FILHOS DA ARTE LITERÁRIA

Carlos Delano Rebouças

É um senhor que tem nome e uma bela história de vida a qual pode falar muito bem por ele. Chama-se José Hipólito, um solitário morador de um bairro do subúrbio carioca, daqueles que ainda têm cara de um lugar tranquilo para se viver, onde todos se conhecem e se respeitam, e se pode jogar uma conversa fora num batente de calçada ou, quem sabe, jogar dominó ou dama à sombra das preservadas árvores das praças da comunidade. Seu Hipólito, pois assim é chamado por todos, também é conhecido como o homem da casa abandonada da rua de igreja. Sim, todos do bairro, sem exceção, quando perguntados, atrelam a ele as características de sua casa, onde mora sozinho, há décadas, desde a morte dos pais. 

Mas quanto a sua fala da bela história de vida, é sobre o que se conhece desse ainda misterioso homem fez enquanto professor de literatura brasileira. Quando atuante profissionalmente, muito fez pelo desenvolvimento literário na pequena e sucateada escola do bairro. Sozinho e sem medir esforços, muito lutou para que não apenas seus alunos, mas também os de outros professores pudessem ter acesso a uma educação de qualidade, sobretudo ao prazer pela leitura, tão pouco comum em nossa sociedade. Trabalhou intensamente na formação de leitores até que chegasse a sua aposentadoria.

A aposentadoria não foi bem-vinda àquele dedicado professor. Hipólito relutou bastante para retardar esse inaceitável momento, tentando, incansavelmente, continuar em sua carreira por entender que um afastamento da escola seria o fim de um trabalho em prol da educação. Contudo, infelizmente aconteceu. O velho professor sai de cena e vê todo um belo trabalho feito em três décadas sem perspectiva alguma de continuidade, deixando centenas de crianças da escola órfãs do desenvolvimento da leitura.

Durante muitos anos após a aposentadoria, ninguém mais via o Professor Hipólito. A única certeza era a de que naquela antiga casa ele ainda vivia. Quase não saía, apenas em horários de pouco movimento nas ruas, sem muito chamar a atenção da comunidade. Muitos até pensavam que nem mais residia ali. Fechou-se para a vida, para o mundo, e escolheu a sua casa como um refúgio solitário, pois acreditava que não poderia mais ser útil à sociedade aquele envolvente professor.

Até que um dia as cerradas portas da velha casa se abriram. Olhares curiosos suscitaram perguntas diversas em busca de respostas que saciassem a todos: Cadê ele?! Cadê ele?! E o homem aparecia. Ufa! Um alívio tomou conta de todos, até mesmo daqueles que sequer o conheceram, visto que o bairro ganhou novos moradores durante o seu tempo de clausura. Todos queriam saber como ele estava.

Aparentemente passou uma impressão de estar bem. Enquanto alguns esperavam que daquela ainda velha e abandonada casa saísse um homem das cavernas, para o espanto de muitos saiu uma pessoa rejuvenescida esteticamente. De barba feita e irretocável, pois cabelos não os tinha mais; bem vestido e perfumado; de roupas cuidadosamente lavadas e... com uma pequena e enigmática caixa na mão, sobre a qual todos passaram dias, meses e anos a perguntar o que significaria. Passou a ser parte integrante daquele caricato homem que se envolvia em mistérios nas suas andanças pelo bairro, sempre com uma caixinha nas mãos sem resposta para dar.

Também sob mistérios um novo fato passou a ser percebido no bairro: belos textos passaram a ser deixados e afixados nos mais diferentes e inusitados locais à espera de leitores. Paradas de ônibus, portas de comércios, portões de escolas, bancos de praças eram os preferidos pelo autor misterioso. Quando menos se esperava, surgia a oportunidade de ler um bom texto, de apreciar uma bela poesia, de refletir sobre a vida por meio da palavra lida e percebida em toda a sua plenitude. Surgia também um questionamento comum entre todos os moradores do bairro: “De quem seria a autoria dos textos?”

Sem demora passaram a acreditar que poderia estar partindo do velho e renovado professor. Acreditavam que ele se reservou, nos últimos anos, a produzir textos para que um dia viesse a mostrá-los para o mundo. Esse foi o pensamento geral e que pareceria não existe mais dúvidas.

Puro engano! A autoria não era de Hipólito, para a surpresa de quase todos do bairro. Quase, porque alguns sabiam quem eram os autores dos textos espalhados pelo bairro, escritos que passaram a fazer parte da rotina de um pacato bairro do subúrbio carioca, que tinha a sua rotina quebrada por outra bastante intrigante e inesperada. Na verdade, os autores desses diversos textos, nos mais diferentes gêneros, eram os ex-alunos do professor José Hipólito, que em nenhum momento se deixaram distanciar do prazer de estudar a literatura, e resolveram produzir textos e catalogá-los na esperança de que um dia pudessem ser lidos por todos no bairro, até mesmo pelo grande inspirador de todos eles, o grande mestre José Hipólito.

Mantiveram em segredo esse projeto cultural até que uma das lideranças enviou um e-mail para o professor falando sobre a pretensão dos alunos com a produção desses textos. Isso fez com que o enclausurado José Hipólito se remotivasse para a vida, deixasse de lado a vida que escolhera para viver e abrisse as portas de seu mundo. Passou a sair de casa diariamente com uma caixinha na mão, recolhendo, sem ninguém perceber e em segredo, no fim de cada dia, todos os textos depois de lidos por muitos dos moradores do bairro, levando-os para casa como se fossem seus e de mais ninguém.

Tempos depois nasceu uma grande obra literária. Uma coletânea de textos cuja autoria era dos alunos, de todos eles, sob a influência de quem um dia os levou a desenvolver o amor pela literatura, pela leitura, pela educação, e que os incentivou a tão emblemática atitude como resposta a toda semeadura feita pelo professor José Hipólito. Nascia uma obra de reconhecimento nacional que ganhou nome: Filhos da Arte Literária.  

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