A apuração da barbárie e a ética online

A apuração da barbárie e a ética online

Em qualquer curso de jornalismo, desde o primeiro semestre, não há aluno que não tenha que responder ou discutir como fazer coberturas éticas em casos de suicídio, massacres e terrorismo. O que se deve divulgar... Sobretudo, o que não se deve. No curso superior somos obrigados a refletir sobre essas questões, da mesma forma que bebês aprendem a engatinhar.

Os meios de comunicação, com suas centenas de anos de história, já cobriram de diversas formas esses assuntos. Já viram o que não funciona, o que estimula, o que é ético e o que não é. Refletiu-se sobre o tema, foram criadas cartilhas, psicólogos, pedagogos e demais especialistas da área opinaram e ajudaram a construir, o que hoje sabemos: não se divulga cartas suicidas, não se divulga fotos de mortos em massacres, vídeos de corpos estraçalhados por helicópteros, não se publica imagens dos terroristas, cobertos e com armas em mão. É fato.

Era fato.

Agora estamos sendo apresentados a uma outra forma de consumir informação. Quem detém o conteúdo não é mais o profissional que preparou-se eticamente para lidar com ele. É o público em geral. São os vídeos, em looping que chegam em nossos celulares, muitas vezes acompanhados de mensagens como: “é o corpo do fulano”, “olhem o rosto do m**** que atirou em nossos anjos”, “saiba o que os atiradores pensavam”.

É sintomático. Se os jornais não mostram, as redes mostrarão. Ainda que haja um esforço das grandes corporações do Vale do Silício em fazer uma triagem e censurar essas imagens, a velocidade da informação é muito alta, se espalha, como um vírus. Parece que vamos ter que passar por todo esse processo, coletivamente, reaprender a ética da informação. Mas quanto tempo e quantas vidas vamos perder até lá, estimuladas por esses gatilhos?

Neste cenário, me parece que em vez do público começar a aprender a lidar com essa massiva exposição, os jornais vem regredindo. O massacre de Suzano nos mostrou isso. A concorrência com as redes é cruel. As manchetes passaram a explorar a vida dos atiradores, cheguei a ler matérias em que citavam até mesmo os softwares, que os jovens usavam para acessar os fóruns na deepweb, que propagavam as mensagens de estímulo a violência. Vi prints do detalhamento que os atiradores fizeram do plano e as comemorações de apoiadores, pós-ataque. Fomos apresentados as fotos dos rapazes apontando armas e trajando preto, e até a vídeos de câmera de segurança, mostrando o exato momento em que um deles abre fogo contra um grupo de ex-colegas e usa um machado para desferir golpes, em um corpo já caído. Tudo isso, em páginas de meios de comunicação renomados.

A questão que fica é: se a informação vai ser difundida, independente dos meios de comunicação, cabe ao jornalismo trazer esse detalhamento e desdobramento da notícia? Sabendo-se que vídeos e imagens espalhadas nas redes sociais, pelo público em geral, na maioria das vezes tratam-se de montagens e falsos dados, cabe ao jornalista apresentar os detalhes sórdidos, com precisão e objetividade? Parece-me que é essa a linha editorial que muitos jornais tem adotado. Se você não pode vencer, junte-se a eles... Mas com apuração e coloque tarjas em cima dos corpos, por favor.

Por coincidência, em meus feeds, sigo muitos jornais neozelandeses. Essa manhã, me surpreendi ao abrir minhas páginas e logo pular a notícia do massacre a uma mesquita. Rolei minha linha do tempo e fiquei mais impressionada em ver, que todos os grandes jornais do país, compartilhavam manchetes que seguiam mais ou menos essa linha: “Por favor, leia isso antes de compartilhar informações sobre o massacre”, “Autoridades pedem que população não compartilhe vídeo”, etc. O australiano que cometeu os assassinatos transmitiu ao vivo, o momento do ataque, em suas redes. Antes que o Facebook pudesse censurar as imagens, o vídeo atingiu um determinado número de pessoas, grande o suficiente, para fazer o conteúdo permanecer “imortal”. Restou aos jornais a tarefa de tentar conscientizar a população, para evitar a glamurização do ato.

Então, afinal, qual é o papel do jornalismo nestes casos tão parecidos, mas com coberturas tão distintas? Devemos voltar a academia e repensar tudo que discutimos nessas centenas de anos sobre ética? Cabe aos jornais expor a violência e a insanidade, apresentando os mínimos detalhes das figuras envolvidas? Ou cabe ao jornalismo esse tom professoral e educativo, que afasta os cliques? Estamos fadados a organizar a fila, no meio da desordem, gritando para que as crianças sejam educadas e respeitem o colega ao lado?

Me parece que a saída encontra-se exclusivamente nas mãos dos gigantes da internet. Como podemos proteger os usuários deles mesmos? Como podemos zelar pela ética, com uma ferramenta tão poderosa como as redes sociais, nas mãos? É apenas uma questão cultural?

Para mim, a única certeza é que esse debate é urgente dentro das companhias tecnológicas e não dispensa em hipótese alguma, a presença de profissionais de comunicação. É imprescindível que haja essa discussão ética para tornar as ferramentas mais seguras e livres dessa propagação indiscriminada da barbárie. É hora das empresas responsáveis pelas redes sociais enxergarem que aí mora um nicho, que deve ser ocupado por jornalistas e profissionais da área, e é tão ou mais importante do que os departamentos de desenvolvimento dos aplicativos ou inovação, por exemplo.

Para mim, o papel do jornalismo, no futuro, vai mais ou menos por aí. Como podemos inserir conteúdo responsável e relevante, em ferramentas de difusão massiva de informação?

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