Anotações sobre o Presidencialismo de Coalizão
Existe um consenso na ciência política de que, como forma de implementar as políticas públicas, o Poder Executivo passa a distribuir pastas ministeriais, como uma forma de obter em troca apoio de uma maioria no Congresso. O consenso termina no momento em que se procura identificar a existência, ou não, de disciplina partidária, criando uma cisma entre as duas linhas. A primeira acredita que os partidos no Brasil são indisciplinados e que, portanto, o comportamento do Congresso é imprevisível. A segunda abordagem defende posição divergente, onde o comportamento dos partidos é disciplinado e que, sendo assim, são previsíveis os resultados das decisões, e que, além disso, os membros do parlamento não são capazes de fazerem valer suas particularidades e interesses localistas ao contrário do que entende aqueles que defendem uma impossibilidade de previsão das decisões.[1] Para tal discussão entraríamos nos meandros dos motivos que levariam ao comportamento tal ou qual dos Deputados, podendo inferir que tal disciplina estaria moldada pelo sistema eleitoral e de governo, porém tendo em vista que o presidencialismo de representação proporcional em lista aberta é uma característica que diz respeito a um período de tempo muito reduzido – 1946 à 1964 e pós 1988 – não caberia aqui entrarmos em tal discussão.
Na primeira parte tenta-se demonstrar que, contrariando algumas produções pessimistas, a combinação “explosiva” entre presidencialismo e multipartidarismo, que conduziria o sistema político brasileiro pós-1988 ao risco da paralisia decisória, pelo menos por enquanto, ainda não explodiu e que tem, ao contrário, funcionado de forma relativamente bem sucedida graças à formação de coalizões partidárias estáveis, ou seja, à capacidade que o Executivo tem demonstrado de formar maiorias no Congresso para a aprovação de sua agenda.
Por último, na segunda parte, mesmo tendo em conta que não existam riscos de instabilidade no sistema presidencial baseado em coalizões e de crises de governabilidade no país, procura-se esboçar um panorama dos possíveis custos e prejuízos para o sistema político-institucional do país, relacionados com a formação dessas bases de apoio.
- Presidencialismo de Coalizão
A redemocratização do Brasil e a promulgação da nova Constituição em 1988 alteraram a rotina do processo decisório no sistema político brasileiro. A nova Carta reforçou a concentração de poderes nas mãos do Executivo, contemplando-o com amplos poderes legislativos e ampliando o seu poder de agenda. Ao Presidente da República delegou-se a prerrogativa de editar Medidas Provisórias, com força de lei, solicitar urgência aos projetos de lei de sua iniciativa e a possibilidade de vetar, total ou parcialmente, projetos que considerar inconstitucional ou contrário ao interesse público. Além disso, lhe garantiu a iniciativa privativa de legislar, entre outras matérias, sobre o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias, leis que fixem ou modifiquem os efetivos das Forças Armadas, disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos ou aumento de sua remuneração, dos servidores públicos da União, criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública. Mas foi principalmente o poder de privativo de legislar sobre o plano plurianual e as diretrizes orçamentárias que o presidencialismo de coalizão se fortaleceu.
Por outro lado, a ordem constitucional estabelecida em 1988, também ampliou as prerrogativas do Legislativo, requerendo como imperativo a sua participação no processo de elaboração das leis. Dessa forma, mesmo com toda força, o Executivo não pode governar contra a vontade da maioria parlamentar, e então levado a negociar com o Congresso. A Constituição inaugurou um padrão de governança que a literatura denomina “presidencialismo de coalizão”, com especial impacto sobre relação entre os Poderes Executivo e Legislativo. Não se trata de um regime presidencialista qualquer, mas sim de um tipo específico, marcado pela combinação sui generis entre presidencialismo e multipartidarismo, impulsionado pelo sistema proporcional. Nesse modelo, é baixa a probabilidade de apenas um partido conquistar a maioria das cadeiras no Parlamento, como conseqüência os presidentes eleitos possuem escasso apoio no Legislativo, mas são dotados de consideráveis poderes de agenda.
