2.5. BLOCKCHAINS PÚBLICAS E PRIVADAS
Dando seguimento às classificações existentes de blockchains, mas nos afastando da discussão sobre seus possíveis mecanismos de consenso porque técnica demais para o escopo deste texto, vamos agora adentrar uma seara considerada controversa por muitos estudiosos do tema. Trata-se da possibilidade de optar pelo modelo de privacidade mais adequado a cada tipo de blockchain.
Há blockchains públicas, como as do bitcoin e do ethereum, cujas redes são abertas e podem ser consultadas ou utilizadas online por qualquer interessado, sem a necessidade de prévia identificação ou qualquer outro tipo de autorização; e as privadas, da qual fazem parte apenas atores convidados, tendo cada um deles, seu limite de atuação em termos de acesso e registro dentro desse ecossistema digital.
Já antecipando as reações, sim, alguns vão dizer que blockchains em ambientes permissionados não poderiam nem mesmo serem consideradas blockchains propriamente ditas porque, nesses casos, a ideia de distribuição própria da tecnologia ficaria seriamente comprometida e elas perderiam aquele padrão de transparência e confiabilidade inigualáveis.
De fato, as blockchains privadas necessariamente contam com uma pessoa ou grupo de pessoas centralizando em uma certa medida o poder decisório porque responsáveis pelas autorizações. São essas figuras, por exemplo, que darão a permissão ou não - daí o “permissionadas”-, para outros indivíduos ou instituições consultarem transações e dados, bem como os registrarem nesse ambiente privado e de acesso exclusivo aos participantes.
No entanto, indo além do strictu sensu e não se permitindo engessar pela ideologia, é importante lembrar que cada blockchain deve incorporar em seu sistema, as regras, condições e características que melhor se adequarem às necessidades de seus usuários, para que possa cumprir seu papel de ferramenta confiável capaz de trazer transparência online. Tudo isso, respeitando sempre a lei, é claro.
Essa tecnologia tem um imenso potencial para gerir relações multilaterais em um ambiente digital, respeitando a privacidade necessária e o patamar de confiança adequado e necessário para cada caso e uso específicos.
De acordo com o Prof. Rafael Nasser:
“algumas blockchains vão permanecer no âmbito público do bitcoin. Qualquer um pode ir lá, entrar nessa rede, transacionar nela. Mas pode se ter implementações também que estão em um ambiente mais permissionado, em que será preciso autorizar a entrada de participantes para acesso a rede. Perde-se, é claro, aquela confiança plena advinda da distribuição do poder porque, de certa forma, está se concentrando num conjunto de pessoas o poder, mas, para alguns cenários corporativos, por exemplo, isso pode ser muito importante.”
Pense bem. De um lado, temos as chamadas DLTs, cujo principal propósito é viabilizar o compartilhamento de dados. Do outro lado, estão as empresas com um grande e clássico problema aguardando solução: a integração de sistemas.
Uma rápida conversa com qualquer técnico em TI nos fará compreender que, em geral e ainda hoje, cada empresa e seu respectivo sistema falam uma língua própria e desconhecida às vezes até por seus fornecedores, parceiros ou prestadores de serviço. Os sistemas não conversam entre si, fato esse que perpetua uma lógica de isolamento e rigidez organizacionais cada vez menos justificável em tempos de inovação aberta e fomento a colaboração.
Como é de se imaginar, um tal cenário acaba gerando um retrabalho gigantesco para todas as partes, o que abre uma imensa chance de erro diante de tantos diferentes sistemas e consequentes inputs necessários para cada produto ou etapa do processo, além de contribuir para uma cada vez mais elevada burocracia empresarial.
Se estamos finalmente diante de uma ferramenta capaz de otimizar cadeias de processos operacionais no ambiente digital, gerando eficiência, precisão e velocidade na troca de informações e beneficiando a todos participantes, devemos realmente bater a porta na cara da inovação porque ela não traz um grau absoluto de confiabilidade? E se, em determinados cenários, bastasse que essa confiança fosse apenas relativa?
O que vemos acontecer na prática é uma certa divisão entre empresas usando blockchains privadas e outras optando por plataformas públicas. Ainda é cedo para dizer se algum desses tipos irá prevalecer sobre o outro ou se ambos continuarão coexistindo e se de maneira harmoniosa ou não. O pêndulo hoje pode tender mais para as permissionadas, muito provavelmente por um certo receio de quebra de sigilo ou pela cautela natural que instituições tradicionalmente privadas em seu funcionamento, devem ter quando da adesão a novas tecnologias.
Por vezes, a confiança absoluta própria das blockchains públicas, não é condição sine qua non para o bom andamento do projeto. Em alguns casos, os participantes não só se conhecem como optam por compartilhar daquele mesmo sistema privado. Diante de um acordo como esse, podem, portanto, democraticamente garantir a eficiência dos processos.
