Exclusivo para Assinantes
Cultura

Angélica Freitas tenta 'explicar o Brasil a um extraterrestre' em seu primeiro livro desde 2012

Um ano após 'incomodar' deputados conservadores com obra anterior, autora reflete acirramento político do país em 'Canções de atormentar'
A poeta Angélica Freitas, autora de "Canções de atormentar" Foto: Divulgação
A poeta Angélica Freitas, autora de "Canções de atormentar" Foto: Divulgação

RIO — Oito anos separam "Canções de atormentar", mais novo livro de Angélica Freitas, do anterior, "Um útero é do tamanho de um punho". Nesse meio tempo, aconteceu o mundo. A autora gaúcha fez residências literárias em diversos países, foi finalista do Prêmio Telecom (hoje Oceanos), viu a versão em inglês de seu "Rilke Shake" receber prêmio de melhor livro traduzido nos Estados Unidos, verteu para o português escritoras como Susana Thénon e Lucía Bianco, e se tornou uma das vozes mais contundentes da poesia do país.

Só que, nesse período, também aconteceu o Brasil: em setembro de 2019, deputados a acusaram de apologia à "ideologia de gênero" depois que seu livro "O útero é do tamanho de um punho", um dos mais celebrados lançamentos de poesia dos últimos anos, integrou a lista de obras obrigatórias da Universidade Federal de Santa Catarina. A tentativa de tirá-lo do vestibular não deu certo, mas Angélica virou alvo de repúdio da Assembleia Legislativa catarinense.

Os poemas de "Canções de atormentar", seu terceiro título, foram escritos ao longo desses últimos 12 anos: apareceram em revistas e livros e em performances da autora ao lado da cantora Juliana Perdigão. É natural, portanto, que tenham capturado a evolução gradual do acirramento político do país — e, em alguns momentos, tenham até o antecipado.

— Uma das funções das poetas é ver adiante — diz Angélica, 37 anos, em entrevista de Berlim, onde mora. — Li uma entrevista à poeta portuense Inês Lourenço em que ela dizia isso. Um dos termos usados para poetas é vate, que deu origem à palavra vaticínio.

Angélica acredita ter cumprido sua função de "vate" ao ter publicado "O útero é do tamanho de um punho" em 2012, um pouco antes de "que as questões ligadas ao feminismo começassem a ser debatidas de forma mais ampla no país", como ela explica. Lançada originalmente pela Cosac Naify e reeditada com sucesso pela Companhia das Letras em 2017, a obra antecipou a explosão de um novo movimento feminista, que ia ganhar a cultura pop e a sociedade em geral especialmente a partir do ano seguinte.

— Acredito que o livro tenha apresentado o tema mulher como um assunto possível, e encorajado outras poetas a encontrar formas de escrever sobre a mulher — diz Angélica, que chama os deputados que atacaram o seu livro de "burros". — Não dei importância (ao repúdio dos políticos). Mas, claro, se tivessem feito isso com o livro de outra escritora, eu protestaria.

Os poemas de "Canções para atormentar" justificam o título da coletânea e tem tudo para incomodar os mesmos deputados. Neles, a autora tenta "explicar o Brasil a um extraterrestre", revisita desilusões de adolescência e injustiças que não vão embora. Traz à pauta temas como Belo Monte e a violência policial. Volta à sua infância na Pelotas natal, pergunta-se por que uma velha amiga em Dublin nunca a googlou e, durante uma manifestação em Porto Alegre, vê a polícia ir "pra cima dos teus afetos". Volta a velhas paixões (Rimbaud, poetas beats, Patti Smith , Iberê Camargo...), critica o machismo e as convenções sociais, e mais uma vez discute o lugar da mulher ("eu sou a garota mais valente ao seu dispor/ o garoto mais engraçado que conheço/ eu sou eu sinto que sou/ eu mesmo").

— Ao contrário de "um útero é do tamanho de um punho", em que eu estava decidida a escrever sobre a mulher,os poemas do novo livro simplesmente se apresentaram a mim — diz Angélica. — Eles foram acontecendo. Ser poeta é uma maneira de estar no mundo, de ter grande receptividade às coisas que acontecem, talvez de uma maneira mais intensa do que se não fosse (poeta) . Gosto da imagem do poeta como uma anterna.

Serviço:

"Canções para atormentar"

Autora: Angélica Freitas. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 112. Preço: R$ 49,90.

  翻译: