Cassiane e uma narrativa de apologia à violência doméstica

Quando o outro muda, você pode perdoar.

Ao que tudo indica, essa era a mensagem que a cantora Cassiane gostaria de passar no clipe "A Voz". No qual, a mulher agredida, vítima de violência doméstica, perdoa o marido após ele mudar. Sem entrarmos em questões religiosas e fé, vamos falar aqui de comunicação.

Quando vamos repassar uma mensagem ao público precisamos pensar o propósito, traçar o objetivo. A partir daí, definimos a narrativa observando sempre a linguagem e a condução dela. Neste caso, analisamos o contexto. Como está o cenário? O que há de legislação sobre o tema? Quais as possíveis reações?

O cuidado com o impacto da mensagem faz parte do mapeamento de riscos que toda ação de comunicação precisa passar. No caso do clipe, o que houve?

Imagem

Em termos de percepção, a condução da narrativa gerou uma imagem de romantização da violência contra a mulher. A mensagem era clara: bastava perdoar para tocar o coração do agressor para ele mudar.

Em momento algum o vídeo falava em denunciar. Assim como faltavam cenas relacionadas às consequências de uma agressão. Após a repercussão negativa, isso mudou e uma nova edição rapidamente feita. Agora há polícia, disque-denúncia. Mas será que a ação de controle de danos funcionou? 

Mesmo alterado, o vídeo ainda passa a mensagem de que o agressor pode mudar e a vida ao lado da vítima continuar. Ele conduz mulheres a silenciarem e aguentarem a dor. É uma causa perigosa para a imagem da cantora. 

Sabendo do risco, a nota da produtora responsável terceiriza a culpa. Tira “o peso das mãos” da Cassiane e joga nas mãos da diretora artística, ainda citando o nome da profissional. Deixando claro: "o roteiro original do clipe foi todo desenvolvido por nossa diretora artística Marina de Oliveira, focando na FÉ e AÇÃO, sem nenhuma interferência da nossa amada CASSIANE".

Assumir responsabilidade

Por mais que o roteiro não foi escrito pela cantora, ela é a porta-voz, a marca responsável. Dizer que ela não interferiu é terceirização da culpa. E sim, este é um dos erros principais em gerenciamento de crises para controle de danos (o chamado colchão de reputação para amaciar a queda).

Ao colocar no ar o vídeo, assinando-o, ela assume a causa em prol da mulher manter-se firme apesar da agressão e perdoando porque tudo muda. Mas se a mensagem não é esta e houve um "erro de interpretação", gerado pela condução narrativa, falta a explicação da cantora.

Sim, falta ela assumir a responsabilidade e falar. Por mais que ela tenha escrito na sua rede social um pedido de perdão, o fato não foi controlado.

A curva da crise só irá parar de crescer quando ela se posicionar de forma direta. Falando com o público. No caso, um vídeo da cantora pedindo desculpas e explicando o ocorrido já ajuda no controle.

Posicionar

Em crises, o posicionamento precisa gerar identificação, transparência e verdade. E o texto, por mais que bem redigido, torna a relação fria e distante.

Sabemos que em tempos de redes sociais a frieza não tem lugar, é preciso laço, sentimento. O ideal é o face a face digital, que hoje é uma live ou um vídeo gravado. Outra ação a ser feita, se a mensagem estiver sendo mal interpretada, é recolher o vídeo.

Uma coisa é certa: Cassiane precisa gerenciar a crise ou o caso vai continuar rendendo, enquanto o vídeo ficar no ar. Até ela fazer isso, fica a dúvida: em termos de comunicação estratégica, a narrativa posicionou erroneamente a mensagem ou era exatamente o que queriam dizer?