Afinal falamos do quê? Da culpa de se ser cidadão? Ou de “falta de educação”?
Continua a confusão. E volto ao tema para lamentar o que vejo, e como o vejo discutido.
1 - Não vou sequer comentar quem subscreveu um abaixo-assinado a defender os pais que não queiram que os filhos frequentem as aulas de cidadania, ou o porquê do respeito pela objecção de consciência e, neste caso, a sua aplicação à recusa da frequência da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento por parte de alguns desses pais. Simplesmente porque, provavelmente, apenas engrossarei o rol de asneiras já ditas e escritas e porque vivemos numa sociedade livre, onde cada um tem direito a ter opinião e, da mesma forma, o dever de acatar as consequências que daí advenham.
2 - Recuso-me a comentar levianamente, pelo menos neste fórum, questões de dialéctica, de ideologia ou de pensamento único. Como alguém dizia, é antiga e intrigante a história das ideias. Além disso, a falta de coerência só tem remédio quando não é intencional. Por exemplo, não parece ser inocente que quem bateu palmas à jovem Malala Yousafzai (e bem), no seu discurso público de agraciamento do Prémio Nobel da Paz 2015, venha agora, lamentavelmente, contradizer o que aclamou.
3 - Reservo-me no direito de respeitar até a opinião, ou os pressupostos argumentos que não conheço, quer dos subscritores do dito abaixo-assinado, quer de qualquer pessoa que, contra ou a favor, tenha uma opinião formada sobre o “caso” (sim, porque isto parte de um apenas “caso”), ou sobre qualquer das questões que daí emanaram.
4 - Confesso, contudo, que me apeteceria comentar algumas das opiniões que por aí polulam, seja nas redes sociais ou em determinados fóruns de responsabilidade, cujos argumentos são autênticos absurdos, tocando mesmo a raia da estupidez quando se adjectiva Educação para a Cidadania como lavagem ideológica ou a falta de respeito pelo papel da Educação quando se constrói uma manchete como a de ontem, no Público, no artigo de Natália Faria. Mas seria uma perda de tempo.
5 – Um debate mais profundo, mesmo que nos abstraíssemos dos debates epistemológicos, tornaria necessário identificar e compreender as grandes influências políticas e filosóficas em torno do conceito de Cidadania, não porque elas correspondam a posições opostas que não possam coexistir, mas porque a coerência da nossa acção (educativa) depende deste entendimento. Será interessante fazê-lo… mas não agora.
6 – Quero manifestar efusivamente o meu apoio à Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), definida no Despacho n.º 6173/2016, de 10 de Maio, e ao Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular (PACF), em convergência com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória e com as Aprendizagens Essenciais. Depois de quatro décadas de tentativas de incluir no currículo nacional áreas transversais de desenvolvimento pessoal, educação para a cidadania, projectos interdisciplinares de promoção de valores educacionais gerais no nosso sistema educativo, considero que este caminho nos poderá conduzir a uma melhor Educação.
7 - Quanto à ENEC, penso que ela vale muito mais que o seu enunciado oficial, que admito que possa, em algumas afirmações, levar a interpretações dúbias. Quem quiser saber mais, o que não faltam são bons textos oficiais a defender as áreas transversais ao currículo, produzidos ao longo da história legislativa recente, dos vários governos e das várias correntes políticas. Mas, se quiser ir mais longe e colocar a preguiça de parte, com intenção de dar um contributo útil para a discussão, dispõe de uma boa revisão de literatura no próprio site da DGEC em http://www.dge.mec.pt/educacao-para-a-cidadania/documentos-de-referencia.
8 – Também, quanto aos tempos, uma vez mais se comprova a memória curta e o desinteresse de quem comenta sem averiguar os factos. Nem precisamos de recuar quase 20 anos, ao Decreto-lei 6/2001, e à reorganização curricular apresentada no Programa do Governo da época, que assumia como objectivo estratégico a garantia de uma educação de base para todos, assumindo no próprio diploma legal a centralidade da educação para a cidadania. Afinal, este compromisso com a cidadania nas escolas manteve-se durante os sucessivos governos, incluindo nos de Passos Coelho, onde foram lançadas, aliás, em 2012, as linhas orientadoras (vale a pena ler em https://www.dge.mec.pt/educacao-para-cidadania-linhas-orientadoras-0) e as Áreas temáticas de Educação para a Cidadania com a publicação do Decreto-Lei n.º 139/2012. Também não deixa de ser irónico no actual contexto, que no último governo de Passos tenha sido criado um ministério novo intitulado “Cultura, Igualdade e Cidadania”.
