ADMINISTRAÇÃO DO TEMPO

ADMINISTRAÇÃO DO TEMPO

Uma solução factível para os dilemas da vida contemporânea ou apenas um mecanismo de encobrimento para questões do dia a dia dos indivíduos

Introdução

           Muitos de meus analisandos - e de casos trazidos para discussão nos grupos de Supervisão que coordeno -, têm trazido como queixa inicial estarem se sentindo sobrecarregados - dizem sentir, no seu dia a dia, muito estresse, ansiedade e um mal-estar que não conseguem explicar, e não raro verbalizam esses sentires através de algum tipo de autodiagnóstico. No curso das entrevistas iniciais, de modo recorrente, relatam a expectativa de que nós, como psicanalistas, a eles indiquemos algum tipo de solução para eliminar o mal-estar que atravessa suas vidas, deixando-os sobrecarregados - algumas vezes, até mesmo sugerem ter necessidade de algum tipo de modelo estandardizado para administração do seu tempo...

A ideia de existir um “protocolo de fazeres” capaz de oferecer solução para os muitos dilemas surgidos a partir da realidade estabelecida na sociedade contemporânea - relações cada vez mais virtuais, baixa concentração, pensamento acelerado, excesso de estímulos e informações etc. -, foi trazida ao mundo através de um grupo de profissionais ligados ao campo da saúde mental, que observando o exponencial surgimento de novas alterações psíquicas nas sociedades, imaginou como sendo possível oferecer uma solução normativa para resolver os muitos mal-estares da vida dos indivíduos que nela coexistem. Assim pensando, esse grupo de profissionais elaborou e disseminou a ideia de que, melhor administrando o tempo vigil das pessoas, seria possível encontrar o equilíbrio necessário para restabelecimento de sua qualidade de vida e bem-estar. Essa idealizada panaceia, ao tempo transformada numa espécie de “mantra comportamental”, quando seguida no dia a dia dos indivíduos - conforme asseguravam os “gurus” responsáveis pela disseminação global desse caminho civilizatório - seria solução definitiva para as muitas dificuldades sentidas na estruturação das horas de vigília dos indivíduos, ou seja, seu tempo vigil, quando estruturado a partir de sequenciais padrões de organização, tenderia a eliminar as fontes geradoras dos contínuos ciclos de estresse e quadros de ansiedade dos indivíduos, oferecendo-lhes qualidade de vida e um maior bem-estar.

Esse direcionamento comportamental, introjetado como crença no inconsciente coletivo das sociedades - muito especialmente nos círculos empresariais, sociais e, de certo modo, acolhido pelo meio acadêmico -, seria, portanto, a solução para a eliminação do estresse e da ansiedade presente na vida contemporânea dos indivíduos, pois asseguraria,  através administração do tempo vigil das pessoas, uma melhoria nas suas rotinas cotidianas - essas rotinas, quando não bem administradas, foram identificadas como geradoras do crescente estresse e sintomas de ansiedade identificados na vida de todos e, por essa razão, precisariam ser eliminadas.

 Um contraponto para reflexão

 Sem que aqui pretenda frontalmente questionar esse direcionamento comportamental (Administração do Tempo) - ou o de outras técnicas, que ao longo do tempo, foram e vem sendo disseminadas como trilhas comportamentais necessárias de serem percorridas para melhoria da qualidade de vida das pessoas -, estimulo a você, caro leitor, que perspective essa solução civilizatória de um modo bem mais amplo, pois o administrar do tempo traz em sua essência motivadora, enquanto objetivo indizível, o aumento da produtividade dos indivíduos no trabalho. Por assim ser, entendo ser limitada essa mecanicista solução, pois com o decorrer do tempo - visto encoberta sob uma idealizada possibilidade de diminuição do estresse no dia a dia da vida dos indivíduos e, consequentemente, de sua ansiedade -, ela pode se tornar tóxica. Assim, pode ocorrer não somente por implicar sua aplicação em se ter de seguir, de modo quase compulsivo, rotinas engessadas na estruturação do tempo das pessoas - nelas gerando um adicional estresse -, como também pode gerar muita frustração e culpa, quando da percepção, pelo indivíduo, de não conseguir, na vida real, alcançar os elevados níveis de organização do tempo preconizados pelos modelos normalizadores das propostas de administração do tempo. Isso posto, entendo que essa limitada solução apenas oferece aos que a ela aderem como caminho para aplacar algo que, dentro de si, falta ou faltou, apenas tampona, de modo encobridor, o mal-estar que sentem - até porque, não se vendo identificada e bem elaborada a origem da verdadeira questão que os afeta o band-aid comportamental neles utilizado como solução, quando muito, apenas consegue atenuar, por breve tempo, as dores e dilemas vividos pelos indivíduos - em definitivo é preciso ser compreendido que o objetivo oculto dessa metodologia privilegia apenas o viés funcional do fazer humano nas organizações e sociedade, objetivando tornar o indivíduo cada dia mais funcional e produtivo.

