Afinal, sabemos ouvir? (E porque a resposta para esta pergunta não é tão fácil quanto parece)
Estátua em bronze. Crédito: Couleur, pixabay.

Afinal, sabemos ouvir? (E porque a resposta para esta pergunta não é tão fácil quanto parece)

Quando lancei o meu primeiro curso online, As 5 Competências Comunicativas, um amigo também estudioso da comunicação me lançou o questionamento: "A gente não se comunica o tempo inteiro? Por que deveríamos desenvolver alguma competência para a comunicação?"

Ao ouvir a pergunta, imediatamente entendi o que a motivava. Afinal, o termo "competência" tornou-se parte de toda uma paisagem discursiva que exalta feitos individuais e conquistas mercadológicas.

Mas posso responder a esta pergunta com um outro entendimento do que seja uma competência. Não seria aquilo nos torna mais fortes ou especiais que nossos competidores, mas sim um princípio de liberdade ativa que tem a intenção de aprimorar nossa consciência crítica e a nossa responsabilidade uns pelos outros.

Em termos mais simples, falar em competências comunicativas não é a busca por comunicar-se melhor enquanto vantagem competitiva, mas sim falar nos desafios e nas oportunidades que temos de construir qualquer contexto de vida que seja razoável.

E isto fazemos juntos. Quando nos comunicamos, entramos em uma arena de complexidades e incertezas na qual temos liberdade de nos dar conta de quem somos no encontro com outros, na maneira como escolhemos nos relacionar com outros. Isto é a tal competência comunicativa.

Se este entendimento estiver correto, parte das interações que temos sequer poderia ser chamada de "comunicativa" se nós não estivermos dispostos a participar desta arena com o objetivo de sermos transformados pelas pessoas ao nosso redor.

Um verbo parece resumir muito bem o que é esta disposição: o ouvir.

Ouvir é estar aberto para a contingência

Questionar-se sobre se sabemos ou não ouvir é um caminho para quem está, de fato, preparado para encontrar a resposta: muito provavelmente, não. Afinal, de quantos diálogos cada um de nós saímos com a sensação de termos sido transformados por aquele encontro?

Diálogos genuínos são aqueles em que somos capazes de gerar uma síntese a partir das diferenças expostas. Isto é, um diálogo é sempre uma experiência criadora de novas possibilidades, novos conhecimentos ou novas soluções.

Para isso, um diálogo exige de nós o contrário da identidade: a alter-idade. Não a busca por uma qualidade no igual, na semelhança, mas pela qualidade que há no distinto, no diverso. Exige, portanto, o encontro com o que não sou eu: o outro.

No outro está sempre o lugar do imponderável, do incontrolável e do contingente. Afinal, o outro não sou o eu, e portanto está fora do meu domínio. Nossa tendência é a de querer gerenciá-lo, porque o a incerteza que há no outro nos deixa inseguros. Queremos, portanto, exercer autoridade sobre ele.

Se cedemos à compulsão pelo controle, o diálogo perece. Vira discurso. Dá-se alguém que apenas fala, já não mais ouve. Portanto, em primeiro lugar, não sabemos ouvir se não somos capazes de abrir nosso peito para a contingência do outro, por mais que sua imponderabilidade nos perturbe.

Ouvir é ser tomado por uma sinfonia de vozes

Equivoca-se, porém, quem associa a postura do ouvir a alguém que perdeu a sua voz. Pelo contrário, ouvir é deixar-se ser tomado pela voz dos muitos para entender, finalmente, que a nossa fala sempre é marcada pela fala do outro.

E tem sido assim desde o ventre da nossa mãe. Já com 16 semanas de gestação um feto é capaz ouvir o ambiente ao seu redor. De dentro útero, já recebíamos e respondíamos os estímulos sonoros que nos tocavam. A voz da mãe, portanto, é a primeira que irá lhe compor, desde muito cedo.

Somos capazes de perceber a beleza do ouvir quando refletimos sobre as muitas vozes que arranjaram nossa percepção de mundo. A voz materna, a mais fundamental delas, mas também do pai, dos irmãos e irmãs, dos amigos e amigas, dos professores...

Jamais seríamos quem somos não fosse por essas tantas vozes. E quanto mais nos damos conta disso, mais percebemos o quanto saber ouvi-las é a fonte de nossas forças e de um saber compartilhado que nos ajuda em nosso desenvolvimento.

Se entramos em qualquer interação acreditando piamente que bastamos sozinhos, de que não precisamos de mais nada além de nós mesmos, desaprenderemos a ouvir. Pura ilusão que só traz mais e mais dor.

Ouvir é não entrar na caverna

O Mito da Caverna, de Platão, descreve uma caverna aonde estão presas pessoas que só conhecem o mundo exterior pelas sombras que são projetadas nas paredes. O sábio seria aquele que sai da caverna para conhecer o mundo e a verdade com seus próprios olhos.

Ao retornar, o sábio tenta convencer os demais a romper as cadeias e sair da caverna. Mas ao afrontar as pessoas, acaba atraindo revolta e é atacado brutalmente. Ao fim, é assassinado. Uma pena. Se ao menos o sábio soubesse ouvir...

O mito fala de uma lógica bicameral de mundo. De um lado, estão os ignorantes, que ocupam o escuro das cavernas. De outro, os sábios, que detém o verdadeiro conhecimento. Se nesta históri, você se identifica com o sábio, sinto em dizer: está errado.

A lógica que impede a comunicação de ocorrer, que impede o desenvolvimento de nossas competências comunicativas, é justamente aquela que coloca o outro como o ignorante, o inferior.

Se nós realmente queremos comunicar, não deveríamos ver o diferente como ignóbil ou incauto. Pelo contrário: se estamos abertos para o outro, se entendemos que somos resultado de todas as vozes que nos atravessam, saberemos que temos responsabilidade pela comunicação, e não autoridade sobre ela.

Ouvir, finalmente, é recusar esta lógica. Seria o mesmo que sequer ter entrado na caverna, em primeiro lugar. É criar uma construção relacional entre o eu e os demais nos quais todos têm compromisso com o bem-estar de todos em todos os momentos.

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