Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Em 3 de junho de 1924, por volta do meio-dia, Franz Kafka mergulhava em um sono tranquilo. Internado em um sanatório próximo de Viena, na Áustria, o escritor tcheco foi vencido por uma tuberculose e pela desnutrição, aos 40 anos.

Admirado por um pequeno círculo intelectual, Kafka não morreu como um autor famoso. A maior parte de sua obra não havia sido publicada e ele orientou seu testamenteiro, Max Brod, a queimar a quase totalidade de seus originais. Brod desobedeceu a vontade do amigo, um gesto que mudou as letras do século XX. Cem anos depois, Kafka está mais vivo do que nunca — cada vez mais lido, estudado, traduzido e reinterpretado. Sua escrita enigmática e ressonante alterou nossa percepção do mundo.

— Os ecos das ideias de Kafka e sua forma de escrever estão sempre no meu imaginário — diz a escritora Ana Paula Maia, que em sua versão de “A metamorfose” imagina o protagonista despertando como um homem em situação de rua na metrópole de São Paulo.

Já no texto da psiquiatra, crítica e romancista paulistana Natalia Timerman, o narrador é metamorfoseado no mais contemporâneo dos objetos: um celular.

Uma das razões para a permanência da obra de Kafka é sua capacidade de ser ao mesmo tempo clássica e contemporânea, cristalina e opaca, permitindo que qualquer um projete os seus anseios. O termo “kafkiano”, por exemplo, ultrapassou a literatura e passou a ser aplicado a qualquer cenário opressor, absurdo e/ou sinistro.

Kafkianos dourados

Autor de uma monumental biografia de Kafka (o primeiro volume, “Os anos decisivos”, foi publicado no Brasil pela Todavia), o austríaco Reiner Stach acredita que os escritos do tcheco têm aquele algo a mais que faz cada nova geração sentir “um impulso de se envolver com eles novamente”. “Não há nenhum outro autor do século XX que tenha atraído e inspirado tantas pessoas criativas, às vezes extrapolando os limites da literatura — a exemplo de ilustradores e pintores, diretores de cinema, compositores, atores e profissionais do teatro”, escreveu Stach, em um artigo publicado no site do Goethe Institute, em janeiro deste ano.

Franz Kafka — Foto: Reprodução
Franz Kafka — Foto: Reprodução

O termo foi traduzido para as artes visuais na exposição “KAFKAesque”, que abre na próxima segunda-feira (3) na galeria DOX, de Praga, e reúne obras de 30 artistas contemporâneos. Segundo o curador Otto M. Urban, “cada geração tem sua versão de Kafka”. Se nos anos 1950 e 1960 ele foi reinterpretado pelo olhar existencialista, e nos 1970 e 1980 pelo surrealista, hoje as novas tecnologias oferecem uma nova perspectiva. Uma das obras mais perturbadoras da exposição é “Insilico”, do inglês Matt Collishaw: um esqueleto de cervo que mexe de acordo com a intensidade das agressões que recebe dos usuários da rede social X.

Para o poeta baiano Jorge Augusto, um dos convidados a reinterpretar Kafka, o autor tcheco remete a um compromisso entre literatura e demanda coletiva.

— Ele pôs a literatura a serviço de uma causa — diz. — Mas, mais do que isso, dá uma forma a ela, de modo que todos entendam o que deve ser combatido. É também o que faz um escritor como o brasileiro Lima Barreto (1881-1922), seu contemporâneo longínquo. Há nesse exercício uma radicalidade ética: insistir em dizer o que a língua, e às vezes a própria literatura, teima em esconder.

Clássico retraduzido

Leia a seguir a tradução exclusiva do alemão de Guilherme Gontijo Flores, poeta e ensaísta, autor de “História de joia”, para os primeiros parágrafos de "A metamorfose":

Quando Gregório Samsa numa manhã qualquer acordou de sonhos controversos, notou na cama que tinha virado num bicho bizarro. Estava de costas, duras que nem couraça, e, erguendo um pouco a cabeça, viu a pança protuberante, marrom, cortada por nervuras arqueadas, onde mal se firmava a coberta, quase caindo de vez. As várias pernas, deploravelmente finas em relação ao tamanho de sempre, tremiam desamparadas diante dos seus olhos.

— O que foi que me aconteceu? — pensou.

Não era sonho. O quarto, um quarto humano pra valer, só meio pequeno demais, continuava calmo entre as quatro paredes familiares.

