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Por — São Paulo

Em 14 de março de 1895, o jornal carioca O País noticiou que certa Madame Pires fora “muito apreciada” no carnaval de São Paulo. O maranhense Coelho Neto (1864-1934), o “príncipe dos prosadores brasileiros”, elogiou seu “corpo duplo” no poema em prosa “Ode fescenina”: “Sexo indeciso que participas da graça feminina de Vênus e do esplendor maravilhoso e másculo de Apolo, tu que és como Diana na carne viril.” Vários rapazes se apaixonaram por Madame Pires, disse o jornal. Mas as moças apontavam-lhe defeitos: “Lábios muito grossos, olhos pequeninos, fisionomia atrevida.” No dia 16, tudo se esclareceu: a sensação do carnaval paulistano era, na verdade, “um distintíssimo jovem paulista, o Sr. José Pires Filho, que se fantasiou de mulher”.

Embora seja provável que Coelho Neto desconhecesse a identidade de Madame Pires, não é de se estranhar que sua figura “mista” tenha lhe chamado a atenção. O escritor era fascinado pelo que na época era chamado de “andrógino” ou “hermafrodita”, ou seja, pessoas intersexuais ou que transitam entre masculino e feminino.

Erotismo

Considerado símbolo do atraso pelos modernistas, o maranhense tinha verdadeira obsessão pelo erótico e investigou como poucos a diversidade sexual. Escalou personagens homossexuais e transgêneros e retratou práticas tidas como perversões. No conto “O fetichismo”, deu voz a um sádico: “A mulher que mais amei foi uma vítima. Eu gozava com seu sofrimento e martirizava-a para gozar.”

Coelho Neto é o escritor que mais aparece em “O homem que passou por baixo do arco-íris”, antologia organizada por César Braga-Pinto, que recolheu contos brasileiros publicados entre 1880 e 1950 que tematizam a dissidência sexual, isto é, “a gama de comportamentos sociais e performances de gênero que durante décadas foram tachadas de heterodoxas, anormais, doentias e, em muitos casos, simplesmente esquisitas, excêntricas ou extravagantes”. As histórias apresentam desde personagens LGBT a mulheres que recusam estereótipos de gênero (como Zulmira, do conto “Ciúmes”, de Graciliano Ramos) ou se entregam a diversas taras (protagonistas de Júlia Lopes Almeida e Lygia Fagundes Telles, por exemplo, bebem o sangue de seus parceiros).

Professor da Universidade Northwestern, nos EUA, Braga-Pinto também é autor de “Poses e posturas”, reunião de ensaios sobre autores que exploraram a sexualidade, como Raul Pompeia, João do Rio e Mário de Andrade, a “Santa Trindade Queer da Literatura Brasileira”.

O livro inclui o texto “A sexualidade de Mário de Andrade” publicado originalmente em 2022, em meio às comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna. Na época, colegas parabenizaram Braga-Pinto por ter finalmente tirado o modernista “do armário”. O subtítulo, porém, era uma brincadeira com “a alegria é a prova dos nove”, afirmação do “Manifesto Antropofágico”, de Oswald de Andrade, e não uma comprovação da homossexualidade do modernista.

Mário é autor de quatro contos presentes em “O homem que passou por baixo do arco-íris”, como “Frederico Paciência”, no qual o narrador desenvolve uma amizade ambígua com o personagem-título: “Como estava bom, era quase sensual, a gente assim passeando os dois, tão tristes...” O texto é tido como autobiográfico.

Mapear a dissidência sexual na literatura brasileira, afirma Braga-Pinto, é também investigar um tema caríssimo ao autor de “Macunaíma”: a identidade nacional. Ele explica que, à medida que se construía o mito de uma “nacionalidade viril”, autores “afeminados” ou pouco patriotas acabaram renegados, como João do Rio. Cosmopolita e admirado por Mário, o carioca só veio a ser redescoberto recentemente “porque a questão do nacional e do nacionalismo passou a ser questionada”. Para o antologista, a investigação da dissidência sexual na literatura pode até alargar as noções de brasilidade formuladas pelos modernistas.

De qual Brasil Mário falava? Se incluirmos a sexualidade, vamos perceber que se trata de uma nação que não se resume a uma brasilidade masculina e branca. O Brasil de Mário é muito mais múltiplo do que imaginam os estudiosos do modernismo — diz.

Recusa de critérios morais

“O homem que passou por baixo do arco-íris” se insere em um projeto de resgate da produção literária nacional interessada na sexualidade que resultou em obras como “M(ai)s: antologia sadomasoquista da literatura brasileira”, de Glauco Mattoso e Antônio Pietroforte, e “O corpo desvelado” e “O corpo descoberto”, organizadas por Eliane Robert Moraes.

— O mérito desse tipo de compilação é recusar critérios morais como balizadores da literatura — diz Eliane, considerada a maior estudiosa do erotismo no país. — Esses livros não seriam possíveis sem as intervenções bem-vindas dos ativismos feministas e pela diversidade sexual, que colocaram em xeque a própria noção de obscenidade, redefinindo a ideia de moral, que é processo sempre dinâmico e assentado em valores provisórios.