 A tese por detrás da tese

           Como prefiro acreditar, entendo que os gurus que propuseram a metodologia da Administração do Tempo como solução para redução do estresse e ansiedade das pessoas, se basearam na tese de que os indivíduos, do nascimento à morte, prescindem de estímulos sensoriais e emocionais para sua sobrevivência, pois sua privação tende a produzir modificações orgânicas, psíquicas e, por que não dizer, sociais - nas crianças, esses estímulos tendem a ser mais diretos, visto necessário que sejam produzidos através de contatos físicos, enquanto que no adulto, eles são bem mais refinados e simbólicos.  Entretanto, seja em qual fase da vida o indivíduo esteja, esses estímulos são necessários e, quando reduzidos ou inexistentes, tendem a produzir o que Berne[1] nomina como “anseio de reconhecimento”. Melhor explicando: em paráfrase ao proposto pelo citado autor, ele assevera que o ser humano prescinde da presença do outro para aplacar seu permanente anseio de reconhecimento, pois é através dele (o outro) que as necessárias trocas de estímulos se veem realizadas. Essa assertiva viu-se inicialmente pesquisada por Levine[2], quando observou que ratos - não apenas no seu desenvolvimento físico, como também em sua química cerebral -, eram afetados favoravelmente através do contato físico, o mesmo não ocorrendo quando lhes faltava esse tipo de estímulo.

          Isso posto, sinto-me mais à vontade em supor que os gurus da Administração do Tempo certamente imaginaram que, por ter esse anseio de reconhecimento inconteste valor para a qualidade de vida dos indivíduos, a estruturação de suas horas vigilância poderia se constituir caminho capaz de resolver os dilemas que os afetam na contemporaneidade. Dando concretude a essa linha idealizada de solução, operacionalmente modelaram programações que, uma vez seguidas, seriam capazes de restabelecer o bem-estar e saúde dos indivíduos.

Entretanto, com base na visão crítica que daqui para frente se verá estimulada, acredito irá tornar-se possível perceber que a limitada ideia de solução oferecida pela Administração do Tempo, em realidade não se afigura a panaceia capaz de resolver, através da estruturação das horas de vigília dos indivíduos, questões que, próprias da natureza humana, são singulares e interiores a cada indivíduo - até porque, na própria essência do conceito de tempo, existe uma dubiedade, a qual pode ser perspectivada de duas diferentes maneiras - o filósofo francês Henri Bergson foi um dos pioneiros na discussão da diferença existente entre tempo cronológico e tempo psicológico:   

·     O tempo cronológico se afigura uma construção social, cartesianamente usada para organizar e coordenar atividades, estando associado ao que nos acostumamos chamar como “tempo real”, ou seja, ele é medido em minutos, horas, dias, anos, etc., seguindo, portanto, uma sequência linear e objetiva;

·     O tempo psicológico, de modo diferente, não é cartesiano, pois é percebido, de modo singular, como uma experiência subjetiva, podendo ele ser influenciado por nossas emoções, estado mental e vivencias personalíssimas.

Portanto, é imprescindível não perdermos de vista que as questões singulares e interiores dos indivíduos - e todos as temos -, em realidade vão muito além dos aspectos operacionais de organizar e coordenar o dia a dia da vida de relação das pessoas, ou seja, por adentrarem tais questões em subjetivas e singulares motivações emocionais, mentais e vivenciais - muitas vezes desencadeadas por traumas, colisões e frustrações sentidas ao longo do personalíssimo desenvolvimento de cada indivíduo -, se faz prudente perspectivar a relatividade da percepção do tempo antes de se assumir a administração do tempo como solução definitiva para os dilemas da contemporaneidade. Inclusive, conforme trazido pelo próprio Berne, a tendência de se querer administrar o tempo se afigura, em grande medida, uma falácia, pois sua estruturação não consegue englobar, enquanto aspectos operacionais, as múltiplas e plurais variáveis da vida de relação, ou seja, na programação padrão da administração do tempo não é possível contemplar, na visão desse autor, os três principais campos relacionais em que a vida dos indivíduos se vê imerso: material, social e individual. Nesse sentido, de modo esclarecedor, o autor citado propõe:

“...