Clássico recriado

A pedido do GLOBO, escritores brasileiros recriam, cada um no seu estilo, o famoso início do texto mais célebre de Franz Kafka. Confira:

Geraldo Carneiro

Pensei em fazer uma paródia da abertura d’“A metamorfose”, contrabandeando Gregor Sansa para os subúrbios do Ocidente. Mas há tanta porcaria no Rio de Janeiro que o “inseto monstruoso” de Kafka se revoltaria com a atmosfera moral e cívica daqui e pediria para ser traduzido de volta para Praga. Ou se mudaria para um famoso condomínio na Barra da Tijuca, porque lá qualquer barata vive feliz feito pinto no lixo.

Geraldo Carneiro, 71 anos, é poeta, letrista, dramaturgo e membro da ABL, autor de “Folias de aprendiz”

José Falero

Depois de dormir o sono da bruxa, tranquilo que nem gato no canil, o nego Greg acorda e se liga que tava virado num bicho, tipo o Rodnei Baratão do filme, ou se pá uma espécie de besouro. Primeiro sentiu as paleta dura na cama; daí, na sequência, deu um bico pra baixo e não sobrou dúvida: a barriga inchada e marrom, cheia de gominho, a coberta escorregando nela, quase se indo ao chão. Uma pá de perna, tudo fininha, se agitando no ar.

— Bah, colé que deu comigo, nasquié? — pensou.

Não tava de louco. O barraco, impróprio até pra bicho mas igualzinho os outro barraco tudo da favela, tava ali, indecente e triste entre as quatro parede de compensado de sempre.

José Falero, 37 anos, é escritor, autor do romance “Os supridores” e do livro de contos “Vila Sapo”

Jorge Augusto

O calor infernal daquele cubículo apertado acabara por fazer Gregor Samsa sonhar que sua pele derretia sob o lençol. Suando como um doente naquele forno de cimento, acordou meio atordoado. Não sentiu o peso costumeiro das pernas e dos braços. O inquietava uma sensação estranha de ter muitos braços e pernas e julgou que ainda sonhava. Impaciente, pois já havia passado da hora de levantar, tentava em vão acordar do pesadelo. Até que sem espanto entendeu que estava acordado e notou desconcertado suas pernas finas e seu corpo estrambólico. Havia se transformado num inseto.

Olhou ao redor, do jeito torto e desengonçado, que seu novo corpo lhe permitia: sapatos, mala, material de trabalho, espelho, papéis, estava tudo ali, nada além dele tinha mudado, naquele pequeno mundo do quarto.

Jorge Augusto, 42 anos, é professor e poeta, autor do livro de poemas “O mapa da casa”

Ana Paula Maia

Quando certa manhã Edmilson acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se com a cara amassada no meio-fio e sem um centavo furado nos bolsos. Naquele momento, desejou ser um inseto, porque sentia-se como um. Como o gafanhoto que estava pousado no tronco da árvore de onde alguma sombra era projetada. Seria um dia miserável, pensou Edmilson. O calor vindo do asfalto quente por causa do trânsito de São Paulo já lhe causava certa náusea. Até a semana passada Edmilson tinha um trabalho como descarregador de caminhão no Ceasa. Agora, não tem mais trabalho, e a dona da pensão em que morava havia-o expulsado na noite passada. Gostaria de acreditar que ainda tinha ao menos seu quartinho na pensão, mas precisava encarar a realidade: havia se transformado em um morador de rua. Sem CEP ou trabalho.

— O que aconteceu comigo? — pensou.

Não era um sonho, muito menos Edmilson havia se transformado num inseto grotesco. De pé, secou o rosto com a manga da camisa encardida e foi até uma fonte de água lavar o rosto. Assim é sua nova rotina. Observou o gafanhoto e suspirou. Que sorte tinha aquele inseto.

Ana Paula Maia, 46 anos, é escritora e roteirista, autora do romance “Enterre seus mortos”

Natália Timerman

Eu era um monstro. Era manhã, era um dia comum, não havia sido exatamente um pesadelo o que me atormentou a noite, só um par de sonhos intranquilos nas poucas horas em que consegui dormir. Ali estava eu, deitado de costas sobre uma camada grossa de adjetivos. Tentei me desvencilhar deles, daquelas placas de centenas de palavras amalgamadas, mas elas já faziam parte do meu corpo. Percebi quando tentei arrancá-las, percebi a dor (é a dor a cola do corpo: nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar), fui rodando a cabeça para alcançar com os olhos os meus limites, mas eles já não existiam, agora eram verbos, agora eram cores, uma rede incessante entre mim e o mundo.

— O que aconteceu comigo? — pensei.

Era e não era um sonho. As palavras se multiplicavam em figuras, em movimento, em sons, eu me expandia para ocupar o quarto e suas quatro paredes bem conhecidas. Só não havia mais corpo, não havia cheiro. As quatro paredes agora eram eu, metamorfoseado num celular.

Natalia Timerman, 43 anos, é médica psiquiatra e escritora, autora do romance “Copo vazio”

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