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Por O GLOBO — Rio de Janeiro

RESUMO

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GERADO EM: 19/06/2024 - 00:01

Chico Buarque: ícone da música brasileira

Chico Buarque, aos 80 anos, é celebrado como um dos maiores compositores do Brasil, retratando o amor, a política e o futebol em sua obra. Sua música se tornou parte da trilha sonora do país, enquanto sua paixão pelo futebol o levou a criar seu próprio time de futebol de botão.

Há exatos 80 anos nascia Francisco Buarque de Hollanda, um dos sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda com a pintora e pianista Maria Amélia Cesário Alvim. Cantor e compositor, dramaturgo, autor, ator e vencedor do Prêmio Camões, Chico Buarque é também cronista das belezas e das mazelas do Brasil, autor de canções que se tornaram hinos do combate à ditadura militar e da alegria pelo retorno à democracia, entusiasta do futebol-arte e o compositor favorito das cantoras por sua rara compreensão do universo feminino.

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NASCE UM COMPOSITOR

O ano era 1966 e, na contracapa de seu LP de estreia, “Chico Buarque de Hollanda ”, o cantor e compositor de 22 anos de idade admitia: “Pouco tenho a dizer além do que vai nesses sambas”. Ensanduichado entre a explosão da jovem guarda e a revolução tropicalista, Chico assinava seu compromisso com a música inaugurada no começo do século pelos negros Donga, Pixinguinha e João da Baiana.

No LP, que vinha com clássicos como “A banda” (vencedora de festival, na interpretação de Nara Leão), Chico era a encarnação do samba jovem, o garoto dos olhos magnéticos, de cor nunca identificada. Mais do que isso, o autor de versos como “se o samba quer que eu prossiga/ eu não contrario não” (de “Amanhã, ninguém sabe”), reiterados por ele em “Que tal um samba?” (2022), faixa mais recente desse artista que completa 80 anos na quarta-feira, 19 de junho.

Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, no Rio de Janeiro, 1979. — Foto: Evandro Teixeira/ Acervo Instituto Moreira Salles
Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, no Rio de Janeiro, 1979. — Foto: Evandro Teixeira/ Acervo Instituto Moreira Salles

Entre um Chico e outro, está toda a História de um país, da qual é um dos mais poéticos e contundentes cronistas. Criado no seio da intelectualidade (seu pai era o historiador, sociólogo e escritor Sérgio Buarque de Hollanda, autor de “Raízes do Brasil”), o menino cresceu ligado em futebol, em clássicos da literatura e no melhor de uma época de ouro da música brasileira (Noel Rosa, Dorival Caymmi, Ary Barroso, entre outros). A audição do marco inicial da bossa nova, “Chega de saudade”, com João Gilberto, fez com que o violão virasse seu melhor amigo.

"Quis ser palhaço, bombeiro, intelectual, jogador de futebol, padre, deputado, ladrão de automóveis, galã e arquiteto. Nada deu certo, e acabei mesmo tocando violão", resumiu ele, em 1967, à “Fatos e Fotos”.

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TRILHA SONORA DO BRASIL

Num tempo em que tudo parecia ser possível, um talentoso contingente jovem batalhava para reorientar a canção brasileira. Enquanto os tropicalistas trilhavam o caminho do pop e da eletricidade, ele seguiu seus próprios desígnios, traçados pelo samba — certa vez, Caetano Veloso chegou a dizer que Chico “anda para a frente arrastando a tradição”.

Chico Buarque em meio a fileira de artistas na Passeata dos Cem Mil, em 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO
Chico Buarque em meio a fileira de artistas na Passeata dos Cem Mil, em 1968 — Foto: Arquivo/Agência O GLOBO

Um caminho que ele percorreria com grandes parceiros musicais, como Edu Lobo, Francis Hime, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e, nos últimos anos, o neto Chico Brown. Entre canções de qualidade cinematográfica e pérolas românticas (com um olhar feminino que o transformou no compositor mais desejado pelas grandes cantoras, de Maria Bethânia a Elza Soares), Chico conquistou popularidade e fez a trilha sonora do Brasil.

Um Brasil que mergulhava nos anos de chumbo da ditadura, a qual ele reagiu com um autoexílio em Roma mas também com sambas como “Apesar de você”, “Construção”, “Acorda amor” (assinado com pseudônimo para escapar à censura) e, à beira da redemocratização, com “Vai passar”, hino do movimento Diretas Já.

