétrica, inclusive em alta tensão, quando necessário, nos locais de carga e recarga definidos no Plano Operacional. É preciso assegurar o compromisso da concessionária de distribuição de energia em assumir a responsabilidade pelo fornecimento da quantidade de energia demandada, nos prazos ajustados e de acordo com os investimentos previstos. O custo de adaptação da infraestrutura elétrica, para a carga e recarga das baterias, pode chegar a 20% do custo total do projeto, dependendo do tamanho da frota.
No que se refere aos veículos, propriamente ditos, é preciso definir a responsabilidade pelo descarte das baterias, quando substituídas no decorrer da vida útil do ônibus, garantindo um procedimento de acordo com as normas e restrições ambientais, bem como as garantias, pelos fabricantes, da disponibilidade de peças de reposição, ao longo da vida útil dos veículos e dos equipamentos de recarga das baterias. É preciso considerar, também, o fornecimento de assistência técnica adequada e compatível com as exigências da utilização da nova tecnologia.
Não menos importante é buscar soluções para os investimentos simultâneos na infraestrutura viária, principalmente, para a priorização do transporte público coletivo. Esses recursos são fundamentais quando se planeja a aquisição de frotas de ônibus elétricos, em função do alto valor agregado desses veículos, o que exige infraestrutura adequada para melhorar o desempenho e a produtividade dos sistemas de transportes eletrificados.
A mudança do perfil tecnológico da frota nacional de ônibus urbano ou de caráter urbano, nos médio e longo prazos, terá mais ou menos sucesso, dependendo do nível do planejamento adotado, para orientar as decisões inerentes ao desenvolvimento de cada projeto. Estabelecer um sistema de ônibus à tração elétrica é muito mais complexo do que adquirir uma frota de ônibus diesel e colocá-la em operação.
____________________________________________________________________________________________________Artigo publicado nas Revistas Technibus, AutoBus e NTUrbano, nos sites da Associação Nacional dos Transportes Públicos - ANTP, do Sindicato dos Engenheiros do Estado de São Paulo - SEESP e da Radioonibus, no blog da União Internacional de Transportes Públicos - UITP, bem como no portal do Instituto de Engenharia. Uma versão resumida do artigo foi publicada na plataforma "Bússola", da Revista Exame, edição de 29/08/24.
Consultor de Empresas
4moParabéns Francisco, artigo muito bom e bastante esclarecedor.
Doutoranda e Mestra em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente, Arquiteta e Urbanista e Professora
4moPerfeita colocação, vai como referência para minha tese.
Consultant indépendant chez Pierre DEBANO
5moi read a translation in French of your article. I am surprised by the fact you never name the trolleybus, the electric bus with a lot of pros and very few cons. See the study for San Francisco. The trolleybus IMC is a good solution, even for cities today without overhead lines
Técnico de Transporte na CPTM - Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
5moEu ainda insisto que os trólebus podem e devem fazer parte de um programa de eletrificação da frota. A cidade de São Paulo chegou a possuir mais de 500 veículos em seu auge. Hoje possui apenas 201. No passado eles rodavam em alguns corredores. Hoje ficaram apenas no Paes de Barros. Com o advento dos trólebus com baterias, alguns dos problemas foram superados. No BRT ABC, serão utilizados o e-Trol, trólebus modernos com baterias de longa autonomia, tanto é que só haverá eletrificação por rede aérea em apenas um dos sentidos. A maior vantagem é dispensa de infraestrutura nas garagens para a recarga das baterias. São Paulo poderia apostar nos trólebus novamente, levando-os a todos os corredores exclusivos. Eu sempre digo que há espaço para todas as tecnologias. Não podemos ficar refém de apenas uma delas. A Cidade do México está ampliando o sistema trólebus de forma brilhante. São Paulo poderia repensar o destino que quer dar aos trólebus.
Assistente Técnico Executivo III01014001 na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
5moGostei bastante da abordagem, e penso que temos que nos libertar do vício de pensar em soluções únicas para problemas múltiplos! Gosto de usar como exemplo a nossa São Paulo, inclusive pela multiplicidade de questões a resolver no ambito do transporte metropolitano. O sistema trolleybus, por exemplo, opera muito bem em corredores próprios e funciona muito mal quando tem que fazer curvas de 90º nas esquinas em boa parte da cidade, quando poderia ser substituído com vantagem, por exemplo, por ônibus hibridos. Os nossos corredores de ônibus deveriam sofrer um replanejamento que privilegiasse ao máximo, corredores com um única origem e destino (como nas linhas de trem e metrô) para que operassem melhor (o que ocorre hoje é que, nos horarios de pico, justamente quando deveriam oferecer maior velocidade média e, consequentemente, mais lugares, eles se tornam mais lentos!..