TIMES

Por Juscelino Filho — Fortaleza, CE


Após doação de rim, torcedoras do Ceará vivem história de amor

Após doação de rim, torcedoras do Ceará vivem história de amor

A tensão antes de um procedimento cirúrgico, a ansiedade para saber se tudo daria certo, o clima pesado de um hospital, o movimento frenético do lado de fora do quarto... Nada colaborava para que Vanessa e Priscila se acalmassem naquele dia. Mas elas tinham uma à outra. Naquele 8 de março de 2022, então, passaram a compartilhar bem mais do que um relacionamento juntas. Vanessa doou um dos seus rins para Priscila, e o laço que as une agora transcende até mesmo o amor entre elas.

- A primeira coisa que eu fiz quando acordei do transplante foi perguntar se a Priscila estava bem - lembra Vanessa.

E sim, estava. O transplante foi um sucesso e, depois de poucos dias, Priscila também voltou para casa e a família voltou a ficar completa - e com saúde. Mas a história das duas começa bem antes do que elas hoje chamam de dia do renascimento.

Torcedoras do Ceará: Vanessa (direita) doou um rim para Priscila (esquerda) — Foto: Juscelino Filho

O amor

Vanessa Sousa tem 35 anos e trabalha no setor de compras do Ceará, clube do coração. Ela e Priscila, inclusive, foram protagonistas em uma das histórias contadas pelo Alvinegro de Porangabuçu nas ações de aniversário de 110 anos do clube. A torcedora conheceu a companheira em um antigo trabalho, em meados de 2018. De lá para cá, a vida de ambas se entrelaçou. 

- Em 2019, a Priscila estava em processo de separação do casamento anterior. E ela tem três filhas desse casamento. Como a gente era muito amiga, eu me coloquei à disposição para ajudar ficando em casa com as filhas dela. E aí não foi difícil me apaixonar pelas três, tanto que eu virei a tia Van muito rápido - conta Vanessa.

- Eu ficava muito tempo fora de casa, chegava a três dias de plantão. Até que um dia uma das gêmeas perguntou: "Mamãe, e se a gente chamasse a tia Van de mamãe também, você ficaria com raiva? Porque ela trata a gente como filha também, e esse é o sentimento que a gente tem" - relembra Priscila.

Vanessa, Priscila e as três filhas, Maria Alice, Maria Luiza e Maria Laura — Foto: Arquivo Pessoal

A convivência acabou despertando um sentimento que as uniu. Desde 2019, dividem o mesmo teto com as filhas Maria Alice e Maria Luiza, de 13 anos, e a mais nova, Maria Laura, de dez. Não à toa, tornaram-se "Mamãe 1" e "Mamãe 2", apelidos carinhosos dados pelas próprias filhas.

- Eu me descobri bissexual depois dos 34 anos. Eu me apaixonei por uma mulher quando eu tinha 34 anos! Mas logo que eu percebi que era amor de verdade. A gente vê que é amor, e a gente se vê mais madura para viver esse amor - explica Priscila.

- Eu me vi bissexual depois que a minha mãe faleceu. Eu tinha 27 anos. Foi bem estranho e confuso, você ver que tudo o que pensou era diferente até sentir de fato quem você é e como o amor é de verdade. Quando eu me permiti, foi como tirar um peso das minhas costas. Quando eu conheci a Priscila, eu me apaixonei pelo ser humano, pela força dela, pela fé dela. Eu digo que me apaixonar por ela foi a coisa mais fácil desse mundo - completa Vanessa.

A cirurgia

Ana Priscila Costa é enfermeira, tem 39 anos e convive com uma doença chamada lúpus há 23 anos. O lúpus eritematoso sistêmico é uma doença autoimune, inflamatória, crônica e com envolvimento multissistêmico que pode se manifestar nos rins. Em 2022, a enfermeira perdeu a função total dos rins e precisou entrar na fila dos transplantes.

A hemodiálise lhe custava quatro horas por dia, três vezes na semana. Foi aí que Vanessa se ofereceu para ser doadora. Os testes foram feitos, e a compatibilidade veio do amor de uma vida.

Priscila e Vanessa no dia do transplante em 2022 — Foto: Arquivo Pessoal

- A Vanessa sempre quis doar. Quando a gente era amiga e ainda fazia tratamento, eu ia direto trabalhar do hospital e ela como amiga dizia que um dia ia doar o rim dela para mim. E aí aconteceu - relembra Priscila com um sorriso no rosto. 

A hemodiálise durou seis meses. No dia da cirurgia, as duas dividiram a sala de espera para a cirurgia. Vanessa, a doadora, foi primeiro. Pouco tempo depois, Priscila, a receptora, seguiu para a sala de cirurgia. Simbolicamente, o procedimento acabou acontecendo no dia 8 de março de 2022, Dia Internacional da Mulher. 

- Um amigo médico acompanhou o procedimento. E quando eu entrei na sala, a primeira coisa que perguntei para ele, antes mesmo de aplicarem a minha anestesia, foi se a Vanessa estava bem, se tinha dado tudo certo - revela Priscila. 

- A primeira coisa que eu fiz quando acordei do transplante foi perguntar se a Priscila estava bem - lembra Vanessa.

O transplante foi um sucesso. E com ele, veio a mudança de hábitos. Ao passo que Priscila explica que o transplante não é uma cura, é uma das opções para tratamento da doença renal, Vanessa conta que as cicatrizes do doador (que mal ficam visíveis) vêm ao lado de uma sensível melhoria da qualidade de vida.

- Eu mudei meus hábitos, perdi 15kg, mudei de vida. Até porque é importante entender que agora eu só tenho um rim e justamente por isso eu não posso sobrecarregá-lo lá na frente. Então só houve mudanças positivas - diz a torcedora do Ceará.  

O respeito

Nesta sexta-feira (28), comemora-se o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+. E num universo masculino como o do futebol, Vanessa (que trabalha no setor de vendas do Ceará, vale lembrar) agradece por nunca ter precisado enfrentar nenhum tipo de preconceito no ambiente de trabalho.

- Não só eu, mas todas as mulheres que trabalham aqui, a gente mantém o respeito e se prepara para certos tipos de situações. Mas eu tenho orgulho em falar que aqui no clube eu nunca tive resistência em relação à minha esposa, nunca tive a necessidade de esconder quem eu era. Sei que essa não é a realidade da maioria, mas eu agradeço bastante por isso - relata.

O respeito, inclusive, é algo passado para as três filhas.

- Tem duas palavras: amor e respeito. A gente ensina para as meninas que elas devem respeitar todos, também se respeitar e amar incondicionalmente. Elas têm que amar alguém que as respeite e que as ame - assegura Priscila.

- A gente preza por uma base forte para que elas não sofram o que muitas pessoas já sofreram. Vai ter muito preconceito lá fora, mas elas já são bem blindadas em relação a isso. Amor não é para ser errado, ser feliz não é errado - encerra Vanessa.

Torcedoras do Ceará: Vanessa (direita) doou um rim para Priscila (esquerda) — Foto: Juscelino Filho

Sobre transplantes no Brasil

Segundo dados do Ministério da Saúde, o órgão mais transplantado entre janeiro e setembro de 2023 foi o rim com 4.514 transplantes. Na sequência, fígado (1.777) e coração (323) completam a lista.

Entre janeiro e setembro de 2023 o Brasil realizou 6.766 transplantes. É o maior número em dez anos, de acordo com o Ministério da Saúde. Mais de 41 mil pessoas estão na fila de transplantes aguardando por um doador compatível.

Veja também

Mais do ge
  翻译: