Livros
PUBLICIDADE

Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

José Henrique Bortoluci se preparava para entrar no chuveiro quando recebeu um telefonema de sua editora. Precisou se sentar no chão do banheiro quando ouviu a notícia. Rita Mattar, da Fósforo, avisava que a editora inglesa Fitzcarraldo estava interessada em publicar “O que é meu”, sua obra de estreia, que chega hoje às livrarias. Conhecida por editar autores que arrematam o Prêmio Nobel de Literatura (Olga Tokarczuk, Annie Ernaux), a Fitzcarraldo só tinha um título brasileiro no catálogo: “Macunaíma”, de Mário de Andrade. Coincidentemente, a rapsódia modernista se passa em um cenário que atravessa o livro de Bortoluci: a Amazônia.

“O que é meu” narra a história do autor, cujo talento para os estudos o livrou da pobreza; as histórias de seu pai, caminhoneiro que desbravou o Norte do país e descobriu um câncer de intestino durante a escrita do livro; e a história do projeto de ocupação da Amazônia, levado a cabo na ditadura militar e que resultou na destruição de parte da floresta, no avanço do garimpo ilegal e no massacre de povos indígenas.

Outras nove editoras estrangeiras também compraram “O que é meu”: Iperborea (Itália), Arbeiderspers (Holanda), Grasset (França), Norstedts (Suécia), Literatura Random House (Espanha e América Latina), Companhia das Letras (Portugal), Vinter Forlag (Dinamarca), Aufbau (Alemanha) e Aschehoug (Noruega). Não é sempre que isso acontece. Dá para contar nos dedos os autores brasileiros que chamaram a atenção do mercado internacional antes mesmo de serem publicados no país ou traduzidos para o inglês, como Martha Batalha (“A vida invisível de Eurídice Gusmão”) e Geovani Martins (“O sol na cabeça”). Na Espanha, na França e na Noruega, mais de uma casa se interessou pelo livro do paulista, que foi disputado em leilão.

Fosso biográfico

Bortoluci nasceu em Jaú, no interior de São Paulo. Tem 38 anos, é professor de Sociologia na Fundação Getúlio Vargas e sócio da consultoria Maranta, especializada em democracia, inteligência política e sustentabilidade. É filho de Dirce e José (conhecido na cidade como Didi e, na estrada, como Jaú). Os pais não concluíram o primário. Nenhum dos dois se interessa por política. Não importa quem ganhe as eleições, “no outro dia a gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito”, repetem. Dirce foi operária, faxineira, copeira e costurava para fora. Didi começou a trabalhar na roça ainda criança. Foi mecânico e, aos 22 anos, virou caminhoneiro. O dinheiro era pouco, mas ele sempre voltava para casa cheio de histórias. Quando era criança, Bortoluci pensava na Transamazônica como “a rodovia do meu pai”.

“O fosso biográfico que me separava dos meus pais aumentava a cada ano escolar”, escreve o autor, que, mais velho, percebeu que “meu sucesso escolar não era só meu, mas uma espécie de empreendimento familiar”.

Bortoluci sempre se destacou nos estudos: ganhava concursos de redação, medalhas em olimpíadas de matemática e astronomia e viagens a congressos e encontros internacionais (custeadas com rifas que o pai organizava e ajuda de amigos da família). Depois de tanto estudo, percebeu que o vocabulário acadêmico adquirido era incapaz de nomear o Brasil que emergia das histórias do pai.

— Na boca dos meus professores, apareciam palavras que eu já tinha ouvido na infância, como Transamazônica, por exemplo, mas os significados não coincidiam. Me dei conta de que a história que o meu pai contava não era a história crítica contada nos livros. Não porque fosse uma história reacionária, mas porque se trata de uma história vivida, que tem a ver com a nossa classe social — diz o escritor, que, sem nenhuma explicação, perdeu o sotaque caipira aos 13 anos. — Havia encontros entre as histórias pessoais dele e a história do país. Mas havia também enormes desencontros. São formas diferentes de narrar, de descrever a realidade.

Bortoluci combina esses diferentes registros em “O que é meu”: as memórias do filho que ascendeu e ainda se lembra do desejo infantil por mercadorias que a família não podia comprar, as análises rigorosas do sociólogo sobre a tragédia brasileira, as entradas do diário da mãe (reproduzidos com autorização dela, diga-se) e a voz do pai, que narra suas histórias com uma linguagem própria, afetuosa, em que nem sempre verbos concordam com sujeitos. “Só podemos falar a nossa própria língua quando acertamos as contas com a língua de nossos pais”, escreve Bortoluci, que transformou o livro em uma orgulhosa reflexão sobre o que fazemos com as palavras que herdamos.

— Só desenvolvemos uma relação autônoma e livre com o mundo quando não desprezamos nossa origem. Nossa herança é também a cultura da classe social em que nascemos. Foram língua, os gestos e os gostos de nossos pais que nos colocaram no mundo — explica. — O livro é um acerto de contas, mas não no sentido de eliminar o que quer que seja, mas de entender o que não é meu, aquilo de que eu posso abrir mão porque não me interessa mais, e aquilo que é meu, que sempre vai ser meu, independentemente da minha vontade.

Câncer-metáfora

Bortoluci já tinha o livro na cabeça quando o pai foi diagnosticado com câncer de intestino, em dezembro de 2020. O tratamento foi incorporado à obra. Várias histórias em “O que é meu” foram ouvidas pelo autor em quartos de hospital. O câncer se torna uma metáfora da degradação ambiental que o pai testemunhou nas estradas. E vice-versa. “Hoje eu tô um desastre ecológico”, brinca Didi sobre os efeitos da doença. “Assim como a devastação da floresta, o câncer é a encarnação do evangelho do crescimento a qualquer custo”, escreve seu filho.

