Crônica - O manual do piloto executivo



Há muitos anos atuando no mercado executivo já ouvi um pouco de tudo.

Existem algumas máximas que só o piloto executivo, especialmente o de helicóptero conhece muito bem. Separei algumas situações divertidas que pincei por aí. Outras nem tanto.

Certamente todo piloto sabe muito bem como planejar o combustível para a missão. Vai sair do alto do prédio, calcula o tempo de voo para o destino, alternativa, reserva, peso do combustível que vai precisar e aí vem a quantidade de passageiros. Nenhum planejamento estará adequado se não for levado em consideração o "fenômeno da multiplicação dos passageiros". E o que dizer das dimensões e peso da “bagagem de mão”?

A vida do piloto executivo é meio imprevisível, por isso, se encontrar um mictório, vai lá e esvazia a bexiga, mesmo que naquele momento você não veja nenhuma necessidade. Se passar um sanduíche dando sopa pela frente, dá uma dentada nele, mesmo sem fome. O piloto executivo normal nunca tem certeza de quando terá a oportunidade de fazer isso novamente ao longo do dia.

Há quem afirme que o salário é pra pagar pelo estresse de conseguir falar com as Salas de Tráfego para postergar os Planos de Voo. O voo em si é a parte boa da história.

E tem aquele piloto executivo que passa o final de semana na fazenda ou na casa de praia. Aí começa a confusão mental de alguns comandantes.

- Sou da casa!

Xiii!!! Confundiu!

Na cabeça do patrão, ele não quer o piloto esparramado no sofá da sala e oferece a bike pra dar uma volta. Suficiente para os pilotos mais incautos acharem que estão abafando!

E o que dizer das atividades paralelas?

Tá saindo um furo na parede e aparece o piloto se disponibilizando pra pilotar a furadeira. Perfeito se tudo acontecer exatamente como o planejado. Mas pode ser que o furo saia uns 3 ou 4 centímetros pra lá ou pra cá! Pronto! Olha um obstáculo para o desenvolvimento da promissora carreira de aviador! Era mesmo pra se meter nisso?

- Sabe fazer churrasco?

- Claro!

Mais uma boa oportunidade de servir aquela picanha especialíssima irremediavelmente fora do ponto.

Um piloto me confidenciou que foi pescar num desses rios lá na Amazônia. Sem qualquer intimidade com linhas, anzóis e principalmente minhocas, percebeu que tinha um peixão sondando sua isca. Usou todos os recursos que tinha disponíveis, sinais visuais, sussurros, assobios, mas não teve jeito e o peixe não entendeu a mensagem de que deveria fisgar a isca que estava do outro lado do barco. Deu linha e propôs trocar a vara com a do patrão. Você acha mesmo que seria prudente mostrar que o maior peixe da tarde havia sido o dele?

Dentre as atividades paralelas, a que mais se comenta nas rodas de pilotos, é a do conhecido COMOVAQ, ou comandante, motorista e vaqueiro. Talvez a ideia de se aventurar no lombo daquela égua quarto-de-milha linda não seja a mais adequada, especialmente se, para executar mais tarde a função de piloto, seja mesmo importante que todos os seus ossos estejam inteiros e no lugar.

Outra bem comum. Você conhece bem o termo “interferência ilícita”. Já ouviu “interferência lícita” alguma vez na vida? A ilícita é aquele papo de um estranho chegar com uma arma na cabeça do comandante e mandar o:

- Toca pra Cuba!

O comandante coloca 7500 no transponder enquanto tenta convencer o intruso de que o helicóptero não tem essa autonomia toda. E a lícita? É a que o comandante conhece o personagem. Aliás, conhece muito bem. Pode ser o proprietário da máquina que esteja voando, pode ser quem pague seu salário, pode ser uma personalidade influente. Muitas vezes o comandante conhece o rosto, identidade, CFP, ou o conhece tão bem que interpreta as variações de humor somente pelo “bom dia”. Definitivamente esse passageiro não é um estranho e, quando esse tipo de interferência existe, os argumentos são bem parecidos.

