A Arrogância do Antropocentrismo: Uma Reflexão sobre Evolução, Inteligência e o Futuro da Humanidade

A Arrogância do Antropocentrismo: Uma Reflexão sobre Evolução, Inteligência e o Futuro da Humanidade

A suposição de que a humanidade ocupa o topo da evolução, sustentada por um antropocentrismo profundamente enraizado, moldou as nossas narrativas, a nossa ética e a nossa visão do que constitui progresso e evolução humanidade ao longo da sua história.

Desde as primeiras mitologias que colocavam os seres humanos no centro da criação até ao ideal iluminista de seres racionais como a máxima expressão da engenhosidade da natureza, esta perspetiva subsiste na convicção silenciosa, e de certa forma exarcebada, de que, atualmente, atingimos um patamar último e estável da evolução humana, o pináculo da evolução da humana.

No entanto, as visões acumuladas da biologia, da cibernética, da filosofia e da crítica cultural apontam o contrário, nunca habitámos um pico estacionário; somos, sempre, parte de uma história inacabada.

Além disso, o ritmo atual das mudanças tecnológicas e científicas sugere que este capítulo atual da nossa evolução, em que continuamos predominantemente biológicos, frequentemente assolados por doenças e limitados pelo tempo de vida, somente mais uma etapa na saga da humanidade.

Foi Charles Darwin quem refutou decisivamente a ideia de uma hierarquia fixa de espécies, ao demonstrar, em A Origem das Espécies, que toda a vida se adapta de forma contínua, moldada pela interação entre a seleção natural e as pressões ambientais. Embora as ideias de Darwin tenham sido revolucionárias no século XIX, mantêm-se igualmente relevantes no presente, a evolução biológica não define uma meta suprema; em vez disso, convida a um processo ininterrupto de transformação.

A reflexão de Carl Sagan sobre o "pálido ponto azul" relembrou-nos a nossa insignificância cósmica, incutindo um sentido de humildade perante a vastidão do universo. Abraçar uma perspetiva pós-antropocêntrica exige, de forma semelhante, que reconheçamos o potencial de sistemas inteligentes ou de seres biológicos modificados para ultrapassarem ou divergirem significativamente das normas humanas. Yuval Harari, em Homo Deus, argumenta que a próxima etapa na evolução poderá envolver a criação de novas categorias de seres sencientes, alguns orgânicos, outros sintéticos, levando-nos a repensar o que significa ser humano num futuro moldado pela tecnologia avançada.

Atualmente, numa era marcada pela biologia sintética, pela investigação impulsionada por inteligência artificial e pela engenharia genética, deparamo-nos com uma questão diferente: o que acontece quando a evolução deixa de ser orientada exclusivamente por forças ambientais e passa mais a ser determinada pelas escolhas que fazemos enquanto indivíduos e sociedades, resultado do avanço científico?

A perceção de que podemos em breve transcender as nossas fronteiras naturais intensifica-se com a rápida aceleração da inteligência artificial, pensadores como Ray Kurzweil popularizaram a ideia de uma "singularidade" tecnológica, um momento em que a inteligência das máquinas não só se equiparará à cognição humana, como a poderá ultrapassar, alterando possivelmente e de forma irreversível a trajetória da nossa espécie. Outros, como Nick Bostrom, alertam que tais avanços podem representar riscos existenciais se não forem acompanhados por mecanismos éticos e regulamentares robustos. Nestas discussões estão profundos e impactantes questionamentos sobre poder, agência e autonomia, na essência: quem decide, ou decidirá, que tipo de melhoramentos serão admitidos e com base em que critérios?

Ao abordar estas questões, importa referenciar as ideias de Michael Levin (co-criador dos xenobots), cujo trabalho sobre biologia do desenvolvimento e sinalização bioelétrica na Tufts University nos leva a alargar o conceito do domínio “biológico do corpo” e a considerar outras estruturas de representação corporal que não se limitam ao contexto biológico, esta visão é articulada pelo filósofo Max More e outros, que defendem que os indivíduos devem ser livres de se alterarem a si próprios através da tecnologia, sem constrangimentos sociais nascidos do medo ou do preconceito.

O argumento de Levin vai além de reconhecer apenas a probabilidade de híbridos homem-máquina ou de organismos desenhados em laboratório; ele insiste na obrigação moral de se garantir "liberdade da corporeidade", assim, segundo a sua perspetiva, cada pessoa deve ter autonomia para seguir a forma, ou formas, de existência que melhor corresponda às suas aspirações.

Tal liberdade implica que nenhum indivíduo ou grupo imponha um limite às transformações que alguém deseje realizar. Quer essas transformações envolvam interfaces neurais radicais, órgãos artificiais ou próteses inovadoras, o ponto central reside em assegurar que a escolha pessoal e a equidade social orientem tais intervenções, em vez do medo, do preconceito ou de hierarquias cristalizadas.

