É hora de somar forças e recursos para a reconstrução do Rio Grande do Sul. Autoridades e economistas tentam estimar o quanto será preciso nesse longo processo. O governador Eduardo Leite mencionou que seria necessário elaborar uma espécie de Plano Marshall, em referência à iniciativa financiada pelos EUA para reerguer uma Europa Ocidental devastada pela Segunda Guerra. De início, Leite projetou a verba de R$ 19 bilhões.
A estimativa, no entanto, é bem abaixo de outros cálculos. A Secretaria Extraordinária da Presidência da República para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul projeta que o valor já tenha superado R$ 85 bilhões. Levantamentos apontam que o número certamente crescerá. Segundo cálculos da consultoria BRCG, a soma de todas as medidas já anunciadas, incluindo as ações do governo federal e as linhas de crédito do BNDES e de organismos multilaterais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), já chega a R$ 138,9 bilhões.
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— É normal ir entendendo o tamanho do que precisa ser feito no meio do processo. Quando olhamos para o Katrina, nos EUA, ou outros desastres no Brasil de magnitude inferior, notamos que sempre há uma sequência crescente de liberação de dados que vai atualizando o custo econômico — diz Livio Ribeiro, sócio da consultoria BRCG e pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre).
Ante desafio de tal monta, poucos se arriscam a falar em velocidade para a conclusão do processo de recuperação.
— Não estamos só preocupados com o produtor, mas com a sociedade — afirma Antonio da Luz, economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado (Farsul).
— Temos percebido que os desafios são enormes e se somam a outros que já existiam — reforça Giovani Baggio, economista-chefe da Federação das Indústrias (Fiergs).
— Todos foram atingidos, em todos os setores e tamanhos, e é difícil cravar prazos — diz Ernani Polo, secretário estadual de Desenvolvimento Econômico.
Relatório do Bradesco de maio mostrou que as enchentes terão consequências econômicas com implicações nacionais. Para o PIB gaúcho, o banco prevê perda de até quatro pontos percentuais em relação ao previsto antes, praticamente zerando o crescimento em relação a 2023. Para o PIB brasileiro, o documento mostra impacto de 0,2 a 0,3 ponto percentual.
Pesquisa da Fiergs com 220 empresas mostrou que 81% delas foram afetadas pelas águas e, dessas, 63% sofreram com a paralisação de atividades. Não só: 31,3% informaram prejuízos em estoques de matérias-primas; 19,6%, em máquinas e equipamentos; 19,6%, nos estabelecimentos físicos; e 15,6%, em estoques de produtos finais. Quase dois terços permanecerão no mesmo endereço, enquanto 5% ficarão na mesma cidade, mas mudarão de local. A pesquisa traz dados preocupantes, comenta Baggio: 20,1% das empresas ainda não decidiram o que fazer; 6,7% pretendem fechar; e 2,2% vão investir fora do estado.
A situação parece ainda mais cruel para os micro, pequenos e médios empresários, que buscam alternativas para prosseguir. De acordo com o Sebrae RS, cerca de 160 mil empreendedores desses três segmentos foram impactados diretamente pelas enchentes, e 440 mil, indiretamente.
— Perdi tudo, pois minha casa e meu negócio ficam no mesmo lugar — conta Carlos Francisco Ramires Guardiola, dono do Churras do Chico, um bar e lanchonete no bairro São Geraldo, em Porto Alegre. Com prejuízo de R$ 60 mil, ele teve que recorrer a uma campanha de arrecadação e ao cartão de crédito, além de entrar em um programa de auxílio do Sebrae.
Para lidar com essa realidade, o governo estadual criou o Gabinete de Apoio ao Empreendedor, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico, com a participação da Secretaria da Fazenda, de entidades empresariais e instituições financeiras. Entre as medidas de socorro adotadas está a isenção de ICMS para compra de estoques e equipamentos. Somadas a isso, linhas de crédito estão sendo direcionadas pelas instituições de fomento. Há ainda uma modalidade de financiamento com juro zero e carência de um ano sendo estruturada pelo governo gaúcho especificamente para microempreendedores individuais (MEIs), que têm mais dificuldade de acesso ao dinheiro.
