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Cultura

Clube Bianchi's: o grupo de zap de Celso Furtado e outros intelectuais nos anos 1960

Cartas trocadas por intelectuais latino-americanos para debater a superação do subdesenvolvimento da região se destacam na recém-lançada 'Correspondência intelectual' do economista brasileiro
Nos anos 1960, um grupo de intelectuais latino-americanos liderado por Celso Furtado criou o Clube Bianchi's, uma espécie de grupo de WhatsApp analógico para debater o continente Foto: André Mello
Nos anos 1960, um grupo de intelectuais latino-americanos liderado por Celso Furtado criou o Clube Bianchi's, uma espécie de grupo de WhatsApp analógico para debater o continente Foto: André Mello

Em fevereiro de 1965, um punhado de intelectuais latino-americanos — o economista brasileiro Celso Furtado, o historiador chileno Osvaldo Sunkel, o sociólogo colombiano Orlando Faks Borda e outros— viajou a Londres para participar da conferência “Obstáculos à mudança na América Latina”, organizada pelo Royal Institute of International Affairs, também conhecido como Chatham House, um think tank no qual trabalhava o historiador chileno Claudio Véliz. A conferência foi uma das primeiras ocasiões em que estudiosos de diferentes cantos da América Latina se encontraram para pensar juntos o desenvolvimento social e econômico do continente.

Eles decidiram manter contato e escrever uns aos outros periodicamente para se atualizarem quanto aos projetos mais recentes e compartilharem análises sobre os desafios socioeconômicos de seus países. Para organizar a troca epistolar, fundaram o Clube Bianchi’s, batizado em homenagem à pizzaria que frequentavam durante a conferência. Os primeiros membros do Clube Bianchi’s foram, além de Furtado, Sunkel, Faks Borda e Véliz, o brasileiro Helio Jaguaribe e o chileno Jacques Conchol. Apesar de não terem partilhado “o pão e o vinho de Bianchi’s”, o chileno Aníbal Pinto e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso logo se juntaram ao grupo.

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O Clube Bianchi’s funcionava como uma espécie de grupo de WhatsApp analógico. As cartas eram enviadas para a secretária de Véliz, em Londres, que as fotocopiava e enviava para cada membro em seu respectivo país. Cada um escrevia em seu idioma. Às vezes, chegava uma ou outra missiva em inglês, ditada por Véliz a sua secretária. Algumas das cartas do Bianchi’s foram incluídas no recém-lançado “Celso Furtado: correspondência intelectual, 1949-2004”, organizado pela jornalista e tradutora Rosa Freire d’Aguiar, viúva do economista . O volume reúne quase 300 cartas trocadas por Furtado com cerca de 80 interlocutores (Raúl Prebisch, Bertrand Russelle Lina Bo Bardi entre eles) e foi lançado para marcar o centenário de nascimento do intelectual paraibano, comemorado no ano passado.

D’Aguiar foi a primeira a perceber a semelhança entre o Bianchi’s e os “grupos de zap” que se multiplicaram hoje. Ao GLOBO, ela conta que Furtado deixou uma pasta com 76 cartas do clube. Numa outra pasta, a da correspondência com Véliz, há pouco mais de 20 cartas nas quais o economista anotou “Bianchi’s”.

O economista Celso Furtado em Paris, nos anos 1960. Sua correspondência revela intenso debate intelectual sobre o destino da América Latina Foto: Reprodução / Divulgação
O economista Celso Furtado em Paris, nos anos 1960. Sua correspondência revela intenso debate intelectual sobre o destino da América Latina Foto: Reprodução / Divulgação

'Pensamento latino-americano'

Antes mesmo da viagem a Londres, Celso Furtado já cogitava “ manter um sistema de correspondência” com os colegas, como escreveu a Aníbal Pinto no início de fevereiro de 1965. Já o historiador Osvaldo Sunkel confessa que, por não ser organizado como o colega brasileiro, não guardou as cartas do Bianchi’s e não se lembra do que elas diziam, embora se recorde das idas à pizzaria londrina. No entanto, ele afirma que a troca intelectual entre eles foi extremamente frutífera.

— Éramos um grupo de cientistas sociais entusiasmados que descobrimos que, cada um em seu país, trabalhávamos em temas e propostas similares — conta Sunkel. — A partir daí, começamos a pensar o desenvolvimento econômico e social da América Latina, em torno, principalmente, dos debates da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) , que ficaram conhecidos em todo o mundo. Até hoje é frequente encontrar referências a nossos nomes na literatura sobre o desenvolvimento latino-americano.

Numa carta a Aníbal Pinto, poucos meses após a reunião em Londres, Furtado descreveu o Bianchi’s como um grupo empenhado em “dar uma formulação à problemática latino-americana” e também a um “novo projeto histórico para nossa área cultural comum”. Escrevendo a Fernando Henrique Cardoso, ele pareceu mais entusiasmado: “Constituíamos hoje o embrião de uma escola de pensamento”.

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O ex-presidente ressalta que ver o mundo por mentes latino-americanas era uma novidade à época, sobretudo no Brasil, onde o pensamento ainda era “ou europeizante ou americanófilo”.

