Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Não foram poucas as vezes em que o historiador e comunicólogo Ricardo Santhiago ouviu: “Por que uma biografia de alguém tão pouco conhecido?”

Ele escrevia sobre a paulistana da Mooca Miriam Ângela Lavecchia, a Miriam Batucada, cantora surgida para o efêmero estrelato em 1966, no programa de TV de Blota Jr., na TV Record, com uma habilidade sem igual para entreter a plateia com piadas, imitações e a batucada de uma mão na outra – razão do apelido que colaria como sobrenome artístico vida afora.

A carreira de shows em boates e pequenas casas no Rio e em São Paulo, que lhe rendeu alguns compactos e dois LPs obscuros, além de participações esparsas em TV e no rádio, terminou de forma melancólica, aos 47 anos, em 1994, quando Miriam sofreu um infarto em seu pequeno apartamento em SP. Solitária em seus últimos dias, ela só teve seu corpo descoberto 19 dias após a morte.

“Miriam Batucada é que nem disco voador. Você sabe que existe, mas nunca viu. Todo mundo já ouviu falar, mas não sabe como é”, costumava dizer a artista em seus shows, numa estratégia autodepreciativa para arrancar gargalhadas.

— O livro foi uma aposta, que eu não sabia se se iria dar certo ou onde iria chegar — admite Ricardo, que esta quinta-feira lança em São Paulo, na Casa Fluida, “A história incompleta de Miriam Batucada” (biografia que acabou ficando com quase 400 páginas), junto com “Infiel, marginal e artista”, CD por ele produzido, no qual intérpretes como Zeca Baleiro, Maria Alcina, Cida Moreira, Silvia Machete e Edy Star dão voz às músicas de Miriam.

Uma estranha no samba

“A história incompleta” (que tem lançamento carioca dia 22, na Queerioca) dá conta de uma personagem rica e definitivamente talentosa, que num Brasil ainda cruelmente escrutinador das mulheres, surgiu estranha: magra, branca, de óculos e com o sotaque italianado dos paulistanos, insistindo em fazer samba – e muito samba de breque, sempre se pautando pelo humor e a crítica social.

Era uma mulher com uma “inteligência e rapidez do pensamento realmente singulares”, como diz o autor, um temperamento visto como forte (que possivelmente, em sua visão, ocultava uma bipolaridade) e — o maior de todos os pecados naquele Brasil dos anos 1960 e 70 — um visual andrógino que não deixava fazer segredo sobre a complexa relação com a sua própria sexualidade.

— Até hoje a história da música brasileira é assexuada, especialmente em relação às mulheres. Pouco de discute a dinâmica e a implicação do prazer e do desejo, e da própria orientação sexual dentro de construção de trajetórias e de projetos estéticos — argumenta Ricardo, que no livro buscou abordar dois pontos fundamentais na trágica história de Miriam Batucada: a indústria cultural como uma máquina de construção e descarte de artistas e o apagamento do desejo dela de levar uma vida criativa, de construir uma vida não normatizada, “que é uma atitude profundamente queer”.

Capa do livro 'A história incompleta de Miriam Batucada', de Ricardo Santhiago — Foto: Reprodução
Capa do livro 'A história incompleta de Miriam Batucada', de Ricardo Santhiago — Foto: Reprodução

Mais tristemente ainda, Miriam morreu pouco antes de uma cantora como Cássia Eller iniciar um novo capítulo na música queer brasileira.

— Nos últimos 30 anos, esse panorama da MPB fica bem mais complexo e diversificado. Acho que a figura da Cássia também é um divisor de águas, e aí vem toda essa coisa de Ana Carolina e as meninas que vão dentro dessa tendência — diz Ricardo Santhiago. — Mas o que me espanta é o não reconhecimento da Miriam como uma figura que faz parte dessa genealogia de mulheres lésbicas públicas reconhecidas como corajosas. Ela fica completamente esquecida também dentro desse filão dissidente pela sexualidade.

O autor, de 40 anos, diz que não era um grande fã de Miriam Batucada antes de começar as pesquisas para escrever o livro.

— Inclusive, porque é muito difícil ser um grande fã da Miriam. Ela gravou muito pouco, e o que ela gravou também não é grandioso. As melhores coisas, ela fez no palco. Então a gente tem muito essa memória da Miriam que é a de um ouvir dizer. Ela se queixava do nome artístico, mas foi um nome muito forte, que ajudou muito ela — acredita.

Miriam, ele descobriu em entrevistas e gravações, costumava fazer espetáculos de intensa uma hora e meia de duração, às vezes em espaços muito simples.

— Parecia que você estava num grande teatro, porque ela fazia de tudo: cantava de improviso com a plateia, fazia números já ensaiados, soltava paródias e alguns clássicos do samba que iam trazer o público com ela para depois sempre colocar uma provocação por meio das obras autorais. Ela tinha pleno domínio dessa linguagem do palco — considera. — E na televisão é a mesma coisa, como dá para ver nas últimas entrevistas dela com o Clodovil e o Jô Soares. A Miriam tinha uma personalidade absolutamente magnética, estar diante dela era uma experiência muito forte.

