A Armadilha dos Indicadores de Desempenho na Saúde
Indicadores de desempenho são ferramentas que permitem medir uma determinada atividade na organização. Representam algumas dimensões do diagnóstico operacional, podendo ser indicadores de eficiência, eficácia, efetividade, produtividade e qualidade. Tendo em mente que “não se gerencia o que não se mede”, a utilidade dos indicadores para a gestão cresce a cada dia. No entanto, devemos estar atentos para eventuais armadilhas e efeitos colaterais que a utilização inadequada desta ferramenta pode ocasionar.
Certa vez, em conversa informal, fui surpreendido com o seguinte relato de um gerente de um call center. Por ser avaliado, dentre outras coisas, pelo número absoluto de ligações atendidas por sua equipe, não raro era necessário adotar a tática de desligar, intencionalmente, todas as ligações. Após a ordem, que mimetizava uma queda do sistema, os operadores retornavam ao trabalho e, em seguida, dezenas de novas ligações eram recebidas. Assim, aumentava-se, artificialmente, o número total de ligações atendidas e sua equipe ficava dentro do parâmetro de avaliação utilizado.
Outros exemplos de igual simplicidade também corroboram o fenômeno descrito. Imaginemos uma clínica de diagnóstico por imagem onde o principal parâmetro de avaliação da equipe seja o percentual de exames com atraso para liberação do laudo. Os funcionários poderão criar formas de evitar o desconforto de estar fora da meta estabelecida e a tendência seria a de concentrar atrasos em alguns poucos exames. Assim, um menor número de exames teria grandes atrasos.
Caso a mesma clínica do exemplo acima utilizasse outro indicador de desempenho, como o número total de dias atrasados para liberação do laudo, dividido pelo número total de exames realizados, é provável que o resultado fosse diferente. Afinal, nesse cenário, não haveria estímulo para concentrar atrasos em alguns poucos pedidos e a tendência seria a “democratização” destes atrasos. Na prática, é possível que atrasos de pequena magnitude, mesmo quando presentes em mais exames e afetando maior quantidade de clientes, causem menores transtornos e inconvenientes à organização do que atrasos longos e concentrados.
Esses relatos evidenciam como a métrica utilizada pode induzir comportamento e influenciar as ações dos colaboradores, como bem sugere o título deste artigo. “Tell me how you measure me, and I will tell you how I will behave” é uma frase atribuída ao físico israelense e guru da administração Eliyahu Goldratt, autor da teoria das restrições e do livro “A Meta”. O racional teórico por trás desse fenômeno talvez seja a tentativa de corresponder às expectativas criadas - uma característica essencialmente humana e, portanto, presente nos colaboradores de qualquer organização. Estar “dentro da meta” faz parte do rol de expectativas que a gerência tem sobre um colaborador, que tentará corresponder da melhor forma. O instinto de sobrevivência, outra característica humana, também influencia nas atitudes e ações dos colaboradores – que, no ambiente corporativo, se materializa com o objetivo intrínseco de manutenção do emprego. Por vezes, inclusive, manter o próprio emprego acaba sendo um objetivo maior do que o cumprimento da missão da organização.
A definição dos indicadores de desempenho deve sempre levar em conta a missão e razão de existir da organização. Ainda, deve ser de fácil compreensão e, de alguma forma, refletir direcionadores estratégicos do setor. Entretanto, a escolha e definição desses direcionadores estratégicos e, consequentemente, dos indicadores de desempenho não é uma tarefa trivial.
Ao definir o indicador de desempenho para uma equipe em uma determinada organização, deve-se ter em mente quais serão os efeitos, negativos ou positivos (e às vezes ambos), em outros setores da mesma organização. Os indicadores moldam as ações e atitudes dos colaboradores, que empregarão esforços para manter-se dentro dos parâmetros estabelecidos. Diante disso, um indicador inadequado pode induzir um determinado comportamento (não almejado) nos colaboradores e ser, de fato, prejudicial para toda a organização.
Na gestão em saúde, existem perigos adicionais e aumenta-se a responsabilidade e o cuidado na escolha dos indicadores. Um comportamento inadequado nesse sentido pode não apenas ser danoso à organização, ou afetar a satisfação dos clientes, mas ter impacto negativo na saúde e bem-estar destes. Como os exemplos anteriores bem mostram; atrasos na liberação de exames podem retardar um diagnóstico ou agravar um prognóstico, enquanto o impacto nos clientes do call center é “apenas” o tempo perdido e o inconveniente.
Um dos indicadores da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) utilizados para avaliação de Centros de Terapia Intensiva é a “Taxa de densidade de incidência de infecção de corrente sanguínea associada a cateter venoso central”. Sabe-se que a qualidade da assistência a pacientes em uso de cateter venoso central (CVC) está relacionada ao risco de infecção. Esse indicador pode ser calculado dividindo-se o número de casos novos de infecção de corrente sanguínea, em pacientes em uso de CVC, pelo número de CVC por dia no período. Multiplica-se o valor encontrado por 1.000 e temos o indicador desejado. Apesar de útil, existe uma armadilha na adoção desse indicador. A tentativa de cumprir essa meta pode levar a uma busca ativa inadequada de infecção, um estímulo à troca precoce do sítio do CVC, submetendo, muitas vezes, o paciente a procedimentos desnecessários, riscos adicionais e, ainda, onerando o sistema de saúde.
Existem outros exemplos na saúde, como no setor de transplante renal, onde há uma tendência à valorização, de forma velada, do número de transplantes como indicativo de sucesso. Outros indicadores como sobrevida do paciente ou do enxerto renal são, por vezes, preteridos - talvez por sua maior complexidade. Essa inversão de valores deve acender um alerta na sociedade e pode representar um estímulo para um processo de seleção de doadores menos rigoroso. Autoridades e órgãos reguladores devem ficar atentos para que não haja riscos adicionais a pacientes e incentivar a valorização da sobrevida como principal indicador de desempenho do setor.
Indicadores de desempenho são importantes, mas sua adoção deve ser precedida sempre por uma análise crítica de suas possíveis implicações e influência no comportamento dos colaboradores, além de uma avaliação periódica de seus efeitos na organização. A missão e a razão de existir da organização, muitas vezes, vai além das metas estabelecidas por índices, taxas e indicadores. Afinal, “nem tudo que conta, pode ser contado, e nem tudo que pode ser contado, realmente conta”.