Trabalhos mais pessimistas com relação ao funcionamento das instituições políticas brasileiras, entendem que essa combinação seria “explosiva”, reduzindo a capacidade do sistema político de produzir governabilidade, e conduzindo-o ao risco da paralisia decisória. O presidencialismo seria, para autores como Lamounier (1991), a fonte da instabilidade, pois estimularia a competição e não a cooperação entre o Executivo e o Legislativo, já que existe uma legitimidade dual resultante das eleições para Presidente e para os membros do Congresso. Sendo, portanto, mais interessante a adoção de um sistema parlamentarista, mais eficiente, estável e capaz de garantir a emergência de governos majoritários.
Já para outros, como Mainwaring (1997), a raiz do problema estaria no alto grau de fragmentação do quadro partidário que, composto por políticos personalistas, marcados por um comportamento individualista e paroquial, sem (ou com pouca) disciplina e fidelidade partidária, constituiria um obstáculo para a formação, pelo Executivo, de uma base de apoio estável, bem como da sua capacidade de pôr em prática as políticas para as quais foi eleito. Um das soluções propostas seria o fortalecimento dos partidos, por meio, por exemplo, da eliminação da lista aberta e da criação de regras que fortalecem a disciplina e a fidelidade dos políticos. Esse ponto de vista surge na medida em que este tipo de governo é característica de sistemas presidencialistas, de lista aberta com representação proporcional. No entanto as produções acadêmicas, a partir da década de 1990, defrontadas com a empírica capacidade do Executivo de formar maiorias no Congresso para aprovação de sua agenda, começaram a se dedicar a compreensão dos fatores que permitiam que o presidente influenciasse fortemente a produção legislativa. Em geral, as explicações para isso estariam relacionadas à amplitude de recursos à disposição do chefe do Executivo e à obtenção do apoio Legislativo por meio da formação de uma coalizão disciplinada, sob a coordenação dos líderes partidários.
No entanto, o que podemos afirmar é a mudança ocorrida no Brasil nos dois períodos que podemos usar como referência – 1946 à 1964 e pós-1988 –,da evolução de um presidencialismo faccional para um presidencialismo de coalizão racionalizado.[2] Esse presidencialismo advêm da tentativa de restringir os problemas de coordenação surgidos com bancadas majoritárias que eram formadas, e assim se delegou maiores poderes decisórios ao Executivo. É nesta medida que surge de fato a necessidade da criação de uma coalizão, ou seja, no sentido literal da palavra “acordo entre partidos para um fim comum” [3], porque mesmo que o poder do Presidente tenha, então sido aumentado, com a implementação de medidas que são editadas com força de lei ordinária com efeito imediato a sua promulgação, é necessário ao Chefe maior do Executivo que suas leis e sua forma de governar se de com apoio do parlamento, além do mais colherão os frutos de uma boa administração, tanto o um quanto outro.
- Formação de uma coalizão disciplinada
O outro fator responsável pelo sucesso do Executivo na aprovação de suas propostas, e que tem inibido o risco de ocorrências de crises que impeçam o bom funcionamento do governo, é a capacidade que este Poder tem demonstrado de criar uma coalizão, não necessariamente fundada em afinidades ideológicas ou programáticas, e angariar o apoio dos deputados e senadores por meio da utilização estratégica do funcionamento do Congresso, que concentra o poder decisório nas mãos dos líderes partidários e nas Mesas Diretoras.
As disposições dos Regimentos Internos das Casas Legislativas concentrarem na figura dos líderes e na Mesa Diretora determinadas atribuições e poderes que forçam os parlamentares a serem leais e a seguirem as diretrizes do partido nas votações em plenário, neutralizando o comportamento individualista e indisciplinado dos parlamentares, que têm reduzida a sua habilidade de direcionar os trabalhos legislativos (Santos, 2006:231). Dentre essas atribuições estão, por exemplo, a nomeação dos parlamentares que irão compor as comissões temáticas e a centralização de deliberações sobre temas substantivos no Colégio de Líderes.