Esta visão de liberdade morfológica ecoa, de certa forma, as filosofias transumanistas, que defendem o direito individual de modificar corpo e mente.

Segundo Levin, a busca da liberdade morfológica e do bem-estar não pode, portanto, ser separada de questões mais amplas de equidade e justiça, para que a encarnação melhorada não se torne um privilégio disponível apenas para alguns com capacidades para o fazer, como acesso a estruturas computacionais avançadas.

O mundo em que vivemos está marcado por violência, injustiça e formas de exploração enraizadas, desafios tão profundos que parece utópico desejar um futuro sem eles (basta observar como hoje nos referimos às condições de vida da humanida há 100 anos). Contudo, se levarmos a sério a promessa da evolução tecnológica, não é impossível conceber uma sociedade pós-escassez, onde a doença, a carência de recursos e até o envelhecimento sejam mitigados.

Neste cenário, as antigas estruturas de violência, por exemplo a opressão estrutural de grupos humanos vulneráveis, exigiriam uma reformulação radical a nossa perspetiva relativamente ao nosso processo evolutivo. Ferramentas genéticas capazes de erradicar doenças associadas à idade e a distribuição de recursos gerida por sistemas avançados de IA em parceria com o ser humano, poderiam reduzir drasticamente as limitações, as desigualdades e o sofrimento humano. No entanto, alcançar este objetivo requer mais do que meros progressos tecnológicos.

Estas reflexões obrigam-nos a reconsiderar o antropocentrismo não apenas enquanto posição filosófica, mas também como barreira prática ao bem comum. Se insistirmos na ideia de que só o Homo sapiens (na forma atual) merece consideração moral e legal, poderemos falhar em proteger ou valorizar entidades, sejam elas inteligências artificiais, formas geneticamente alteradas ou seres híbridos, que venham a demonstrar capacidades de criatividade, empatia e raciocínio equiparáveis ou até superiores aos nossos.

Esta expansão do nosso círculo moral faz lembrar o apelo de Peter Singer a reduzir o sofrimento onde quer que ocorra e o de Carl Sagan a cultivar humildade quanto ao nosso lugar no cosmos. De facto, permitir o surgimento de várias formas de inteligência obriga-nos a redefinir a noção de pessoa, de um modo que vá além do limite imposto pela espécie e reconheça a capacidade para a autoconsciência, a agência e a reciprocidade ética em domínios tanto biológicos como sintéticos.

Para o fazer, é essencial abrir mão da crença de que a excecionalidade humana é um dado adquirido. Filósofos como Michel Foucault e Donna Haraway sublinharam que os nossos conceitos de "o humano" são construções sócio-históricas, suscetíveis de serem desmanteladas e reconfiguradas sob novas condições tecnológicas. A ideia de Haraway sobre o "ciborgue" apresenta uma visão de identidade híbrida que abala fronteiras , humano/máquina, natureza/cultura, e aponta para configurações mais inclusivas e dinâmicas do EU.

Como poderia ser, então, o mundo dentro de cem anos se abraçarmos verdadeiramente esta viragem pós-antropocêntrica?

Surge um leque de possibilidades, podemos imaginar uma sociedade onde a edição genética esteja tão generalizada que elimine a maioria das doenças hereditárias, onde sistemas de IA trabalhem ao lado da mente humana, sem a substituir completamente nem se limitarem ao papel de meras ferramentas, e onde a liberdade morfológica seja consagrada como um direito fundamental.

As pessoas poderão optar por manter um corpo inteiramente biológico ou integrar implantes neurais para ampliar a cognição; poderão escolher membros mecânicos que lhes permitam adquirir novas capacidades físicas e cognitivas. De forma ainda mais radical, hipoteticamente poderíamos transferir a nossa consciência , assim que a tecnologia o permita, para suportes digitais, habitando realidades virtuais ou exoesqueletos robóticos, esbatendo a fronteira entre humano e inteligência artificial.

Contudo, nenhum destes cenários é inevitável ou isento de perigos, o alerta de Bostrom sobre riscos existenciais recorda-nos que uma IA mal orientada pode constituir uma ameaça catastrófica.

Além disso, as disparidades de riqueza e poder poderão transformar estas novas liberdades em instrumentos de opressão, produzindo um mundo onde apenas uma elite tem acesso às tecnologias que prolongam a vida e potenciam a inteligência.

Recuperando o já referido anteriormente, mas que importa reforçar no âmbito desta reflexão, um dos principais desafios consiste em garantir um acesso equitativo às tecnologias que prolongam e melhoram a vida. Sem uma governação cuidadosa, corremos o risco em que os seres humanos "melhorados" divergem significativamente dos que não podem pagar ou aceder a essas modificações. A abordagem das capacidadesde Martha Nussbaum, que se centra em permitir que os indivíduos desenvolvam e exerçam capacidades humanas fundamentais, sugere um quadro para garantir que as oportunidades de melhoramento não aprofundem a desigualdade.