Em julho de 2018, ao lado de Gilberto Gil, Chico canta no festival "Lula Livre" — Foto: MAURO PIMENTEL / AFP
Em julho de 2018, ao lado de Gilberto Gil, Chico canta no festival "Lula Livre" — Foto: MAURO PIMENTEL / AFP

Compositor que transitou por vários estilos, sempre ao seu jeito, Chico fez música infantil (“Saltimbancos”) e até rock (“Jorge Maravilha”). Enveredou pelas trilhas de cinema, pelo teatro, pelos musicais e, a partir de “Estorvo” (1991), conquistou o reconhecimento como romancista. Se, depois de certo ponto, silenciou no plano das entrevistas, as obras começaram a falar por ele — como ele desejava desde aquela estreia em 1966.

Ele, até hoje, caminha quase todo dia e joga futebol quase toda semana. Tem que estar em ótima forma e vai estar ainda por muito tempo. E eu irei gostar dele cada vez mais, gostando dele igual, como da primeira vez quando ele ainda não tinha 20 anos! Parabéns meu oitentão querido.
— Gilberto Gil, compositor

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O SAMBA COMO ARMA

Num novo milênio em que a violência social se explicitou no limite do insuportável, Chico Buarque seguiu sendo a chave para a compreensão do Brasil. Seja na releitura da sua “Cálice” pela ótica das quebradas do rapper Criolo, ou na incisiva revisão do histórico de escravidão da canção “Sinhá”, lançada em 2011.

Raí e Chico Buarque (com bandeira do MST) em manifestação em Paris — Foto: Reprodução Instagram
Raí e Chico Buarque (com bandeira do MST) em manifestação em Paris — Foto: Reprodução Instagram

Quando necessário, Chico bateu de frente, como quando se manifestou contra o racismo dos que falavam sobre seu neto, Chico Brown, filho de sua filha Helena com Carlinhos Brown. “As pessoas pensam que são brancas, pensam que eu sou branco. Só no Brasil é que eu sou branco ou que minha filha é branca”, disse ele ao diretor Roberto Oliveira em um documentário. No sábado (15) mesmo, em Paris, onde está com a família para comemorar seu aniversário, participou de manifestação contra o avanço da extrema direita na França.

Mas sua arma mais letal e sorrateira continuava mesmo sendo o samba, como reafirmaria em “Que tal um samba”, com o qual exorcizou uma das páginas infelizes de nossa História com um convite à dança e à celebração: “Depois de tanta demência/ e uma dor filha da puta, que tal?/ puxar um samba/ que tal um samba?”

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UM CASO DE AMOR COM O CINEMA

Em 1966, mesmo ano em que lançou seu álbum de estreia e conquistou o Festival da Música Popular Brasileira com “A banda”, Chico fez seu primeiro trabalho para o cinema, compondo uma melodia para o filme “O anjo assassino” (1966), de Dionísio Azevedo.

No ano seguinte, estreou como ator interpretando a si mesmo em “Garota de Ipanema” (1967), de Leon Hirszman. Em cena, ele canta a canção “O chorinho”, composta especialmente para o filme produzido e co-escrito por Vinicius de Moraes.

Achava que poderia ser ator de cinema, mas aí cresci e desisti. Sou um péssimo ator. Geralmente, quando me chamam para atuar é para interpretar a mim mesmo ou a uma versão de mim mesmo.
— Chico Buarque

“Quando o carnaval chegar” (1972), estrelado também por Hugo Carvana, Nara Leão e Maria Bethânia, marca o início de uma grande e frutífera parceria com o diretor Cacá Diegues. Na trilha sonora, canções clássicas como “Mambembe”, “Quando o carnaval chegar”, “Partido alto” e “Bom conselho”.

Outros trabalhos de Chico como ator foram em "Vai trabalhar, vagabundo II: a volta" (1991), de Carvana; "O mandarim" (1995), de Júlio Bressane; "Ed Mort" (1997), de Alain Fresnot; e o drama português "Água e sal" (2001), de Teresa Villaverde.

Nara Leão, Chico Buarque e Bethânia em "Quando o carnaval chegar", de Cacá Digues — Foto: Divulgação
Nara Leão, Chico Buarque e Bethânia em "Quando o carnaval chegar", de Cacá Digues — Foto: Divulgação

Após “Quando o carnaval chegar”, voltou a trabalhar com Cacá nas músicas-temas de “Joana Francesa” (1973) e “Bye bye Brasil” (1979). Em 2018, Cacá voltaria a ter seu cinema tomado pela obra buarqueana. O diretor comandou uma adaptação de “O grande circo místico”, baseado em peça de Chico e Edu Lobo.