— Há uma grande força-tarefa para que a gente consiga dar condições para a retomada e minimizar os impactos para todo o setor econômico — diz o secretário Ernani Polo, que crê que o auxílio será insuficiente dada a dificuldade que as empresas enfrentam para retomar as atividades.
Receita despenca
A secretária estadual de Fazenda, Pricilla Maria Santana, estima a perda de arrecadação em R$ 10 bilhões até o fim do ano, no que é considerado o pior cenário. O valor representa cerca de 20% da receita inicialmente esperada para este ano.
Enquanto contabiliza os estragos na economia e na arrecadação, o governo gaúcho requer ajuda da União para garantir a execução das despesas do dia a dia. Também tenta reorganizar o pagamento de dívidas e renegociar o Regime de Recuperação Fiscal. O governo federal, por sua vez, quer separar o debate relativo à calamidade das questões estruturais. Busca dar socorro “na medida do necessário” e fala em cautela com a criação de precedentes.
Entre as medidas de socorro ao governo gaúcho, a União suspendeu por três anos o pagamento da dívida do estado, com impacto total de R$ 23 bilhões. Essa medida, diz a secretária Santana, garante recursos adicionais aos investimentos, já que os valores suspensos para o pagamento da dívida ficam carimbados para esse fim. Haja vista a redução de receitas que o estado já sofre, diz ela, o desafio são os “recursos para o dia a dia”, para que as decisões sobre a execução do orçamento do ano sejam viáveis. “A perda de arrecadação não está coberta”, frisa ela.
Se, de um lado, empresas buscam maneiras de voltar a produzir, de outro, o governo estadual quer evitar a perda de investimentos, postos de emprego e a migração da população.
— Há uma preocupação grande com as empresas pensarem em sair do estado ou puxar o freio. Também nos preocupamos com a perda de mão de obra qualificada. Já vimos anúncios de oferta de vagas aos gaúchos em Santa Catarina — afirma Gustavo Rech, diretor do Fundopem/RS, fundo de incentivo destinado às indústrias, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico.
Planejamento e execução
O setor produtivo gaúcho vinha anunciando investimentos nos últimos meses. Naquele que é o maior investimento privado no estado, a chilena CMPC manteve seus planos de instalação de unidade de produção de celulose orçada em R$ 24 bilhões, que ficará no município de Barra do Ribeiro, a 60 quilômetros de Porto Alegre. A expectativa é que sejam gerados 12 mil empregos durante as obras.
A reconstrução total do estado requer bons planejamento e execução, para evitar desperdícios. O plano de ação deve dar conta de medidas de curto, médio e longo prazos para a volta à normalidade. Humberto Martins, professor da Fundação Dom Cabral em Gestão Pública, alerta que é “o momento de se priorizar”, pois não há recursos para atender a todos ao mesmo tempo.
No caso atual, o processo para apresentar as demandas e decidir as prioridades passa pelo Comitê Executivo do Conselho do Plano Rio Grande e do Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Rio Grande do Sul. O professor Nelson Marchesini, coordenador executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, julga que a palavra-chave para o sucesso de um processo como esse, que tem de lidar com demandas e expectativas de diferentes setores e intensidades, é “colaboração”. Para Martins, decisões de curtíssimo prazo estão relacionadas a salvamento e resgate, etapa que ficou para trás.
— No curto-médio prazo, está a reconstrução da infraestrutura essencial. É ponte, rodovia, aeroporto, porto, é a infraestrutura logística de transporte, comunicação e energia — diz ele.
Entre as medidas de médio prazo, Marchesini considera que os municípios precisam avaliar se é necessário adotar sistema de alerta para emergências, equipar e qualificar a Defesa Civil. Especialistas concordam que a questão habitacional tem que ser resolvida no médio prazo, rejeitando que se torne um objetivo de longo prazo ou que seja enfrentada só com alguma medida temporária. Ao mesmo tempo, apontam a necessidade de no longo prazo tomar medidas estruturais. “É possível, sim, neste momento buscar soluções sistêmicas e passar por cima de gargalos do passado em direção a um futuro melhor”, diz Martins.