9 – Sobre Educação para a Cidadania, não diria melhor que Naval (1995), que refere que a ideia de educar para a cidadania num mundo complexo, não corresponde nem ao pitoresco aparato do currículo de formação moral e cívica de outros tempos, nem a um complemento da educação geral, ideologicamente necessário, mas carente de validade cognitiva e afectiva. Trata-se de uma tarefa essencial nas sociedades livres que associa as diferentes dimensões da cidadania: responsabilidade social e moral, participação na comunidade e literacia política (Crick Report, 1998).
10 – Por prudência, quero aqui deixar também uma referência quanto ao grau de execução destas áreas, até hoje marginais ao currículo, ou interpretadas como tal. Admito que deve ser pensada a preparação dos docentes para ensinar ética, cidadania ou desenvolvimento, contrariando aquela mentalidade latina que tão bem conhecemos de que toda a gente sabe tudo sobre estes temas e que não é necessária qualquer preparação prévia para tal conhecimento. Outro aspecto é a falta de motivação profissional denunciada nos últimos dois anos, por parte dos agentes da escola, devido à inespecificidade das áreas e à falta de orientações. Mas admito que esta poderá ser adquirida com formação específica prévia para quem se sente vocacionado para essa função específica, designadamente docentes de História, Filosofia, Antropologia e Sociologia, mas também das áreas científicas de suporte aos temas enunciados nos grupos da ENEC, abrindo-se, quem sabe, a porta à criação de mestrados em ensino de Cidadania e Desenvolvimento, e dando lugar a funções de (inter)mediação e interligação interdisciplinar nas escolas, desempenhadas por licenciados em Ciências da Educação.
11 – Na linha do que referi no ponto 5, e como defensor de uma Inclusão, Literacia e Cidadania Digitais nas escolas, vejo na ENEC e no PACF uma oportunidade para o desenvolvimento de uma estratégia que possa incluir oficialmente estas competências nas escolas. A 22 de maio de 2019, no contexto de um trabalho académico, questionei publicamente se não caberia a Literacia Digital e a Educação para os Média na ENEC, como áreas específicas nos diferentes domínios da Educação para a Cidadania, devendo constar num dos três grupos, nem que fosse no terceiro, com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade. Defendi e defendo que não basta dizer que as escolas desempenham um lugar imprescindível na formação de cidadãos informados, conscientes, reflexivos, críticos, capazes de compreender o funcionamento dos media e de interpretar as mensagens que estes veiculam. É preciso actuar, com medidas concretas, que vão, aliás, além da escola, chegando às famílias e à sociedade em geral.
12 – A 24 de Janeiro de 2019, por ocasião das celebrações do Dia Internacional da Educação, data que celebra a importância e o papel fundamental da educação para o bem-estar e o desenvolvimento sustentável, publiquei um texto sobre o tema desse ano, que foi “Aprender para empoderar as pessoas, preservar o planeta, construir a prosperidade e promover a paz”. Com este tema pretendia a ONU chamar à atenção para a necessidade de se pensar a educação a partir de uma abordagem mais integrada e humanista, mas também, na minha opinião, digital, de certa forma envasada no Objectivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4), que reafirma o compromisso de todos com uma educação de qualidade, que seja inclusiva e equitativa, e que dê oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos até 2030.
13 – Não imagino a possibilidade de se promoverem as novas literacias sem cidadania. Só através dela consigo acreditar e imaginar um mundo que seja capaz de inverter a tendência e a crença funcionalista da escola, para dar lugar a uma formação mais humanista que, ao invés de levar os indivíduos a esquecer-se da "comunidade escondida" por detrás das tecnologias digitais, dê relevo ao poder de reflectir e de pensar, e às competências de aprendizagem profunda como a criatividade, a comunicação, a cidadania, o pensamento crítico e a colaboração.
Termino voltando à pergunta inicial. Afinal falamos do quê? Penso que, polémicas, absurdos e más decisões à parte, falamos de cidadania e de democracia. Quando se tratam de ameaças à democracia, é fundamental que todos nós, Cidadãos, consigamos lidar com estes fenómenos. Citando Fernando Savater, "a educação é a única forma de terminar com a "ignorância" que impede os cidadãos de contribuírem para a democracia e ajudarem a melhorá-la". E, quando afirma que o grande problema da democracia é "a predominância generalizada da maré de ignorância", a Educação cívica é, de certeza a melhor forma de a combater.