Chico também construiu parcerias cinematográficas importantes com Hugo Carvana, para quem compôs o hino da malandragem carioca, “Vai trabalhar, vagabundo!”, que virou título de filme em 1973, e Miguel Faria Jr., com quem trabalhou lado a lado inúmeras vezes e de quem segue muito próximo.

“Não sonho mais”, para “República dos assassinos” (1979), e “Imagina”, “Tanta saudade” e “Samba do grande amor”, para “Para viver um grande amor” (1983), são algumas das canções que musicaram obras de Faria Jr., que também dirigiu o documentário “Chico — Artista brasileiro” (2015).

Um dos maiores sucessos da história do cinema brasileiro, com 10,7 milhões de espectadores, segundo a Ancine, “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, tem em sua trilha sonora três versões de uma mesma canção: “O que será?”, que marcam momentos diferentes da trama, "Abertura", "À flor da pele" e "À flor da terra".

Sucesso na Itália, a peça infantil “Os saltimbancos”, de Sergio Bardotti e Luis Enríquez Bacalov, foi montada nos palcos do Brasil em versão desenvolvida por Chico, com canções adicionais, em 1976. Poucos anos depois, o compositor voltou ao material e, com a companhia de Bardotti e Bacalov, escreveu novas músicas para o filme “Os saltimbancos Trapalhões” (1981), de J. B. Tanko. Estrelado por Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias, o longa levou 5,2 milhões de pessoas aos cinemas.

A noiva da cidade” (1978), de Alex Viany, “Perdoa-me por me traíres” (1983), de Braz Chediak, “Ópera do malandro” (1985), de Ruy Guerra, “A ostra e o vento” (1997), de Walter Lima Jr., e “A máquina” (2005), de João Falcão, foram outros longas a contar com composições de Chico em suas trilhas.

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ADAPTAÇÕES PARA A TELONA

Outra faceta na relação entre Chico Buarque e o cinema está no fato do artista ter tido várias de suas obras literárias adaptadas para a tela grande.

No ano 2000, Ruy Guerra, que além de dirigir “Ópera do malandro” havia escrito com Chico a peça “Calabar”, adaptou para os cinemas o livro “Estorvo”, primeiro romance do músico, lançado em 1991. Em 2003, foi a vez de “Benjamin” ganhar vida na tela de cinema. Dirigido por Monique Gardenberg, o filme marcou o primeiro grande papel de Cleo (à época Cléo Pires), que protagoniza a produção ao lado de Paulo José, Danton Mello e Chico Diaz.

Dirigido por Walter Carvalho, o romance “Budapeste” chegou aos cinemas em 2009 contando com Leonardo Medeiros, Gabriella Hámori e Giovanna Antonelli como protagonistas. O premiado diretor Karim Aïnouz realizou, em 2011, "O abismo prateado", uma adaptação da canção "Olhos nos olhos" estrelada por Alessandra Negrini e Otto Jr..

No momento, a diretora Anna Muylaert, de "Que horas ela volta?" (2015), trabalha na adaptação do sucesso "Geni e o Zepelim", que será rodado em 2025, com produção da Migdal Filmes e coprodução da Globo Filmes. Originalmente, "Geni e o zepelim" fez parte da trilha sonora de "Ópera do malandro", peça de Chico de 1978.

A trama irá acompanhar Geni, uma jovem profissional do sexo ribeirinha, que vive sob ataque da vizinhança. Quando sua aldeia é dominada pelo terrível exército do Comandante, os moradores tentam escapar pelo rio. Porém, o barco é interceptado e todos são feitos prisioneiros. É quando o inesperado acontece e a liberdade de todos passa a depender exclusivamente do desejo de Geni.

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FAVORITO DAS CANTORAS

Nem Maria Bethânia consegue fingir normalidade diante de Chico Buarque. A cantora que, certa vez, afirmou ser "capotada" por ele e sentir um "ciúmes como se fosse meu namorado", confessou que treme na base quando ele está plateia de seus shows.

Quando Chico apareceu na temporada intimista de "Claros breus", que a baiana fez no Manouche (casa de shows na Zona Sul carioca) em 2019, ela não se aguentou: Mandou um "Buaaarque!" no final do verso da música "Taça" (de Chico César), que diz: "Molhando na chuva chamando o meu nome...". O compositor respondeu com um sonoro "Maria!" ao surgir no camarim para cumprimentá-la após o show. É assim que os dois se tratam: Buarque e Maria.