A maior parte dos textos incluídos em “O homem que passou por baixo do arco-íris” foi escrita na virada do século XIX para o XX, quando era comum a literatura falar de sexo usando um vocabulário médico da época, que considerava patológicos os comportamentos que fugissem à norma. Portanto, não é de se estranhar a presença de textos que reprovam a dissidência sexual e se refiram pejorativamente a pessoas negras e miscigenadas. “O sinhazinha”, de João Luso, é protagonizado por um ex-escravizado afeminado (“mulato dengoso”) que é alvo constante de violência: “Quando não há polícia, chegam a agredi-lo, levam-no aos safanões pelas calçadas, espicaçam-no com as bengalas.” Em “O homem que passou por baixo do arco-íris”, conto de D. Martins de Oliveira, uma mulher negra e transexual é forçada pela polícia a viver como homem.

A “feminilização do mulato” era comum na literatura da época e aparece até na obra de Gilberto Freyre, autor de “Casa-grande & senzala”, explica Braga-Pinto. O objetivo, diz ele, era neutralizar quaisquer ameaças à hegemonia do homem branco. Há pelo menos uma representação de um negro gay e viril em nossa literatura: o marujo Amaro, de “O bom crioulo”, romance de Adolfo Caminha publicado em 1895. Mas o retrato não é de todo positivo: a homossexualidade aparece como desvio, e Amaro é descrito de forma animalesca.

Do pejorativo à redenção

Braga-Pinto reconhece que a literatura é um “arquivo cheio de violências”, em especial quando se trata de raça e sexualidade.

— Lemos esses contos com desconforto, mas eles são importantes para entendermos a história da homofobia e da transfobia no Brasil. Talvez possamos reimaginá-los e recontextualizá-los, como fizemos com o termo “queer”, que era pejorativo em sua origem — afirma. — Recuperar esses textos é de fato um risco. Não sei como uma pessoa trans vai se sentir lendo. Ela vai se sentir violentada? Ou vai enxergar neles uma possibilidade de responder, de reagir?

Para Eliane Robert de Moraes, um antologista não deve “cancelar nenhum escritor”, mas “contextualizar todos”.

— A literatura brasileira traz as marcas da moral cristã e do jugo patriarcal, que, aliados a outras formas de repressão, criaram mecanismos eficazes de censura às manifestações libidinosas. Alguns deles se mantêm vivos até hoje — diz ela. — Ao nos recusarmos a substituir uma “censura do mal” por uma “censura do bem”, rompemos com perspectivas maniqueístas que às vezes ameaçam até mesmo os ativismos e firmamos um pacto com a ideia de liberdade sexual. Convenhamos, não é pouco.

Tara, amor, cio e arco-íris

“Depois o medo que tivera de perder Gustavo, se ele também soubesse da desgraça que pesava sobre os seus…

Maria Lúcia passou a mão pela fronte úmida de suor gélido; recordou-se daquela frase que ouvira: ‘o louco, geralmente, ataca as pessoas que mais estima…‘. Pensou em Gustavo: impossível! Amava-o muito…”

(Lygia Fagundes Telles, “Tara”)

Só então a curiosidade de saber quem eram os dois jovens, tão lindos! Que lá estavam no lindo quarto, juntos no mesmo leito, fê-lo recorrer ao livro em que eles haviam deixado as assinaturas, e então, leu estes dois nomes:

— Amor.

— Ciúme.”

(“Os gêmeos”, Coelho Neto)

“Nos seus 43 anos de idade, Mademoiselle estava tomada por um vendaval de mal de sexo. Não se compreendia, nunca tivera aquilo em sua virgindade tão passiva sempre. Amara sim, duas vezes, mas nunca desejara. Agora, as meninas tinham chegado, era o vendaval, tão estalantes de experiências próximas, que puseram tuaregues no corpo de Mademoiselle. E Mademoiselle estava... só um verbo irracional dirá no que Mademoiselle estava: Mademoiselle estava no cio.”

(“Atrás da Catedral de Ruão”, Mário de Andrade)

“— O senhor não sabe, seu delegado? Eu passei debaixo do arco-íris. Estava se preparando um temporal, e aquele arco bonito se desenhou no céu. Haviam me dito que, se alguém atravessasse por baixo dele, viraria para o outro sexo. Como andasse louco para ser mulher fiz o que me recomendaram; quando cheguei do outro lado, senti um nervoso, tive uma vertigem e, ao me levantar, estava bem como queria.”

(“O homem que passou por baixo do arco-íris”, de D. Martins de Oliveira)

Serviço:

"O homem que passou por baixo do arco-íris"

Organizador: César Braga-Pinto. Editora: Alameda. Páginas: 598. Preço: R$ 149,90.

"Poses e posturas: performances de gênero e sexualidade na literatura brasileira (1850-1950)"

Autor: César Braga-Pinto. Editora: Alameda. Páginas: 332. Preço: R$ 94.

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