Cultura
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Por — Rio de Janeiro

Aos 11 anos, Othon Bastos entrou, por decisão de sua professora Eliete, numa disputa para ver quem representaria a turma na cerimônia de fim de ano da escola. Sua oponente, Vilma, leu um texto patriótico com eloquência cívica. Othon preferiu dizê-lo sem afetação, como se já conhecesse ideias do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956). Não só Vilma foi eleita, como Eliete, por quem nutria uma paixão platônica, lhe rogou uma espécie de praga: “Você me promete que nunca vai se meter com arte na vida!”

— Como eu nunca tinha pensado em fazer nada de arte, não me chocou tanto na hora. Mas isso ficou na minha memória: “Você me promete...”, “Você me promete...” Só fui fazer teatro muito tempo depois — conta ele, nascido em 1933 em Tucano, no sertão baiano, e que aos 6 anos foi morar no Rio com uma tia.

O menino superou o trauma, desistiu de ser dentista e se tornou um dos maiores atores brasileiros. Aos 91 anos de idade e 73 de carreira, Othon interpreta passagens de sua trajetória no espetáculo “Não me entrego, não!”, que tem ensaios abertos de sexta-feira a domingo no Teatro Vannucci, no Shopping da Gávea, no Rio, onde estreia no dia 14.

Vida no palco

A ideia surgiu quando ele assistiu a “Judy: o arco-íris é aqui”, com texto e direção de Flávio Marinho. Na peça, Luciana Braga representa Judy Garland, mas também conta histórias da vida da atriz e cantora americana. Essa mistura maravilhou Othon, que foi procurar Flávio, seu amigo de longa data, para propor algo que não sabia o que era. Tinha sido sob direção de Flávio que ele atuara pela última vez no teatro, há 17 anos, em “O manifesto”, texto do autor inglês Brian Clark em que interpretava um general.

— Othon me trouxe uma sacola de supermercado cheia de papéis — recorda o dramaturgo. — Não daria, ficaria uma palestra. Propus misturar a vida dele com coisas que ele gosta de dizer.

Autor e ator ressaltam que não é um espetáculo biográfico. Ficaram de fora momentos pessoais, como a morte da mãe (quando Othon tinha 2 anos), e priorizou-se o caminho profissional. Ele chega a reinterpretar personagens marcantes que fez no palco, como o Augusto de “Um grito parado no ar”, de Gianfrancesco Guarnieri, e o Lopakhin de “O jardim das cerejeiras”, de Tchékhov.

É, nas palavras de Flávio, “um monólogo disfarçado”, pois também está em cena Juliana Medela. A atriz funciona como a memória do ator, dando informações sobre sua carreira. Othon fica livre do lado objetivo (“O Google sabe muito mais coisas do que eu mesmo”, diz o ator) e se dedica a etapas importantes de uma trajetória em que o talento foi ajudado pela sorte.

— O acaso sempre foi meu amigo — afirma. — É o que dizia o Chico Xavier: se uma coisa pertence a você, ela vai chegar aonde você estiver.

No início da carreira, sem se sentir vocacionado para o ofício, foi encaminhado para o Teatro do Estudante, do ator e poeta Paschoal Carlos Magno. Começou a ver peças, como a histórica montagem de “Hamlet”, clássico de William Shakespeare, estrelada por Sérgio Cardoso. Paschoal decidiu levar um grupo para assistir a espetáculos na Europa. Em Londres, onde chegou a estudar, Othon pôde testemunhar em cena atores como Laurence Olivier, John Gielgud e Paul Scofield.

Othon Bastos como Tancredo Neves no filme 'O paciente' — Foto: Divulgação
Othon Bastos como Tancredo Neves no filme 'O paciente' — Foto: Divulgação

Na volta, estreou no coro de uma peça. Sua primeira grande oportunidade surgiu numa versão de “Otelo”, outra tragédia de William Shakespeare. Ele era o ponto (a pessoa que sopra o texto em eventuais esquecimentos do ator) de Walter Clark, então intérprete do vilão Iago e, no futuro, diretor-geral da TV Globo. Clark desistiu do papel, que ficou com Othon.

Cangaço (e cinema) novo

De volta ao seu estado natal, Bahia, mas em Salvador, ele estudou na escola de teatro da Universidade Federal da Bahia, onde conheceu a atriz Martha Overbeck, sua companheira há 57 anos. Também conheceu Glauber Rocha, que o chamaria para o papel que mudou sua vida: o Corisco de “Deus e o diabo na terra do sol”, filme que está completando 60 anos. É do personagem a frase “Não me entrego, não!”, título da peça que está estreando.

Por trás da escalação, lembra Othon, mais um caso de substituição:

— Glauber foi me procurar de casa em casa: “Onde é que mora Othon Bastos?” Estava sujo de poeira da viagem (do sertão para Salvador). Queria que eu fosse para Monte Santo no dia seguinte. O rapaz que ia fazer o papel de Corisco tinha outro filme e precisou sair.

Atuação que é ‘uma força da natureza’

Othon já era um ator político. Para a inauguração do Teatro Vila Velha, ensaiava “Eles não usam black-tie”, de Guarnieri. Sua maior influência era Brecht.

— Durante a viagem, falei com Glauber que, se em “Deus e o Diabo na terra do sol” era cinema novo, não podia ser cinema dos anos 1950, como “O cangaceiro” (filme de Lima Barreto). “Vamos fazer uma experiência brechtiana” — conta. — Se o filme deu certo, foi pela generosidade do Glauber, que, aos 24 anos, aceitou mudar a estrutura do filme. O roteiro original tinha flashback, Corisco conversava com Lampião, botava Lampião nas costas. Eu disse: “Deixa o Corisco narrar.”

Othon Bastos em “Deus e o diabo na terra do sol”: “Se o filme deu certo, foi pela generosidade do Glauber, que, aos 24 anos, aceitou mudar a estrutura”, conta — Foto: Reprodução
Othon Bastos em “Deus e o diabo na terra do sol”: “Se o filme deu certo, foi pela generosidade do Glauber, que, aos 24 anos, aceitou mudar a estrutura”, conta — Foto: Reprodução

A atuação de Othon foi tão impressionante que, nos quatro anos seguintes, ele recusou convites para ser cangaceiro, bandido, estuprador. Voltou ao cinema como o Bentinho de “Capitu”, adaptação de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. Em 1970, substituiu Walmor Chagas —que contraíra hepatite — em “Os deuses e os mortos”, de Ruy Guerra. E, em 1972, faria o trabalho que considera o melhor de sua carreira: o Paulo Honório de “São Bernardo”, versão de Leon Hirzsman para o romance de Graciliano Ramos.

— Consegui fazer um personagem completamente diferente do Corisco: para dentro, um homem da vingança, destrutivo, que acaba sozinho — afirma.

Ele, que atuou em outros filmes importantes como “Central do Brasil” (1998), teve como último protagonista o Tancredo Neves de “O paciente” (2018), de Sérgio Rezende. Hoje, se vê com uma atuação limitada.

— Virei um ator de participações. É muito difícil ter papel para a minha idade. Cada vez mais colocam a gente no armário. Tomam cuidado e guardam no armário direitinho — lamenta ele, que fez uma ponta em “Por um fio”, longa baseado no livro de Drauzio Varella e que ainda não estreou.

Na TV, esteve em dezenas de novelas. As três que lhe marcaram mais são “Os imigrantes” (TV Bandeirantes), “Éramos seis” (SBT) e “Império” (Globo).

Antes de começarem os ensaios, teve pneumonia e derrame na pleura, mas reagiu. Continua sendo, segundo Flávio, “uma força da natureza”.

— É a voz mais teatral que eu conheço. Ela enche o espaço — destaca o autor. — A peça é a radiografia de um artista brasileiro, mas com um talento excepcional, muito acima da média.

Othon gosta, especialmente, de uma frase da poeta americana Emily Dickinson que selecionou para o espetáculo: “Eu nasço contente todas as manhãs.”

— É preciso ter humor, alegria sempre — vibra.

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