Maria Bethânia ganha reverência de Chico Buarque em show em homenagem à Mangueira — Foto: Divulgação
Maria Bethânia ganha reverência de Chico Buarque em show em homenagem à Mangueira — Foto: Divulgação

Mãeana arrisca uma resposta que pode ajudar a explicar a devoção da mulherada por Chico:

— Além do eu lírico feminino, Chico é um contador de histórias. Acho que o fascínio que ele exerce sobre as mulheres é esse. Nós, talvez, tenhamos mais necessidade de ouvir histórias. A gente fica ouvindo e sonhando. Meu pai sempre falava isso, que o homem você conquista pela imagem, ele gosta do que vê. Já a mulher, é pelo ouvido, pelo que ela escuta. E olha o que Chico diz: "Agora eu era herói/ e meu cavalo só falava inglês ("João e Maria"), "Um dia ele chegou tão diferente/ do seu jeito de sempre chegar ("Valsinha"). Sou muito fã.

Outra fã de carteirinha é a cantora Teresa Cristina. Para ela, Chico "exerceu, exerce e vai continuar exercendo" esse deslumbramento nas mulheres por uma série de razões, que ela lista: genialidade, bom humor, sarcasmo, ironia, pela maneira com que faz o jogo de palavras nas canções que cria e pela timidez

olhar que ele tem sobre as mulheres é o de um homem que observa a mulher com muito detalhe, o olhar do tímido, delicado e muito especial porque é de uma pessoa acostumada a observar e não falar tanto de si — analisa Teresa. — Quando ele se coloca no lugar da mulher, já a observou durante muito tempo assim. Muitas vezes, Chico fala de sensações e sentimentos femininos que a gente tem vergonha de colocar pra fora. E de jeitinho bem buarqueano, coloca na canção de uma forma em que a gente fala: "Nossa, como essa cara descobriu?".

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A PAIXÃO PELO FUTEBOL

O futebol é paixão inquestionável na vida de Chico Buarque desde que ele era criança. Virou torcedor do Fluminense por influência da mãe, Maria Amélia. Ainda jovem, Chico adorava jogar futebol de botão. Aos 15 anos, batizou de Polytheama o seu time de mesa. Do grego, o termo significa "muitos espetáculos". Tempo depois, nos anos 1970, já reconhecido como grande compositor, renovou contrato com a Universal e ganhou de presente da gravadora um campinho de futebol no Recreio dos Bandeirantes. O local se tornou o Centro Recreativo Vinícius de Moraes, casa do Polytheama.

Fizeram parte do time lendário de Chico Buarque, de cores azul e verde-limão, nomes como Fágner, Djavan, Toquinho, Moraes Moreira, Alceu Valença, Carlinhos Vergueiro, Hyldon, o cineasta Ruy Solberg, e Vinícius França (amigo e empresário do compositor).. Também passaram por lá Pelé, Nílton Santos, Tostão, Zico, Júnior, Leandro, Reinaldo, Sócrates, Romário e Ronaldinho.

Chico Buarque e Pelé no campo do Polytheama — Foto: João Wainer / Divulgação
Chico Buarque e Pelé no campo do Polytheama — Foto: João Wainer / Divulgação

Chico gosta de jogar no meio, é mais dos passes do que das finalizações. Não gosta de adversários violentos que fazem muita falta. Não costuma ficar para as "resenhas" que acontecem após os jogos. E é bom de bola, garantem amigos.

— Ele é fominha pra caramba — brinca o cantor e compositor Hyldon, que jogou "uns 6 anos" no Polytheama. — Chico tem uma certa habilidade e é muito inteligente jogando bola. Era um pensador do time.

Vale lembrar que é um cara que sempre abriu o campo pra todo mundo. Ele deixava o pessoal do Terreirão, comunidade que existe ali no entorno, jogar lá. Só fechou durante a pandemia.
— Hyldon, cantor e compositor

Há muitos anos que o futebol acontece no Centro Recreativo Vinícius de Moraes religiosamente três vezes por semana, às segundas-feiras, quintas e sábados, no início da tarde. Quando está no Brasil, Chico ainda joga. Quando não está, a pelada rola normalmente mesmo na ausência do presidente de honra do clube.

— Eu já vi ele chegar da Europa e ir direto pra lá — conta Hyldon. — A gente organizava campeonatos com vários times. Tinha o Fumeta, do Evandro Mesquita, o Raça e Simpatia, do João Nogueira. Aos sábados, enchia de gente. Houve uma época em que acabava o futebol e rolava pagode, com João Nogueira, Clara Nunes, ia até 1h da madrugada. O Chico sempre trazia os melhores pro time dele. Quando levava alguém ruim, ficava no time contra.

Participaram: Bolivar Torres, Gustavo Cunha, Lucas Salgado, Maria Fortuna, Nelson Gobbi, Ricardo Ferreira, Ruan de Sousa, Silvio Essinger e Talita Duvanel

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