APANHANDO, A GENTE APRENDE A BATER!
Décima segunda crônica da série:
Lei Maria “da Peia”
Lucas Carneiro Poetinha*
No próximo dia 8 de março, comemora-se (ou pelo menos se deveria) o dia internacional dedicado às mulheres. Foram muitos anos de preconceitos, lutas, humilhações e sofrimentos antes de se chegar a isso.
E, neste ano de 2016, no dia 7 de agosto, completa dez anos a Lei 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, que deve seu nome à biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que lutou durante vinte anos para ver o seu ex-marido, o professor universitário (o que desfaz o mito de que quem agride mulher é “pobre”) Marco Antonio Herredia punido, ainda que não adequadamente, por agredi-la constantemente, e por tentar, repetidas vezes, matá-la. Numa dessas tentativas, deu-lhe um tiro de espingarda nas costas, enquanto ela dormia, causando-lhe paraplegia (estivemos com ela recentemente, eu e minha filha).
A lei, li-a eu, na íntegra. Deixa ela claro que a “proteção” é dada para as mulheres, em caso de serem vitimadas em qualquer tipo de abuso que lhes possa causar “morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial” (texto da lei), por parte de seu companheiro ou de sua companheira.
Infelizmente, devido a nossa carga histórica, social, cultural e política, esse crime “de pouco poder ofensivo, visto tratar-se de violência doméstica” ainda fica, muitas vezes, impune. Os agentes da lei, talvez alguns deles mesmos agressores de suas parceiras, obrigados por força das circunstâncias a ocuparem cargos dentro das delegacias e juizados que cuidam tais crimes, “podem não ser capazes de prestar os serviços solicitados, e alguns deles continuam a responder às vítimas de maneira a fazê-las sentirem-se envergonhadas e”, muitas vezes, ainda mais “humilhadas”.
“De pouco poder ofensivo”? Que o digam os olhos roxos, os braços e pernas quebrados, as costelas rotas, a pele machucada e roxa, os dentes quebrados, a autoestima destruída, a moral ofendida, as almas feridas, o psicológico abalado, apenas por “tratar-se de violência doméstica”.
A lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90) classifica como tais o homicídio, qualificado ou não: muitas mulheres são assassinadas por seus companheiros ou companheiras dentro de seus lares; o estupro: muitas mulheres são constrangidas a fazerem sexo com seus companheiros contra a sua vontade. E a crimes hediondos equiparados a tortura: muitas mulheres são maltratadas contínua e repetidamente por seus companheiros no recôndito dos seus lares; e o terrorismo: não pode ser classificado como menos que terrorismo o maltrato doméstico que chegue a causar lesões, sofrimento físico e/ou psicológico a uma pessoa, a uma mulher, em sua própria casa, o lugar que deveria ser-lhe seguro, onde deveria estar protegida contra os malefícios da sociedade. Um crime que tem todas as características de crime hediondo não pode nem deve ser tratado com tamanha indiferença, cognominado como “de pouco poder ofensivo”. A punição não pode ser comutada em qualquer tipo de pena, ou simplesmente ignorada, como o foi a pena de Herredia.
Num país onde, há até bem pouco tempo, se “lavava a honra com sangue”, está na hora de se reparar todo o mal feito à mulher. Herredia foi finalmente preso em 2002, mas cumpriu apenas dois, dos 10 anos a que foi condenado. Está em liberdade. “MARIA DA PENHA ESTÁ PARAPLÉGICA".
Infelizmente, muitos agressores ainda não são devidamente punidos. E suas vítimas pagam por suas agressões até o dia de hoje. Está na hora de a polícia desempenhar o seu papel, investigar, prender, levar à delegacia os agressores. De a justiça julgar e condenar sem dois pesos e sem duas medidas. De não se permitir a pouca vergonha de se permitir que o agressor saia sob fiança. Crimes hediondos são inafiançáveis! Está na hora de se respeitarem os direitos humanos, inclusive os das mulheres. De se fazer justiça.
Lembremo-nos disso: a lei está aí para ser observada e para ser cumprida.
A lei recebeu no Ceará o carinhoso apelido de Maria da “Peia”. A “peia” é um tipo de algema confeccionada em couro com que se prendem os animais no campo, da pata traseira para a dianteira, para que não saltem cercas e não invadam terrenos alheios ou plantados de roça. Num passado não muito distante, alguns pais utilizavam esse objeto para açoitarem seus filhos desobedientes. As marcas deixadas eram de causar dó. Esse carinhoso apelido – Maria da “Peia” – quer lembrar aos agressores, aos potenciais agressores, e mesmo aos que não o são de que, na cadeia, homens que estupram mulheres e/ou menininhas, ou que maltratam suas companheiras, recebem dos demais presos um tratamento não muito recomendado a ser aqui explicitado.
* Lucas Carneiro, Poetinha, é escritor, poeta e cordelista. Pós-graduando em Linguística é professor de Língua Portuguesa e de Língua Espanhola. Nascido em 1964, 15 dias após o golpe atribuído aos militares contra o povo brasileiro, viveu todo o período da ditadura. Inconformado com a situação atual do país registra seu descontentamento em seus poemas, crônicas, cordéis e artigos, como o ora publicado aqui.