3 lições sobre Saúde que o câncer do meu pai me fez (re)aprender
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3 lições sobre Saúde que o câncer do meu pai me fez (re)aprender

Quem conhece minha trajetória, sabe que sou médica intensivista de formação. Faz parte da minha rotina lidar com a (inevitabilidade da) morte e dar notícias ruins. Mas eu esqueci completamente disso (e até do meu nome) às 10 horas do dia 07 de outubro de 2019. Foi quando eu abri o envelope contendo o laudo da biópsia que mostrava que meu pai tinha um câncer.

Já adianto que não me aprofundarei nos pormenores clínicos, pois este não é um relato de caso científico a ser publicado ou peer-reviewed. O LinkedIn também não é o canal adequado para isso. O meu objetivo aqui é descrever a epopéia que se sucedeu. E a confusão, que não foi pouca:

  • A mesma biópsia, analisada por profissionais diferentes, em serviços diferentes, mostrava um câncer que podia ter dimensões e graus de agressividade distintos.
  • Duas análises de cintilografia óssea com conclusões diferentes: uma foi laudada como tendo uma lesão suspeita (metástase?) na pelve e a outra não.
  • Três oncologistas e dois urologistas foram consultados. E as condutas ouvidas variavam também: podia ser apenas acompanhamento com exames frequentes, cirurgia (aberta, laparoscópica ou robótica), radioterapia por 20, 30 ou até 40 sessões.
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A cada nova informação, eu ouvia, na minha cabeça, o barulhinho incessante do Waze recalculando o melhor trajeto a ser tomado em seguida. Até que deu o erro da tela azul na minha mente.

E lá, no meio disso tudo, estava meu pai: um pragmático engenheiro de 71 anos. Um cara de Exatas que não tinha noção da confusão que nós, de Biológicas, ainda fazemos para definir quais são nossas melhores evidências científicas, tomar decisões e orientar os pacientes na jornada do cuidado. O homem que me ensinou a fazer regra de três e a andar de bicicleta estava completamente perdido a respeito do que fazer. Então, ele se limitou a fazer um único pedido que partiu meu miocárdio de intensivista:

"Não sei qual caminho seguir, mas sei que eu quero continuar vivendo."

Quando médicos discordam sobre qual é o diagnóstico ou o melhor caminho a seguir, como os pacientes decidem?

Existe uma errônea percepção de que a ciência é cheia de verdades e soluções. Mas o que eu acabei de descrever ainda é a realidade da jornada de um paciente em busca diagnóstico e tratamento em diversas especialidades. Em pleno 2020.

"A Saúde não é uma ciência exata."- diriam muitos. Concordo 100%. O que discordo é que isso justifique a falta de melhora desses processos em plena Quarta Revolução Industrial, ou Saúde 4.0. Em plena intersecção entre uma tecnologia que evolui exponencialmente, tornando (quase) tudo possível e a vontade do paciente de ser mais envolvido/ter um cuidado mais transparente.

Meu pai é exceção e viveu uma situação privilegiada: tem uma filha médica que frequenta grandes centros médicos, conhece as limitações do sistema e sabe como navegá-las. Que também sabe usar novas tecnologias digitais para auxiliar a tomada de decisões mais embasadas e que teve acesso a médicos incríveis e humanos que a ajudaram a escolher o melhor caminho em meio a tanta informação desencontrada. Ainda assim, as dificuldades foram inúmeras. E eu fiquei tentando mensurar, mentalmente, o desalento de quem não dispõe desse arsenal.

O fato é que essa experiência escancarou, mais uma vez, algo que eu gostaria de não precisar repetir:

Apesar de já termos feitos coisas incríveis como mapear todo o genoma humano e operar um paciente à distância com 5G, a Medicina ainda falha em seu propósito principal, o de amparar e entregar o que as pessoas precisam. No momento que elas mais precisam.

De toda essa história, ficam 3 lições. Nada "UAU"ou "Eureka", mas que seguem essenciais tanto na Saúde pública quanto na privada. Tanto nos grandes centros quanto nos pequenos municípios:

1. Médicos (e profissionais de Saúde, como um todo) precisam melhorar o processo de tomada de decisão.

De novo: em tempos em que o conhecimento médico dobra a cada 2 meses e meio e no qual tem sido cada vez mais difícil se manter atualizado, será necessário trabalhar com mais ferramentas do que caneta, estetoscópio e receituário. Em um mundo em que cada paciente é um desafio de big data e nosso cérebro não é hardware suficiente para lidar com toda essa informação, teremos que nos acostumar a tomar decisões amparadas por algoritmos e ferramentas tecnológicas digitais, além de entender fundamentos de data science.

De novo também: Isso não nos substitui, mas sim amplia nossa capacidade de fornecer um cuidado de qualidade aos pacientes, quando eles mais precisam. E, pra quem acha que a tecnologia desumaniza o cuidado, o médico mais humano que cruzou o caminho do meu pai foi justamente aquele que o operou utilizando um robô.

Enquanto considerarmos a tecnologia como competição ou adversária, seremos todos perdedores.