Assim, os líderes partidários aliados ao presidente organizam o trabalho legislativo e coordenam sua bancada de forma a garantir, quase sempre, cooperação parlamentar e resultados previsíveis e favoráveis ao governo. A centralização decisória no Colégio de Líderes favorece o Executivo ao diminuir os custos e as incertezas de um processo de negociação descentralizada, na qual se tem que recorrer a cada parlamentar tomado individualmente.
Segundo Amorim Neto (2000), o grau de coalescência (índice que avalia o grau de relação entre o número de cadeiras ocupadas pelos partidos no parlamento e o número de ministérios recebidos por estes partidos) ajuda a explicar os níveis de disciplina partidária nos períodos por ele analisados. Nessa perspectiva, quanto maior a proporcionalidade entre o peso dos partidos no ministério e sua contribuição em cadeiras para a coalizão governamental no Legislativo, maior é a disciplina partidária e, conseqüentemente, mais estável é o governo.
- Uma teoria à parte
Na linha de pensamento de Fabiano Santos (2003), é proposta uma teoria para justificar a respeitabilidade das “alianças” acontecidas mediante a formação de uma coalizão, consolidada através da distribuição de gabinetes aos partidos. Sendo assim, Santos identifica a necessidade de explicação de três elos teóricos fundamentais para sustentar a teoria criada por Figueiredo e Limongi[4] que entendem que os parlamentares individualmente encontram problemas de coordenação, indicando que sua ação estará pautada de acordo com a do resto dos membros do legislativo. Ou seja, a revelia de um parlamentar de não aprovar medidas do executivo por não terem suas demandas particularistas atendidas. O governo, em retaliação, afirma que se assim o fizerem irá punir os congressista com a demissão de seus representantes dos gabinetes. Sendo assim os parlamentares agirão dessa forma apenas se tiverem certeza que existe uma maioria que poderá derrotar o governo. E dessa forma podemos observar que a coalizão formada baseada no jogo de troca através da distribuição de ministérios aos aliados traz uma fidelidade às propostas que o executivo apresenta.
É nessa medida que Fabiano Santos acrescenta a necessidade de três elos fundamentais para consolidação da eficiência brasileira no Congresso que se forma pela disciplina pautada pela falta de coordenação individual acima citada, quais sejam: explicitar em que condição o presidente detêm poder de barganha assimétrico diante de legisladores individuais; declarar qual o papel dos partidos parlamentares nessa barganha assimétrica; se o presidente tem vantagem em negociar sobre a base individual, por que então negociar com partidos?
No primeiro caso destaca-se a importância sobre o orçamento público e a possibilidade de opinar na Lei Orçamentária, pois havendo fontes alternativas para distribuição dos benefícios para seus redutos, a ação dos congressistas é diferente, assim como era no período 1946 -1964, quando o legislativo tinha considerável poder sobre o orçamento. À época os legisladores estavam autorizados a interpretar as demandas locais e a atendê-las mediante recursos orçamentários, por meio de operações de crédito com antecipação de receitas ou pela aplicação de saldos. E quanto ao terceiro elo teórico, o que nos parece ser mais plausível para sua justificação seria que a figura do presidente é a mais interessada na cooperação dos legisladores, tendo em vista que ele é o responsável, constitucionalmente, pela promoção de políticas públicas de alcance nacional, necessitando de um ambiente institucional minimamente estável.