- Tenho uma reunião importantíssima com fulano.

- O pessoal está me esperando, não tenho como adiar.

- Dá um jeito, comandante.

Normalmente se traduz simplesmente no famoso e conhecido “tenho que chegar”.

Vou ilustrar com o acidente que vitimou o presidente da Polônia em 14 de abril de 2010.

Porque uma tripulação não conseguiu chegar ao destino dois anos antes, foram destituídos de seus cargos com uma frase do presidente que era mais ou menos assim:

- Se vocês se propõem a serem pilotos, devem ter coragem.

O acidente aconteceu depois que a tripulação fez três órbitas sobre um auxílio NDB e os controladores insistiam em dizer que o campo estava fechado, com neblina praticamente colada. O Tupolev 154 bateu a poucos metros da cabeira matando todos os 96 a bordo, inclusive o presidente Lech Kaczynsky.

Que troca foi essa que os tripulantes fizeram? Emprego pela vida? Se prosseguiram na aproximação tinham certeza de que pousariam! Tinham mesmo? Qual teria sido o momento de tomar a decisão crucial de seguir para um plano B e tirar a famosa pedra do dominó da cadeia de eventos?!? Se soubessem que aquele voo acabaria em acidente, onde teriam feito diferente?

Muito difícil responder a essas e outras perguntas!

Ter a palavra comandante antes do seu nome num crachá, ou exibir as três ou quatro faixas das berimbelas no ombro requer sempre bastante cuidado. Especialmente na executiva. Diferentemente do que a maioria pensa, as maiores ameaças aos nossos voos estão muito além do mau tempo ou de uma pane inesperada. Elas estão na forma como nossos neurônios vão absorver e processar as informações que chegam às toneladas a todo instante e como serão transformadas em ações e palavras. Não existe uma resposta sempre certa para cada situação. É o eterno exercício da aplicação dos conceitos do bom-senso.

Que nossas mentes possam estar sempre suficientemente iluminadas pra gente tomar as decisões mais acertadas.

Bons voos!

Ruy Flemming

Jim Clark D’Angelo

ANAC/ FAA - ATP - TYPES- AC6T/AI25/C650/C560/C550/DA10/DA50/GLF4/HS125/BE30

10 a

Truth...

Cesar Sampaio

Perito Judicial, Fotógrafo e Tecnólogo em Estruturas Aeronáuticas

10 a

Não sei porque, mas de vez em quando aqui embaixo, dentro do hangar de manutenção, também acontece coisas quase parecidas. Do tipo eu quero essa aeronave pronta ontem porque o dono mandou. Aí você tem um técnico com a esposa dando à luz, o outro quebrou o pé e está em casa de licença médica. Para piorar, o seu horário de expediente está a meia hora de acabar e você marcou compromisso: estudo, festa infantil de seu filho, cinema com a esposa já estressada, viagem com passagem comprada, etc, etc, etc. Ou então você faz o serviço sem ter a noção exata e sem estar autorizado a assinar o relatório de manutenção.

Edilson Costa dos Anjos

Assessor de Ensino no Centro de Instrução e Adestramento Almirante Newton Braga - CIANB

10 a

Artigo bem legal. Narra as aventuras e desventuras do piloto executivo sob o ângulo de quem exerce a função. Flemming nos brinda com um texto agradável e recheado de experiências reais. De fato o piloto ou comandante, quando em serviço, tem um responsabilidade grande. Conduzir pessoas de um ponto a outro pelo ar requer não só conhecimento técnico, mas perícia, sangue frio e poder decisório nos momentos mais críticos. Admiro muito quem exerce essa profissão e agora, depois de ler esse ótimo artigo, mais ainda. Parabéns, Flemming por nos fazer presente em seus voos. Continue escrevendo e voando nas ideias criativas para nos trazer muitas outras novidades sobre a arte de pilotar. Um abraço!

Mateus Panaro Ayres

Airline Pilot | B737 Captain

10 a

Muito bom.

Carine Oliveira

Comissária de Voo / Flight Attendant ( Disponível para contratação)

10 a

Excelente crônica. Bons voos!!!

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