·       A programação material surge das vicissitudes encontradas no trato da realidade exterior [...] na medida em que as atividades sejam geradoras de estímulos, de reconhecimento ou de outras formas mais complexas de relacionamento social, como p. ex. a atividade de se ter um emprego;

·       A programação social é principalmente constituída pelo que podemos denominar como “rituais”, os principais dos quais são familiarmente chamados de “boas maneiras”;

·       A programação individual começa surgir à medida que as pessoas se conhecem melhor, e a partir delas “incidentes” começam a ocorrer [...] um estudo mais meticuloso desses incidentes revela que eles tendem a seguir padrões suscetíveis de classificação, e que sua sequência é regulada por regras estritas, embora não escritas ou ditas”. (Op. cit.)

Em resumo, entendo que os gurus da Administração do Tempo perceberam que, para além da necessidade de estímulos sensoriais e emocionais, os indivíduos também necessitavam para sua sobrevivência melhor estruturar seu tempo vigil - inclusive como forma de evitar o que chamo “tédio vivencial”; nessa direção, Kierkegaard propôs que “... os males resultantes do tédio tem por causa o tempo não estruturado, pois quando ele (tédio) se prolonga, tende a se tornar sinônimo de inanição emocional” [3], e por assim ser, gera nos indivíduos as mesmas consequências do anseio de reconhecimento.  

Entendida a variável “relatividade do tempo” e, em reforço a esse entendimento, a forma singular de como cada indivíduo experencia suas emoções ao longo de seu contínuo desenvolvimento, acredito seja agora possível compreender a limitação dos eixos de motivação científica utilizados pelos gurus da administração do tempo para delineamento e disseminação dos supostos que embasam a lógica da Administração do Tempo.

Uma possível conclusão

           Preliminarmente gostaria de deixar claro que entendo serem verdadeiras as premissas sobre as quais a lógica da Administração do Tempo se assentam - até porque, mesmo tendo ela um viés unidirecional de objetivo, não se pode negar que ao colocarmos em perspectiva a importância da estruturação do tempo como forma de aplacar, na vida de relação, o anseio de reconhecimento presente, em diferentes graus de manifestação, na vida de todos -, esse viés comportamental se mostra como possibilidade positiva e produtiva para arrefecimento dos muitos anseios gerados pela vida contemporânea. Entretanto, essa aceitação não implica no entendimento de ser a Administração do Tempo a panaceia capaz de resolver, em definitivo, esses anseios e dilemas, pois sua origem, como já afirmado, vão para muito além da ausência de estruturação do tempo vigil dos indivíduos, visto que, em diferentes graus de afeto, todos carecemos de alguém ou de alguma coisa, e por serem essas faltas singulares e muito pessoais a cada indivíduo, exigem que seu equacionamento seja buscado de dentro para fora de cada indivíduo - e não, como proposto nesse modelo mecanicista, através de fórmulas e condicionamentos impostos de fora para dentro.

Portanto, apesar de entender a importância, para nossa vida e desenvolvimento de atividades cotidianas, de uma estruturação produtiva de nosso tempo, proponho com este artigo, que se coloque em perspectiva a ideia de que essa prática seja capaz, como disseminado, de eliminar os dilemas vividos pelos indivíduos nas sociedades contemporâneas, oferecendo-lhes maior qualidade de vida e bem-estar.  Até porque, conforme também já pontuado, quando engessamos nosso dia a dia com fórmulas e padrões, existe a real probabilidade de, no médio prazo, em função da dinâmica da vida, começarmos a sentir-nos frustrados pelo não alcance dos objetivos buscados atingir, e a frustração é prima-irmã da culpa, e ela (culpa) se afigura, junto com o medo do fracasso, a gênese responsável por muitos dos desequilíbrios mentais e emocionais da vida contemporânea. Por assim entender, acredito ser a administração do tempo apenas uma parte do processo de retomada de nossa necessária independência mental e emocional, no sentido de que, para tanto, é imprescindível voltarmos a escutar a sabedoria de nossa essência interior, que silenciada pelos ruídos da contemporaneidade, se constitui a melhor conselheira para retomada da harmonia interior necessária para a melhoria de nossa qualidade de vida e bem-estar físico, mental e emocional.


[1] BERNE, E. Os jogos da vida. Tradução E. Artens. Rio de Janeiro: Editora Artenova S.A., 1974.

[2] LEVINE, S. Stimulation in infancy. In: Os jogos da vida – Eric Berne. Scientific American. 202: 80-86. Maio de 1960.

[3][3] KIERKEGAAED, A. A Kierkegaard Anthology. In: Os Jogos da vida. Princeton University Press: Ed.R. Bretall, 1947.


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