Atingir um resultado equilibrado depende das estruturas que criarmos para gerir estes desenvolvimentos: supervisão democrática da IA, distribuição justa das descobertas médicas, educação universal que inclua literacia ética e tecnológica, e quadros legais que protejam a autonomia pessoal. Em suma, depende da nossa capacidade de interiorizar a lição de que a nossa forma atual (biológica e limitada) representa apenas um momento efémero numa linha contínua de desenvolvimento, que brevemente pode assistir uma linha exponencial desse desenvolvimento.

Se há um fio condutor nestas reflexões, é o reconhecimento de que a humanidade nunca foi o ato final do drama cósmico ou evolutivo, antes, somos participantes numa história muito maior do que nós próprios, dotados de um poder, talvez ímpar, para moldar essa história de um modo desconhecido na natureza.

As nossas narrativas devem, portanto, evoluir de mitos autocomplacentes de superioridade para entendimentos mais humildes e fluidos do que podemos vir a ser, de facto, as transformações que a tecnologia hoje possibilita (e no curto médio prazo possibilitará) indicam que a próxima etapa da nossa evolução poderá desenrolar-se em poucas gerações, pouco mais do que um piscar de olhos na escala do tempo evolutivo. Nesse curto espaço, poderemos assistir ao surgimento de novas formas de inteligência, de novos tipos de corpos, de novas formas de coexistência entre nós e com o planeta.

Resumidamente, abandonar a arrogância do antropocentrismo requer encarar o desconhecido sem ceder a medos paralisantes, implica reconhecer que não podemos falar de um "capítulo final" enquanto simultaneamente possuímos a capacidade de rever as nossas estruturas biológicas, cognitivas e éticas.

Exige que se projetem sistemas sociais e políticos que defendam a liberdade morfológica como um direito fundamental, garantindo que, à medida que nos podemos transformar, o façamos com equidade, compaixão e prudência.

À medida que ganhamos poder para dirigir os resultados da evolução, a nossa responsabilidade aumenta. Jonas Salk, o criador da vacina contra a poliomielite, afirmou: "A nossa maior responsabilidade é sermos bons antepassados". Neste sentido, as decisões sobre a governação da IA, as políticas de edição genética e a liberdade morfológica tornam-se legados que transmitimos às gerações futuras, ou a futuras formas de inteligência.

Importa entender que o nosso momento presente, com toda a sua turbulência e limitação, poderá bem vir a ser uma das mais curtas fases da história humana, um interlúdio antes de a inteligência, em múltiplas formas, transcender as convenções do que um dia considerámos inquestionavelmente "humano".

Se soubermos usar este momento de forma sábia, o futuro não precisa de ser uma distopia de maquinaria inexorável ou de aumentos desumanizadores, ao invés, pode ser um testemunho da nossa capacidade de reinvenção, empatia e responsabilidade coletiva, um futuro à altura daquilo em que nos tornarmos.

 

Marco Neves

AI Advisor and Consultant | Shaping the Present | Empowering Businesses

2 sem

Olá António. Essa é uma das questões centrais no contexto atual, onde novas e outras formas de inteligência emergem. E por paradoxal possa parecer o facto de serem distintas na estrutura e forma de representação mais complexo tornam o desafio, pois sendo inteligência lá "alienígenas" não temos pontos de referência comparativos o que nos causa ainda mais estranheza e dificuldade em aceitar que nos possam superar. Nesse sentido, considero que será ainda mais difícil deixarmos de estar "prisioneiros" desta nossa atitude de superlatividade perante estas novas formas de inteligência.

Antonio Castelhanito

Inteligência Artificial aplicada a Negócios

2 sem

Antropocentrismo sempre foi um tema que me fascinou. A questão que emerge aqui não é apenas o que significa ser humano, mas como redefinimos a nossa relação com o mundo e com as outras formas de inteligência que estamos a criar. A pergunta que faço é: conseguiremos usar a IA para transcender o antropocentrismo e adotar uma abordagem mais holística e humilde, ou continuaremos prisioneiros da nossa própria arrogância? Julgo que a resposta a esta pergunta definirá não apenas o nosso futuro, mas também o da vida no planeta. A inteligência artificial é um catalisador que nos força a confrontar essa visão de superioridade. Ela não só desafia a definição humana de inteligência, como também expõe as fragilidades das nossas narrativas sobre o progresso. Se continuarmos a insistir que somos o ápice da evolução, arriscamo-nos a ignorar o potencial da IA para nos ajudar a criar uma visão mais interdependente e sustentável do futuro.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Marco Neves

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos