Exclusivo para Assinantes
Cultura Livros

Autoras lideram nova onda de literatura latino-americana marcada pelo insólito e pelo terror

Escritoras como a colombiana Pilar Quintana, a mexicana Fernanda Melchor, a equatoriana María Fernanda Ampuero e as argentinas Mariana Enríquez e Samanta Schweblin são apostas do mercado editorial
Da esq. para a dir.: as escritoras Mariana Enríquez, Aurora Venturini, Pilar Quintana e Maria Fernanda Ampuero Foto: Arte André Mello / Agência O GLOBO
Da esq. para a dir.: as escritoras Mariana Enríquez, Aurora Venturini, Pilar Quintana e Maria Fernanda Ampuero Foto: Arte André Mello / Agência O GLOBO

RIO — Nos anos 1960 e 1970, a literatura latino-americana viveu seu grande boom no exterior. Eram tempos dos best-sellers globais de Gabriel García Marquez, de uma representação fantástica do cotidiano e de histórias apresentadas aos gringos sob o selo — muitas vezes redutor — de realismo mágico. Décadas depois, o mundo vê o surgimento de uma nova onda, desta vez liderada por mulheres. A produção é diversa, mas há algumas características marcantes, que ligam algumas das obras da colombiana Pilar Quintana, da mexicana Fernanda Melchor, da equatoriana María Fernanda Ampuero e das argentinas Mariana Enríquez e Samanta Schweblin , entre outras. Um gosto pelo estranho e pelo insólito, que deságua em retratos brutais de seus países e, não raro, em um flerte com o terror e com o fantástico.

Poesia em alta: Sucesso de Amanda Gorman, que discursou na posse de Joe Biden, atrai jovens

Muitas dessas autoras tiveram só recentemente seus primeiros títulos publicados por aqui, e a boa recepção deve puxar mais e mais novidades com esse recorte. Segundo uma estimativa da Moinhos, uma das editoras mais entusiastas do filão, o país deverá lançar nada menos do que 15 escritoras e 18 obras de latino-americanas até o final de 2021.

Um dos títulos mais aguardados do momento é “Nossa parte da noite”, de Enríquez, que sairá pela Intrínseca em julho (e já está circulando entre os assinantes do Intrínsecos, clube de leitura da editora). O livro é bastante representativo dessa onda. Sem medo de se assumir como terror, busca inspiração tanto em Stephen King quanto nas irmãs Brönté. Tendo como pano de fundo as cicatrizes da ditadura militar, compõe uma espécie de hino gótico que reúne fantasmas e sociedades secretas.

Batalha legal: Como os manuscritos de Kafka foram disputados por Israel e herdeiros de Max Brod

Enríquez não acredita que a geografia local seja a principal responsável pela produção de uma literatura insólita. Para ela, há uma mescla densa de uma “cultural global do estranho” com as características próprias da região.

— Há, é verdade, uma influência da geografia urbana ( latino-americana ) — diz ela. — Mas creio que ( o gosto pelo estranho ) seja algo mais geracional. A grande maioria dos escritores da minha geração cresceu consumindo coisas com “Twin Peaks”, Spielberg, Neil Gaiman, o rock e o rap.

'Torto arado': como uma ficção nacional chegou a 100 mil exemplares vendidos

Professor de literatura hispano-americana na UFSCar, Wilson Alves-Bezerra também vê um componente geracional no boom. Ainda que o mercado tenha se voltado para a literatura latino-americana de forma geral, é a geração de mulheres nascida nos anos 1970 que está alcançando maior visibilidade, acredita ele.

— Entre elas, vejo uma preocupação que é comum: lançar luz aos temas sociais contemporâneos, como a violência contra a mulher ou os males dos agrotóxicos ( os romances “Fruta podre”, de Lina Meruane, e “Distância de resgate”, de Schweblin, abordam o tema ) sem ceder ao realismo — diz.

Autora da elogiada coletânea de contos "Rinha de galos", que evidencia a bestialidade dos humanos a partir dos maus tratos impostos aos animais, a equatoriana Maria Fernanda Ampuero elenca algumas semelhanças na formação dos escritores e escritoras de sua geração.