- Conseqüências do Presidencialismo de coalizão
A pesar de as análises desenvolvidas até o momento indicarem que não existem riscos de paralisia decisória no Brasil, e que as instituições políticas brasileiras têm sido capazes de produzir governabilidade, é também consolidada a idéia de hipertrofia ou predominância do Executivo sobre o Legislativo. As garantias constitucionais que asseguraram a concentração de poderes pelo Executivo (edição de MPs, poder de veto, exclusividade pra proposição do Orçamento, solicitação unilateral de urgência para seus projetos, et. al.) e sua capacidade de construir apoio amplo e confortável no Congresso asseguram a dominância do Executivo sobre a produção legislativa e evidenciam que o Legislativo é praticamente incapaz de aprovar uma agenda alternativa à do Executivo (Limongi, 2006). O número de projetos aprovados cuja iniciativa se deve aos parlamentares é pequeno.
O estímulo a práticas corruptas, ilegais, que se confundem com clientelismo, nepotismo e outras variações de patrimonialismo, muitas já associadas à estrutura legal do país (Rennó, 2006), também têm sido apontadas como um conseqüência do processo de construção de maiorias dentro do presidencialismo de coalizão. O problema é que o presidente não consegue governar sem o apoio dos deputados e senadores. Tal situação faz com que o Presidente que não tem maioria no Congresso, busque esse apoio de qualquer forma, pagando por vezes, preços altos por isso. Muitos afirmam, por exemplo, que escândalos como o do “mensalão” podem estar associados ao presidencialismo de coalizão e reforçam as críticas quanto ao uso de recursos públicos para a obtenção de apoio político.
As críticas ao presidencialismo de coalizão permitem discussões sobre a necessidade de se repensar a organização e o funcionamento do nosso sistema político. Vários autores têm dedicado algumas importantes considerações sobre uma possível reforma política no Brasil e quais seriam as melhores e mais viáveis alternativas a serem adotadas; alguns são mais temerários quanto à implementação de tal reforma, como Figueiredo e Limongi (Rennó, 2006). Outros sugerem mudanças pontuais na lei eleitoral que visem, por exemplo, reduzir o número de partidos e aprimorar a lealdade partidária. Há também os que pregam mudanças que aproximem o atual sistema de governo do parlamentarismo.
De maneira geral, não há consenso sobre o melhor caminho a seguir, mas observa-se uma imperiosa necessidade de se promover alguns ajustes e transformar o funcionamento do presidencialismo de coalizão no Brasil, que tem enfrentado problemas e dilemas. O sistema político brasileiro, que conjuga presidencialismo com multipartidarismo, por meio de coalizões e de uma série de outros mecanismos de concentração de poderes, tem funcionado a contento, desbancando as teses mais radicais que asseguram que esta combinação explosiva conduziria à paralisia decisória, expondo o nosso sistema político ao constante risco da ingovernabilidade.
O Fator que pode justificar por fim a permanência de um governo de coalizão é assim como colocado ao longo da explanação a tentativa de não se obter uma paralisia no processo decisório, assim como ocorreu nos governo que antecederam a ditadura militar, que segundo Wanderley Guilherme dos Santos (1986) a falta de governabilidade gerada por um pluralismo polarizado de oposições bilaterias no continuum, impediram a negociação sobre os principais conflitos, sem se gerar um acordo e trazendo uma letargia ao processo político tendo em vista, além de tudo, da prerrogativa de edição de medidas que tenham força de lei assim como são hoje em dia as Medidas Provisórias.
À guisa de fecho o fato é; o processo decisório está longe de ser caótico ou governado por interesses individuais.
- Bibliografia
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SANTOS, Wanderley Guilherme dos (1986). Sessenta e quatro: anatomia da crise – São Paulo: Vértice.
[1] SANTOS, 2003, p.84.
[2] O termo racionalizado foi introduzido por John Huber, que empregou a noção de parlamento racionalizado para explicar a adoção de normas restritivas para a aprovação de legislação relevante conferiu previsibilidade e coerência à atividade parlamentar na comparação entre as duas últimas Repúblicas Francesas. (SANTOS, 2003, p.86).
[3] AURÉLIO, 1999, p. 490.
[4] FIGUEIREDO E LIMONGI, 1999 apud SANTOS, 2003, p. 87.