A reflexão sobre problemas brasileiros (o projeto desastroso de integração da Amazônia, a deterioração política do país) e também sobre questões que se repetem independentemente da geografia (a exploração da classe trabalhadora e do meio ambiente, a doença, as relações entre pais e filhos) é um dos trunfos de “O que é meu” segundo editores estrangeiros ouvidos pelo GLOBO. Pietro Biancardi, da italiana Iperborea, afirma que o livro viaja com relativa facilidade porque dá informações suficientes a respeito do Brasil para um leitor que saiba pouco a respeito do país, mas não se perde em detalhes e referências culturais que poderiam atrapalhar a tradução.

José Bortoluci, o Didi, pai do autor de "O que é meu" (Fósforo) — Foto: Acervo pessoal
José Bortoluci, o Didi, pai do autor de "O que é meu" (Fósforo) — Foto: Acervo pessoal

Tamara Sampey-Jawad, da inglesa Fitzcaraldo, compara José Henrique Bortoluci a autores “cujas reflexões pessoais sobre a alienação de classe apontam para preocupações sociais e nacionais mais amplas”, como Annie Ernaux e Édouard Louis.

— “O que é meu” é eficiente em ligar o pessoal e o político, a saúde de um homem e a história de uma nação. É um texto que dialoga com obras de história oral, como as de Svetlana Aleksiévitch (Nobel de Literatura que escreve sobre a herança soviética) e livros de autores imigrantes que examinam a própria herança, como Ocean Voung (americano de origem vietnamita) — diz ela.

Diretora editorial da Fósforo, Rita Mattar imaginava que “O que é meu” tinha potencial para fazer barulho tanto aqui quanto lá fora, mas se surpreendeu com a rapidez com que o livro ganhou o mundo.

Embora a Fósforo tivesse apresentado o projeto do livro a parceiros internacionais já havia algum tempo, foi depois da última Feira de Frankfurt, em outubro do ano passado, que o livro despertou de vez o interesse estrangeiro.

Mattar concorda que Bortoluci é um parente próximo dos autores contemporâneos que transitam entre a não ficção literária e o ensaio, mas faz uma ressalva:

— Ele de fato entra nessa prateleira específica, mas tem um cara própria. Como todo mundo que tem uma família, ele consegue se inserir e se diferenciar.

De volta à boleia

Bortoluci afirma que a escrita do livro fortaleceu os laços familiares (ele também tem um irmão, João Paulo, editor de livros didáticos) e o reconciliou com Jaú, cidade com que “estava brigado” desde as últimas eleições. Tanto que haverá dois lançamentos: um em São Paulo, na Megafauna, em São Paulo, no dia 22, e outro em Jaú, no Espaço União Livraria e Café, no dia 14 de abril.

— Quando contei para os meus pais que o livro ia ser publicado no exterior, meu pai estava muito fraco — lembra Bortoluci. — E minha mãe disse para ele: “Trate de não morrer para você ver isso acontecendo, hein?”

Didi deu ouvidos à mulher. Recentemente, passou por uma cirurgia para a retirada do câncer e até já voltou a dirigir.

Mais recente Próxima Crítica: Margaret Atwood, muito além de ‘O conto da aia’
Mais do Globo

Segundo Butantan, o maior predador dessa serpente é o homem, que além de matar os animais, também prejudica o habitat natural e reduz a expectativa de vida da espécie

Anaconda: cobra encontrada morta em rio do Tocantins é da espécie sucuri-verde e pode chegar a sete metros; conheça

Judi Dench e Siân Phillips foram aceitas após campanha contra a regra considerada arcaica e símbolo da supremacia masculina em lugares de poder e influência

Atrizes britânicas são primeiras mulheres admitidas em clube de Londres reservado aos homens

Empresa diz que medida trava inovação e que pode atrasar benefícios do uso de inteligência artificial no Brasil

Meta diz que decisão do governo de suspender uso de dados para treinar IA é 'retrocesso'

A ex-BBB apontou falas de Renata Meins, consultora de 'imagem pessoal' sobre mulheres transsexuais como desrespeitosas e cruéis

'Transfobia': Ariadna Arantes se revolta com 'coach' que afirma não atender mulheres trans em curso de visagismo

Governo determinou que empresa suspenda prática no Brasil. Na Europa, uso de informações para treinamento de IA foi adiado

Veja como a Meta coleta dados de Facebook e Instagram para treinar seus robôs de IA

Crescimento de Vojvoda e Artur Jorge, e saídas de Cuca e Diniz colocam estrangeiros entre os cinco primeiros

Ranking de Técnicos: na ponta, Tite, do Flamengo, é único brasileiro no top-5 recheado de estrangeiros

Resultado do Festival de Parintins 2024 foi divulgado nesta segund-feira (1); campeão deste ano é o Boi Caprichoso

Quem ganhou o Festival de Parintins 2024?

Com alta do dólar e do petróleo, diferença entre o valor cobrado no Brasil e no exterior é o maior desde meados de abril

Defasagem no preço da gasolina praticado pela Petrobras já chega a 19%

Influenciadora compartilhou clique com a sertaneja nas redes e ganhou comentário da mãe

Lauana Prado surge em nova foto com Tati Dias, recebe apoio da sogra e a elogia: 'A melhor do mundo'
  翻译: