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Biografia resgata história do primeiro embaixador negro do Brasil e joga luzes sobre racismo na diplomacia nacional

Nordestino e de família pobre, o escritor Raymundo Souza Dantas foi primeiro negro nomeado embaixador, sob críticas da elite; pessoas declaradamente negras ainda são minoria ínfima entre os que ingressam no Instituto Rio Branco
O embaixador Raymundo Souza Dantas Foto: Foto Luis Alberto / Agência O Globo/21-10-1971
O embaixador Raymundo Souza Dantas Foto: Foto Luis Alberto / Agência O Globo/21-10-1971

Nordestino de origem pobre e analfabeto até os 18 anos, Raymundo Souza Dantas (1923-2002) foi o primeiro negro a figurar no alto escalão da diplomacia brasileira . Sua nomeação pelo então presidente Jânio Quadros a embaixador do Brasil em Gana, em 1961, foi saudada por movimentos progressistas, mas também foi alvo de intensa campanha difamatória por parte da elite nacional, ressentida com a pressão para abandonar sua postura racista — ao menos de forma escancarada — nos anos do pós-guerra, quando veio à tona o genocídio de milhões de judeus pelo Estado nazista.

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No livro “Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador brasileiro negro”, lançado neste ano pela Saga Editora, Fábio Koifman, professor de História e Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), resgata esse capítulo quase esquecido da diplomacia brasileira e joga luzes sobre o racismo existente na carreira, com um número diminuto de diplomatas negros tendo conseguido atingir os cargos mais altos até hoje.

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‘Democracia racial’

Segundo o autor, o Brasil dos anos 1960 gostava de se apresentar como uma “ democracia racial ”, supostamente livre de preconceitos de cor. Mas isso não significava que as estruturas sociais haviam mudado de fato. Os exemplos de racismo que passaram a ser abertamente discutidos a partir de 1945 ainda persistiam, como a falta de negros nas escolas de oficiais das Forças Armadas e no Itamaraty.

— Em 1961, a elite brasileira já não podia dizer abertamente qual era o problema da indicação de Raymundo para um posto historicamente reservado à nata da sociedade — afirma Koifman. — Como pegava muito mal dizer que ele não servia como embaixador porque era negro, o argumento adotado foi que ele não era ninguém, não tinha expressão como intelectual, jornalista ou escritor, o que também não é verdade.

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Nascido em 1923 na pequena cidade de Estância, interior de Sergipe, a 66 quilômetros de Aracaju, Raymundo Souza Dantas aprendeu sozinho a ler e a escrever nos fundos de uma oficina tipográfica onde trabalhou no Rio. Entre meados dos anos 1940 e início dos anos 1960, seu nome já era conhecido na imprensa carioca, com publicações em diversos veículos, entre eles a revista ilustrada O Cruzeiro, editada pelos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, e o jornal Diário Carioca, onde se tornou próximo de figurões como Nelson Rodrigues e Otto Lara Resende.

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No livro, Koifman destaca uma publicação de 1946 do jornal A manhã que cita autores relevantes e promissores, incluindo Souza Dantas, que aparece ao lado de uma jovem Clarice Lispector e de Antonio Candido, mais tarde considerado um dos maiores críticos literários do Brasil.

— Souza Dantas foi nomeado embaixador na mesma leva que o escritor Rubem Braga e o pintor Cícero Dias, ambos também de fora da carreira diplomática. Mas nenhum deles foi tão pesadamente criticado como Raymundo, que era negro, pobre e de família nordestina desconhecida, tudo a que as elites, principalmente as do Rio de Janeiro, tinham horror — afirma Koifman.

Além das críticas diretas que Souza Dantas recebia, especialmente de pessoas ligadas ao Instituto Rio Branco — criado em 1945 para formar diplomatas profissionais —, muitas histórias também foram inventadas a seu respeito, como conta o autor de “O primeiro embaixador brasileiro negro”.

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A talvez mais célebre delas dizia que o agrément do brasileiro pelo governo de Gana havia demorado muitíssimo porque Acra tinha se ofendido com a indicação de um negro para comandar a embaixada do Brasil no país, uma democracia africana recém-fundada após a independênca do domínio britânico, em 1957.

— Durante a minha pesquisa, descobri que a historiografia incorporou mitos e boatos que circularam à época e foram sendo repetidos como verdades — afirma Koifman. — No caso do agrément, a aprovação de todos os indicados de fora da carreira foi demorada. A do Rubem Braga, por exemplo, chegou muito depois da de Raymundo, e a do Cícero Dias nem sequer chegou, tanto que ele acabou nem indo para o Senegal.

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Dança com Nkrumah

Outra história inventada, mas repetida nas biografias de Souza Dantas, diz o autor, foi a de que o presidente de Gana e líder político pan-africano Kwame Nkrumah se recusou durante três meses a receber o brasileiro e que, depois de ter concordado com o encontro, o teria maltratado por esperar um tratamento igual ao das embaixadas europeias, para onde eram direcionados diplomatas brancos.

— Essa é uma das grandes mentiras que inventaram contra ele. A recepção oficial de Raymundo em Gana demorou apenas oito dias, e as fotos revelam que ele chegou a dançar com Nkrumah, uma honraria concedida a poucos na cultura local. A rainha Elizabeth II dançou com Nkrumah! — contou Koifman. — A verdade é que a elite brasileira colocava na boca dos outros os seus próprios preconceitos.

Com a renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, a missão de Souza Dantas em Gana, que nunca recebeu apoio suficiente — não tanto por ele ser negro, mas mais por ser na África, ressalva Koifman —, terminou de naufragar. Seu retorno para o Brasil, no entanto, ocorreu somente em julho de 1963, depois de um duro período de restrições financeiras, a ponto de a embaixada precisar cortar funcionários e atrasar salários.

Em 2002, o ano da morte de Souza Dantas, o Instituto Rio Branco implantou o Programa de Ação Afirmativa (PAA), um esforço pioneiro de diversificação do funcionalismo brasileiro por meio da concessão de bolsas-prêmio para negros que queiram ingressar na carreira diplomática. A esse programa somou-se, em 2014, a Lei 12.990, que garante ao menos 20% de negros entre os aprovados em concursos públicos.

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Sem sucessores

Porém, passados 60 anos da nomeação do escritor, o cenário pouco mudou na diplomacia brasileira, com um número diminuto conseguindo atingir o topo da carreira.

O Ministério das Relações Exteriores disse ao GLOBO não saber o número exato de negros em seus quadros, porque não há um formulário perguntando a cor da pele dos funcionários. Levantamentos feitos por Koifman, no entanto, apontam que apenas mais um negro chegou a ministro de primeira classe, que é o cargo mais alto da diplomacia, equivalente a embaixador.

Informações do ministério dão conta de que 20 candidatos beneficiados com a bolsa do PAA ingressaram no Instituto Rio Branco entre 2002 e 2014. Entre 2014 e 2020, 32 candidatos negros foram aprovados no Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata, dos quais 27 em vagas reservadas nos termos da Lei 12.990 e cinco por vagas destinadas à ampla concorrência. Isso significa que, de um total de 950 vagas oferecidas entre 2002 e 2020, apenas 5,4% foram preenchidas por pessoas declaradamente negras.

No livro, Koifman conclui: “O precedente foi estabelecido, aos trancos, barrancos e ao custo de muito sofrimento para Raymundo. Mas o fato de tão poucos afrodescendentes terem chegado à posição mais alta do Itamaraty em toda a História do Brasil é evidência mais do que suficiente de que as resistências seguiram a existir e seguem existindo, e de que a sociedade brasileira ainda precisa evoluir muito para poder ser considerada ou se aproximar um dia da tão mencionada ‘democracia racial’”.

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