2. Fala-se incessantemente sobre cuidado centrado no paciente. Mas a realidade é que ele continua à margem disso.

O cuidado e a jornada do paciente precisam ser redesenhados de forma que ele consiga navegar naturalmente e não depender de uma filha médica ou um conhecido na área. Por enquanto, Design Thinking são duas palavras usada para vender cursos e workshops caros. Mas essa ferramenta precisa se tornar corriqueira durante as discussões sobre jornada do paciente nas instituições. O mesmo vale para User Experience (UX), que precisa ter um processo constante de avaliação e reavaliação em qualquer instituição de saúde.

E, ainda mais importante do que isso, os pacientes precisam de um lugar à mesa durante essas atividades. Nesse sentido, gosto muito de uma frase do Lucien Engelen (um dos nomes que mais admiro quando o assunto é inovação em Saúde):

" Em um restaurante, se estão falando sobre você sem que você esteja sentado à mesa, é porque você provavelmente está no cardápio. O mesmo vale para a Saúde."

Por favor, comecem a chamar os pacientes, nossos maiores stakeholders, para a mesa.

3. A nova geração de médicos e profissionais da saúde precisa ser treinada de acordo com essas necessidades.

O que acontece quando a gente teima em rodar algo novo em um sistema operacional antigo? Trava. Enquanto as faculdades de ciências da saúde do século XXI operarem com um modelo do século XX, o "sistema" de Saúde continuará travando.

Então, ao invés de fazer estudantes decorarem as artérias do polígono de Willis ou a cascata de coagulação, os currículos das faculdades de Medicina precisam de um control+alt+del: Reiniciar o Sistema para ensinar os futuros médicos a aprender no mundo digital, deixando de lado a memorização e priorizando a capacidade de encontrar, avaliar e sintetizar a informação. E de comunicar isso com clareza e empatia aos pacientes.

E o meu pai? Bom, a história dele tem um final feliz. Ele está se recuperando, ganhando peso e continua me ensinando muito. Só que, ao invés de regra de três, a lição principal hoje em dia é a de continuar desafiando o senso comum e, no meu caso, lutando para mudar o status quo na Saúde. Afinal, somos todos pacientes.

*Fica aqui meu agradecimento sincero a todos os brilhantes e sensíveis colegas que me ajudaram a navegar nessas águas turbulentas. Vocês sabem quem vocês são.

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Estou na mesma situação com meu pai hoje, sem rumo e no meu caso sem recursos. Biópsias contraditórias, falta de rumo no tratamento, quimioterapia baseado em exame não confiável. Obrigado por compartilhar sua experiência, me sinto mais aliviado de saber que existem muitos passando por problemas parecidos, e fico feliz que seu final foi feliz! Parabéns! 👏🏻 espero que essa evolução chegue logo!

Gilmar Solomon Reis

Especialista em Seguros de Transportes e Benefícios Corporativos 🛡️Gestão Técnica-Comercial — Comissário de Avarias | Serviços e Produtos para Prevenção e Controle de Perdas

3 a

#Absolutamente Dra. Mariana! O desafio é enorme. É preciso colocar no poder (politica), pessoas como a Dra. - realmente empáticas -, que imagina seus grandes problemas na vida de pessoas sem recurso. Fico muito feliz pelo seu pai, por estar saudável e por ter você ao lado dele. Realmente ele tem muita, muita sorte.

Oi M@ri@n@, Já no final de 2019, notei o seu recolhimento e em Janeiro li este relato no LinkedIn. Na época, até planejei um comentário mas ele seria bastante tradicional, como alguns dos 93 comentários colocados aqui. De fato, o lado humano que todos nos temos requer esta abordagem tradicional. Portanto, eu também quero te dar os parabéns pelo enfrentamento corajoso desta situação, se beneficiando da sua formação de médica para fazer uma crítica tão precisa do que se passa no lado do paciente. Agora, vem esta pandemia e noto que muitos dos problemas [ou estigmas] que você levantou no seu texto, continuam por aí. Tudo que se faz no lado mais agudo da COVID-19 e que acontece dentro das UTIs é aquela medicina intensiva que você conhece tão bem ! Mas o resto parece que apenas alimenta uma enorme fogueira de vaidades. Aí está mais uma causa para ser incorporada na sua proposta de reforma da prestação dos serviços de saúde, se é que um dia ela vai acontecer. Mas, se acontecer, conte comigo !

Verena Carneiro

Jornalista • Head de Comunicação e Conteúdo • Thought Leadership Strategy

4 a

Nossa, obrigada por esse texto e esse compartilhar.

Daniel Teixeira Silva Filho

CONSULTOR DEMANDA ONCOLOGIA e HEMATOLOGIA, ACESSO NO MERCADO PUBLICO E PRIVADO,

4 a

Dra. Mariana, parabéns por sua coragem e humildade de dividir um Case pessoal, sobre um Tema tão atual no Ambiente da Medicina, trabalho com vocês há 30 anos e, sei muito bem o que você está falando por experiência própria. Isto só aumenta o meu orgulho em fazer parte do trabalho de vocês e agradecer por disporem de um tempo do seu trabalho para que eu trabalhe. Que Deus ilumine sempre o Seu Dom de cuidar do próximo.

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