Em sua trajetória artística de menos de 30 anos, Miriam Batucada conviveu com figuras como os apresentadores Chacrinha, Hebe Camargo e Cidinha Campos (uma de suas grandes amigas), o compositor Billy Blanco (seu parceiro), o cantor Paulinho da Viola e a jornalista Hildegard Angel. E fez parte de uma rica vida cultural, no Rio e em São Paulo, onde conseguiu se manter, aos trancos e barrancos, até a morte (“nos últimos anos, ela sobreviveu da noite, com um trabalho de crooner super digno”, diz Ricardo).

— A vida dela é a dobra do mundo, porque tinha personagens que vão desde as figuras popularescas com as quais ela convivia e tinha amizade até a fina flor da música brasileira. Acho que ela teve essa esperteza, essa malandragem logo no início da carreira de saber que teria que se dividir para poder aproveitar um pouquinho de cada uma dessas coisas — explica o autor. — A Cidinha me falou que a Miriam percebeu logo de cara que o tempo dela de celebridade dela seria ínfimo, e trabalhou com todas as forças para esgarçar esse tempo. Ela não tinha preconceito e ia entrando na onda.

Com Raul Seixas

Uma das figuras que apareceram em sua vida nos primeiros tempos no Rio de Janeiro foi Raul Seixas, que ainda era apenas um produtor da gravadora CBS. Ele a convenceu a embarcar, junto com Sérgio Sampaio e Edy Star, no LP “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” (1971), ignorado em sua época, mas que ganhou notoriedade décadas depois, no rastro do culto póstumo a Raul.

— Para os mais jovens, uma das referências da Miriam é o “Grã Ordem Kavernista”, justamente um disco que não teve a menor relevância na trajetória dela — informa Ricardo. — A relação que ela teve com o Raul Seixas foi, primeiro, de paixão, e depois de ódio profundo (porque ele teria sido negligente na produção do compacto solo que ela gravou como contrapartida ao LP). Miriam achava que Raul tinha destruído a carreira dela ao sabotar a oportunidade na CBS pela qual ela tinha batalhado.

Capa do LP "Sociedade da Grã Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10", com Raul Seixas, Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star — Foto: Reprodução
Capa do LP "Sociedade da Grã Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10", com Raul Seixas, Miriam Batucada, Sérgio Sampaio e Edy Star — Foto: Reprodução

O roqueiro (com o qual, revela o livro, ela acabou fazendo as pazes em São Paulo, pouco antes de sua morte, em 1989) foi um dos muitos “abandonos”, segundo Ricardo, da vida de Miriam Batucada.

O mais sério deles, o de sua primeira namorada, a que a convenceu a tentar a vida no Rio, e com quem viveu os primeiros tempos na cidade, como um discreto casal: Flamínia (um nome fictício usado no livro, já que a dona do nome verdadeiro se recusou a falar com o autor sobre o enlace amoroso, confirmado por muitos dos que conviveram com as duas na época). O namoro terminou de forma dolorida para Miriam, depois que Flamínia a trocou por uma atriz de TV que ficaria muito conhecida, e que, pela mesma razão, também é identificada com nome fictício.

Ricardo Santhiago começou o livro com uma grande entrevista com Mirna, irmã mais velha de Miriam, que mora em Maringá e de quem, depois de horas de entrevistas gravadas, recebeu o acervo pessoal da artista, com cartas, diários falados dos últimos anos de vida. A partir deles, o autor descobriu uma existência “compartimentada”.

— A Miriam seccionava as áreas de si mesma que mostrava aos outros. Então, até mesmo os amigos mais íntimos praticamente nada sabiam sobre a vida amorosa e afetiva dela. E, por outro lado, as pessoas com quem ela teve relações pessoais, de amor e de afeto, não tinham acesso à sua família. Eu me vi diante de um fractal, cada um que vinha me dava uma visão diferente da Miriam, não convergente. Ela era uma pessoa que se relacionava muito a dois, a três, não em grandes grupos. Hoje, eu brinco até que, dentre todas essas pessoas, eu sou a que mais conheceu a Miriam Batucada.

Um livro, porém, foi pouco para Miriam Batucada. Paralelamente, Ricardo investiu na produção, às próprias custas e com a colaboração dos artistas, de “Infiel, marginal e artista”, disco com as composições da artista nas vozes de outros e na sua própria (em “Ela” e “Muito bacana”, resgatada de antigas fitas). O disco, por enquanto, só existe em CD (futuramente, virará LP, mas não há planos de liberá-lo no streaming).

— Esse disco nasce de uma inconformidade minha (risos) — diz. — A Miriam poderia ter sido tanta coisa, apresentadora de televisão, entrevistadora, humorista, atriz... e na composição ela tinha muita coisa interessante a dizer, que os contemporâneos não tiveram ouvidos para escutar. Como historiador, não dá para dizer que ela era uma artista à frente do seu tempo. Toda pessoa é um produto do seu tempo, mas o tempo da Miriam não teve ouvidos para ouvi-la. No final dos anos 70, ela já estava fazendo música sobre o direito feminino ao orgasmo, sobre psicanálise e denunciando pessoas que ocultavam sua condição sexual, embora ela não falasse sobre a sua.

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