— A proposta do Bianchi’s era criar um pensamento latino-americano original e que levasse em conta os interesses da região. Só alguém como o Celso, que conhecia o mundo, podia inspirar isso — recorda Fernando Henrique. — Nossa obsessão era pensar o “desarrollo” e a industrialização do continente. Éramos movidos por um sentimento latino-americano e, portanto, antiamericano.

Desejo de expansão

Furtado foi o primeiro brasileiro a integrar a Cepal (criada pelas Nações Unidas para promover a cooperação econômica entre os países latino-americanos e caribenhos), ainda em 1949, antes de ele criar a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), em 1959, e atuar como ministro do Planejamento, entre 1962 e 1964, durante o governo de João Goulart. No entanto, foi nos Estados Unidos, onde se exilou após o golpe militar, que Furtado se conscientizou da importância de pensar América Latina.

— Nos EUA, ele percebe que os americanos já estavam pensando a América Latina, tanto na academia quanto na política, insinuando que nós éramos incapazes de pensar nossos próprios problemas. Como vinha da Cepal, Celso não engoliu isso — diz D’Aguiar, que descreve a correspondência intelectual de Furtado como um “laboratório de ideias”.

O desejo de Furtado era que essas ideias não circulassem apenas dentro do Bianchi’s. Em várias cartas ele insistiu que o grupo encontrasse (ou criasse) uma revista para publicar ensaios. O ex-ministro do Planejamento também sugeriu algumas regras para que a intenção original não se perdesse (como ocorre com muitos grupos grupos de WhatsApp). “É necessário que se restabeleça o caráter epistolar do grupo”, escreveu no final de 1966. “Cada membro deve comprometer-se a escrever o mínimo de uma página mensalmente sobre os próprios projetos”. Ele também recomendou moderação na hora de adicionar mais membros.

Envelope recebido pelo economista brasileiro Celso Furtado, em 1969, quando lecionava na Sorbonne, em Paris Foto: Reprodução / Divulgação
Envelope recebido pelo economista brasileiro Celso Furtado, em 1969, quando lecionava na Sorbonne, em Paris Foto: Reprodução / Divulgação

Quanto à revista em que publicariam seus trabalhos, Furtado propôs um acordo com a já bem estabelecida “Desarollo Econômico”, de Buenos Aires, na qual publicariam também textos em português, com notas de rodapé que traduzissem, para o espanhol, algumas palavras-chaves, como poupança (“ahorro”). Os chilenos preferiam uma revista sediada em Santiago, ligada à Universidade do Chile e editada por eles. Sugeriam o nome “Panorama”, mas Furtado lembrou que já existia uma revista argentina com o mesmo título, “muito conhecida e de qualidade duvidosa”. A “Panorama” não passou de um projeto e o grupo se associou à “Desarrollo Econômico”, que publicava, sempre em espanhol, os ensaios escritos por membros do clube.

Segundo D’Aguiar, o Bianchi’s nunca teve um fim, mas foi “murchando” depois que o objetivo principal foi cumprido: encontrar uma revista em que eles pudessem publicar suas reflexões sobre os impasses da América Latina. Ela lembra que o intercâmbio de estudantes do continente em universidades europeias aumentou nos anos seguintes, graças também aos esforços dos membros do Bianchi’s. Em 1966, o próprio Furtado passou a lecionar economia latino-americana na Universidade Sorbonne, em Paris, onde deu aulas de 1965 a 1985, quando seguiu para Bruxelas, como embaixador brasileiro junto à União Europeia, um ano antes de voltar ao Brasil.

Trechos:

“É perfeitamente claro que fomos incapazes de formular um pensamento operacional no plano ideológico e que nos distribuímos entre repetidores de slogans e perplexos. (...) Demoramos muito a compreender que nosso problema básico é criar uma sociedade viável (...) e não aperfeiçoar o sistema capitalista para reduzir as dores do desenvolvimento ou superar o capitalismo por considerar que ele se teria esgotado historicamente.” (Celso Furtado, 3 de fevereiro de 1965)

“Cada vez mais me preocupa o ‘problema’ americano. Estou pondo algum tempo a estudá-lo com miras a escrever um livro sobre os Estados Unidos para ser lido na América Latina. (...) Vejo que o horizonte se fecha diante de nós e que as possibilidades de atuar como intelectual se reduzem de maneira angustiante”. (Celso Furtado, 10 de maio de 1965)

“Sinto que o horizonte se fecha e o futuro se torna cada vez mais algo enigmático. A vida intelectual em épocas como esta é uma espécie de meia loucura.” (Celso Furtado, 10 de maio de 1965)

“Que espécie de gente estará saindo de nossas universidade dentro de três a cinco anos? (...) Pergunto-me se não nos cabe dedicar parte do nosso tempo a preparar livros que possam servir de texto nas nossas universidades.” (Celso Furtado, 21 de dezembro de 1966)

Capa do livro "Celso Furtado: correspondência intelectual", organizado pela jornalista e tradutora Rosa Freire d'Aguiar, viúva do economista Foto: Reprodução / Divulgação
Capa do livro "Celso Furtado: correspondência intelectual", organizado pela jornalista e tradutora Rosa Freire d'Aguiar, viúva do economista Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

“Celso Furtado: Correspondência intelecual”

Organização: Rosa Freire d'Aguiar. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 432. Preço: R$ 99.

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