O dia em que eu, insolente, palpitei numa música do Chico Buarque

Era “Massarandupió” que estava tocando quando entrei no estúdio. Chico Buarque começava a registrar o álbum “Caravanas” e eu estava ali para um ensaio fotográfico sobre as sessões de gravação. Antes mesmo de apontar a câmera e começar o meu trabalho, percebi, encantado, que aqueles versos, somados à valsa da melodia, davam uma sensação real de movimento, quase uma dança. Terminava no “xuá”, uma onomatopeia para a onda batendo. Genial. Como ele consegue? Foi o que pensei na hora.

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Estávamos em outubro de 2016.

Quando comecei a escrever esta coluna, quase oito anos depois, fui no disco para relembrar a letra. A surpresa: ele escreveu xuá e não chuá. Ué? Não são a mesma coisa? Sim, têm o mesmo som, mas xuá, com x, também significa extraordinário ou maravilhoso. Ele acertou dois alvos com um tiro só. Putz.

Na mesma canção tem mais:

Devia o tempo de criança ir se/ Arrastando até escoar pó a pó.

Pó a pó é uma imagem linda, lembra a poeira se esvaindo ou uma ampulheta escorrendo. Já na segunda audição da música — dessa vez não demorei oito anos — percebi que “po a po” também significa “pouco a pouco” em italiano. Não é possível, o que será que ele come no café da manhã?

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Tudo isso aconteceu no primeiro dia, na primeira hora. Imaginem o resto. Foram vários e vários meses de gravação. Sim, leitor, sei o tamanho do privilégio que tive.

O problema é que a gente se acostuma com tudo — especialmente com privilégios — e o caminho do deslumbre à insolência às vezes pode ser curto, muito curto. Com o tempo — e a quantidade —, comecei a achar normais as sacadas geniais e os insights matadores. Pior: comecei a pensar que não devia ser tão difícil assim o que ele estava fazendo.

O leitor já deve imaginar o que aconteceu.

Na gravação de “Caravanas”, a música que deu título ao álbum, o Canivello, que faz a comunicação do Chico, teve uma ideia: um batidão funk não ficaria bom? A sugestão entrou em debate, o estúdio ficou em polvorosa, cada músico dando o seu pitaco.

Incentivado pelas vozes na minha cabeça — é a sua hora de brilhar, diziam —, opinei que tinha achado a sugestão boa. “É, vai ficar bom”, foi o que disse. Acho que ninguém escutou, ou ao menos, educados, fingiram que não escutaram. Chico foi para casa, pensou e, no dia seguinte, o tal batidão entrou no disco.

Diria que a minha insolência parou por aí, mas depois fiz chegar a ele um texto que comparava “Construção” a “Robocop gay”, dos Mamonas Assassinas, já que as duas eram calcadas em proparoxítonas. Cada um contribui como pode.

Dessa convivência tenho imagens, que talvez — com sorte — se tornem um pé de página nas biografias do Chico. O importante é que lá na frente, quando o Rio de Janeiro virar alguma cidade submersa e os escafandristas aparecerem para explorar os desvãos de um estúdio no Humaitá, vão encontrar, gravados por algum microfone, vestígios da minha opinião. Quem era esse sujeito que deu pitaco na música do Chico, se perguntarão, curiosos, ao ouvir o eco das minhas antigas palavras.