Para iniciar com um caso brasileiro já não tão novo assim, falamos da parceria entre a BRF, indústria alimentícia; a IBM, com seu serviço de rastreamento de alimentos baseado em blockchain, o IBMFoodTrust; e o Carrefour, etapa final da cadeia que coloca o produto na gôndola do supermercado e à disposição do consumidor.
Tal como os correios rastreiam uma encomenda, em que cada responsável por uma nova etapa do processo de distribuição deve informar em um sistema, compartilhado até com o cliente, data e hora de chegada e expedição; uma empresa do ramo de carnes como a BRF pode rastrear seu produto, nesse caso, o lombo suíno, desde o abate até a prateleira do revendedor.
Assim, ela dá um acesso mais transparente, veloz e preciso à informação, o que gera segurança para o consumidor e para a própria empresa que passa a ter um tempo de resposta para contenção de crises muito maior quando possui ferramentas para a identificação precisa do problema ou da falha ao longo da cadeia produtiva.
Nessa mesma lógica, seria possível, por exemplo, a um consumidor, conhecer todo o histórico e ciclo de vida de um alimento. Quem sabe se certificar de que a fruta in natura vendida na feira, realmente foi colhida tantos dias atrás, como anunciado pelo feirante, ou que de fato é orgânica, quiçá até conhecer os produtos utilizados na terra em que foi plantada, assim como quando o foi e por quem.
Já caminhando para a indústria financeira, temos um ótimo exemplo de concorrentes diretos de longa data como o Itaú e o Bradesco se unindo a B3, em uma blockchain permissionada para testar um projeto de cadastro compartilhado.
Nesse caso, a autorização para acessar e realizar inclusões nessa base de dados conjunta e privada é distribuída entre as três partes interessadas, o que, de alguma forma, mantém uma garantia de que nenhuma delas irá se sobrepor às outras. Muito pelo contrário, o intuito da iniciativa é exatamente dividirem um mesmo sistema e cadastro, ao invés de cada qual ter e usar o seu próprio.
Vemos benefícios aqui não só para as empresas envolvidas, como para seus clientes, que passam a desfrutar de maior agilidade e eficiência na prestação de um serviço repetitivo e exaustivo como o de cadastro e verificação de identidade a cada nova interação com um agente financeiro.
É importante lembrar aqui que a privacidade dos usuários deve ser preservada e que, em se tratando de dados, caberia falarmos, no mínimo, de uma autorização prévia do titular dessas informações para que estas pudessem efetivamente ser compartilhadas.
Em prol de um interesse coletivo e com a tecnologia adequada, é possível sim ter dois ou mais concorrentes se tornando parceiros e colaboradores em um projeto comum dentro de um ambiente permissionado, onde a interação e as relações entre as partes são previamente estabelecidas e devidamente respeitadas. Para tanto, eles se fazem valer das regras de código construídas para esse fim comum e que passam a governar sua relação especificamente dentro daquele ambiente controlado.
Ainda no âmbito do setor financeiro, mas com uma opção diferente, vemos mais concorrentes se unindo. Estamos falando aqui da colaboração entre Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal desenvolvendo testes conjuntos no Multichain e no Hyperledger Fabric, plataforma totalmente aberta e tida como das mais eficazes na interface dos bancos com clientes pessoas jurídicas, por exemplo.
Ao passo que Itaú e Bradesco, parceiros na iniciativa mencionada anteriormente, preferiram aderir ao Corda; sistema desenhado para o setor financeiro pelo R3, consórcio global de 94 instituições financeiras do mundo todo. Diferentemente do HyperLedger, que preza pelo acesso livre com uma rede aberta e pública, o Corda é um consórcio fechado, sem a utilização de tokens próprios e cuja plataforma reflete esse maior controle desejado por seus participantes.
Um importante alarme aqui se dá em relação ao perigo de uma polarização excessiva entre atores de uma mesma indústria, como no caso ilustrado acima, um “racha entre os bancos”. Ao optarem por sistemas diametralmente opostos, prejudicam a integração entre empresas do mesmo ramo, que poderiam estar unindo esforços e dividindo os riscos de investimento, por exemplo, em projetos com blockchain.
Nosso convite aqui é para enxergarmos essa tecnologia como uma oportunidade para otimizarmos processos por meio de uma colaboração coordenada e cujos respectivos limites de participação de cada agente devem ser previamente estabelecidos e acordados entre eles ao invés de verticalmente impostos como até então se fazia.
__________________________________________________________________________Este é o sexto de uma série de textos que, em conjunto, reproduzem o artigo completo "Blockchain, Transparência e Direito Societário", de minha autoria e originalmente publicado em dezembro de 2018, em sua totalidade, no Volume III do livro "Atualidades em Direito Societário e Mercado de Capitais" organizado por Felipe Hanzmann, disponível na Amazon.
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