Aquelas tardes grises com minha avó Maria Elisa

Aquelas tardes grises com minha avó Maria Elisa


Eu era pequeno, e apesar disso, lembro como se fosse ontem. O mundo acontecia sem a minha influência, como ainda acontece hoje, mas o meu mundo girava de um jeito que só eu era capaz de compreender, ainda que do mundo mesmo, eu não entendia quase nada, exceto de algumas coisas que já eram prazerosas, já naqueles dias, embora sendo eu ainda pequeno.

Uma das coisas que me trazem lembranças suaves e saudosas, é das tardes grises dos dias de chuva, fosse apenas um chuvisqueiro atravessado, como é comum em Gramado, fossem as torrenciais tormentas, com raios e trovôes em contínuo, que faziam tremer a casa e a alma, naqueles dias chuvosos, ruins, assustadores.

Eu, porém, ouvia em paz, o crepitar da lenha no velho fogão, ladeado pelos trapos que secavam, pendurados logo acima, abarrotando o espaço entre o fogão e a parede, entre o fogão e o teto, otimizando todo o calor possível, para secarem e logo depois, serem passadas com o velho ferro de brasas, que minha avó tinha que soprar nas laterais, de tempos, em tempos, para que as cinzas não borrassem as roupas enquanto deslizava por elas enquanto eram alisadas. De tempos em tempos, minha avó molhava o dedo com saliva e testava a temperatura na superficie lisa do ferro, para ter certeza de que ainda havia calor bastante para deixar bem lisinhas as velhas calças, camisas, e surrados vestidos da minha mãe.

O velho candeeiro alumiava o ambiente, e embora tivéssemos um lampião, este era usado apenas quando toda a familia estava em casa. Era preciso economizar querosene, e a velinha gastava menos.

Depois da faina, já com as roupas dobradas, Maria Elisa, minha avó, sempre cantarolando algum hino tradicional, metia a mão no único armário de duas portas da cozinha, apanhava uma lata de farinha, outra de óleo, que nesse tempo eram retangulares, e não cilíndricas, como hoje, que é tudo plástico, uma lata com sal, e em outra parte do armário, um ou dois ovos, e com tudo dosado em uma bacia, deitava água, que apanhava do balde, e espargindo por sobre os ingredientes, ia mexendo e dando textura para os bolinhos, que iria fritar logo a seguir, ma velha panela de alumínio, com furinhos no fundo, consertados com leite, muito bem areadas e brilhantes, e dali, entre uma estrofe e outra, entoadas por sua voz esganiçada  em um louvor intenso, acompanhado de chá de mate com leite gordo, nos assentávamos na caixa de lenha, ao lado do fogão, e comíamos bolinhos salgados (que ela chamava de "bolinho chimarrão", diferente do bolinho doce), aos goles de chá. E assim, de bandulho refestelado, como deve ser, ela abria sua velha bíblia surrada, e começava a ler as narrativas que falam de esperança na vinda do Redentor.

A chuva, lá fora, se debatia ferozmente embalada pelo vento, gemendo pelas paredes e frestas do telhado, quando vez por outra espiávamos lá fora por uma frestinha do tampão das janelas, que não tinham vidros, para saber do clima, e logo voltávamos à leitura. E assim, minha avó, Maria Elisa, me contava passagem por passagem, relatando sua certeza de que O Messias em breve voltaria, e que iríamos morar em um lugar onde não choveria mais com tanta fúria, onde a luz do Criador nos manteria aquecidos, e o velho fogão à lenha, remendado, poderia descansar no passado.

Aquelas tardes grises, com minha avó, Maria Elisa, ainda que curtos fossem os anos, hoje apenas lembranças, cristalizaram a minha fé e minhas boas lembranças. Os hinos que ela cantava, tinham melodias apropriadas para cada momento: haviam hinos para os dias chuvosos, hinos para as manhãs ensolaradas, quando as roupas eram lavadas no velho tanque acinzentado de tábuas largas, abastecido por uma calha de madeira que vinha de um còrrego, logo acima, como haviam hinos para os dias de melancolia, hinos para a sexta feira, quando fazia a preparação da casa para receber o Sábado, que chegava abastecido de pães assados no forno à lenha ao lado do ranchinho, o cheiro de limpeza, onde o chão de tábuas largas de pinhiero era areado com esfregão de aço e sabão, e encerado com uma mistura de cera de abelha com parafina, deixando a casa com perfume de colméia, e os hinos temperando o entardecer, posto que logo chegaria a noite, e os demais membros da família chegariam para o repouso: minha mãe, Ester, professorinha numa escolinha de vila distante, meus tios Esaú, peão de serraria, e meu tio samuel, menino ainda, que passava o dia fazendo biscates aqui e ali, para amealhar uns caraminguás, quando não estava na escola, porque minha avó jamais permitiu que minha mãe e Samuel deixassem os estudos. Infelizmente, com Esaú, não teve a mesma sorte, porque ele optou pelo trabalho, e foi trabalhando, que teve morte repentina quando eu tinha dez anos de idade. Mas essa aqui não é pra ser uma história triste, pois quero falar apenas daquelas tardes cinzentas de chuva onde um paraíso estacionava em meu coraçãozinho de menino que adorva aquilo tudo, especialmente as histórias e causos contados por minha avó Maria Elisa, e claro, os bolinhos com chá de mate. Mas a minha sorte é que eu guarde, no coração, a mensagem do que ela me esperançava, e tenho certeza de que a verei, muito em breve, no dia da Ressurreição. Ah, que festa vai ser. Bolinho com chá de mate, logo na chegada. E os hinos que ela cantava, repetidos pelos anjos à nossa volta, emocionados pelo reencontro.

Pacard Escritor, com muita saudade

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