— Muitos de nós cresceram com a memória recente das ditaduras latino-americanas, especialmente a autores do Cone Sul, e com um mundo cada vez mais global de um lado e injusto  — diz ela. — Os colombianos cresceram com o terror do narcotráfico e de cidades marcadas pela violência, isso sem falar nas mulheres centro-americanas ou as mulheres mexicanas. Ao mesmo tempo em que vivemos terrores reais, como as crises econômicas e políticas do Equador, que estavam acontecendo sem pausa, crescemos no boom do cinema de terror no final dos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990.

Imortais confinados: Membros da sentem saudade do chá das quintas-feiras e fazem lives com a ajuda dos netos

Prova do reconhecimento dessa nova literatura, Enriquez é finalista do International Booker Prize deste ano, o mais prestigioso prêmio de língua inglesa, concorrendo com a tradução de “Los peligros de fumar en la cama” (ainda não lançado no Brasil). Antes dela, já haviam concorrido as suas compatriotas Ariana Harwickz, por “Morra, amor” (publicado no Brasil em 2019 pela Instante), e Gabriela Cabezón Cámara, cujo livro “As aventuras da China Iron”, que revive o mito de Martín Fierro, sai em breve pela Moinhos. Fernanda Melchor também esteve na lista final do Booker com “Temporada de furacões”, lançado pela Mundaréu no ano passado.

Os prêmios e o sucesso de crítica tornaram cada vez mais acirrada a disputa pelos direitos dessas autoras. Está ajudando inclusive na recuperação póstuma de figuras até então ignoradas por aqui, como Aurora Venturini (1922-2015). Para adquirir duas obras da argentina, a Fósforo enfrentou a concorrência de cinco editoras de peso. No segundo semestre, a editora paulistana também lançará a novela “Kentukis”, de Samanta Schweblin.

Leituras essenciais: Quem são os pensadores negros que nos ajudam a entender o Brasil e o mundo?

Foram as editoras independentes, como Moinhos e Mundaréu, que desde cedo assumiram a dianteira do filão. Em janeiro, as duas casas se uniram para criar o Tortilla, clube de leitura dedicado exclusivamente ao segmento, que hoje conta com cerca de 200 assinantes.

— Buscava publicar nomes que estivessem escrevendo na contemporaneidade, e que já fossem reconhecidos em seus países, mas não aqui — diz Nathan Magalhães, da Moinhos. — E, quanto mais eu pesquisava, mais as obras de autoras latino-americanas iam aparecendo. São narrativas que usam seu poder de persuasão para que o leitor fique até o fim da história.

Minha poesia, minhas regras: Antologia repete clássico de 1976, mas agora com seleção só de escritoras

Apesar do idioma em comum, ainda é difícil para escritores latino-americanos terem seus livros circulando pelos países vizinhos. Autora de “A cachorra” (Intrínseca), Pilar Quintana lembra que, muitas vezes, ainda é preciso primeiro ser reconhecido na Espanha para depois ganhar espaço em seu próprio continente. Por outro lado, a situação vem mudando graças ao surgimento de mais editoras independentes, acredita ela.

— Não me atrevo a dizer que há um boom latino-americano, mas creio que há muitas obras de mulheres que são novas e assombrosas — diz Quintana. — Seus livros comovem.

Cinco livros da 'insólita' literatura latino-americana

“Rinha de galo” (Moinhos), de Maria Fernanda Ampuero. No desconcertante conto que abre o livro, uma menina explorada sexualmente por criadores de galos se banha no sangue das aves mortas nas rinhas. Com o ritual macabro, consegue repelir seus abusadores.

“As coisas que perdemos no fogo” (Intrínseca), de Mariana Enríquez. Os contos combinam crítica de costumes e terror psicológico, tendo como mote uma série de assassinatos, desaparecimentos e corpos mutilados nos bairros escuros e decadentes das cidades argentinas.

“A cachorra” (Intrínseca), de Pilar Quintana. Entre beleza e violência, a escritora colombiana discute o lugar das mulheres na sociedade contemporânea. Uma mulher sem filhos inicia uma intensa relação de amor e ódio com uma cachorra adotada que engravida.

“Distância de resgate” (Record), de Samanta Schweblin. Trata-se de mais uma perturbadora história sobre maternidade, que reinventa a geografia do campo como um espaço de medo e perigo. Dando um toque sinistro à realidade, ela puxa os efeitos do agrotóxico para o centro de sua narrativa marcada pela urgência.

“Temporada de furacões” (Mundaréu), de Fernanda Melchor. A trama policial em uma cidadezinha perdida no México envolve bruxas mitológicas, superstições, miséria, misoginia e violência institucional.

  翻译: