A Arte do Silêncio: da Renda ao Rosário
Tão fina e delicada é a renda tecida entre mulheres de várias idades! O silêncio é a trilha dessa canção, uma desculpa artesanal para ensinar uma sabedoria antiga. Rendilhado intrincado e bonito. Em cada linha de bordado, dedilham uma melodia até o turbilhão amainar. O amor todo na agulha de dedos já cheios de calos. Muitas vezes são lágrimas em bordados, modelos repetidos, sobre um quadricula: são esquemas matemáticos, geométricos, simétricos e assimétricos eludem parecer impossível. Fio a fio, ponto a ponto, tecem um verso, num bordado que eles não decifram, mas calam. Serão agulhas ou adagas, serão quadrados e flores ou um código? Eles não sabem, mas entram no silêncio profundo da concentração que o exercício exige. Assim se amaina a tormenta.
Renda, terço, arte e silêncio são temas ricos em simbolismo, per si. Hoje já não se vê tanto, mas as pessoas ainda se juntam para rezar ou tecer, já o silêncio tem um significado especial. Era um tempo que tinham, na azáfama amarga e dura da vida, no qual meditavam e ouviam o grito interno da alma. Todos eles poderiam ser subtemas, mas resolvi juntá-los. A expressão da «renda ao terço» é uma expressão que possui raízes em diferentes fés e credos, canta-se uma oração enquanto dedilham de conta em conta, entremeada, no fio do Rosário, antes em latim e que exigia um clima de concentração e piedade. Quem se lembra? Alguns faziam-no com os joelhos em cima de milho! Um método em todo semelhante à disciplina dos artistas: primeiro, a contemplação; depois a observação; logo a seguir o cálculo e análise entre linhas, pontos, notas de música ou trabalho em barro. Já a arte do silêncio é a prática da quietude e estar em estado de atenção plena. É uma prática de contemplação meditativa que nos convida a questionar as nossas profundezas interiores e ir além das distrações do nosso mundo físico. A renda é uma das primeiras formas tangíveis da arte do silêncio. A delicadeza padronizada dos fios e a perfeição do produto acabado foram manifestações do requintado equilíbrio de luz e sombra, de quietude e movimento.
Este tipo de artesanato, sustento monetário de algumas famílias, testemunha o saber tradicional e os artesãos que trabalham com dedicação e competência para concretizar uma ideia ou conceito, de beleza subtil e exigente. Por sua vez, a arte do silêncio inspirou contemplação, libertação e conexão em praticantes de inúmeras religiões e culturas. Poderia ser interpretado como uma fuga à inquietude interior, reação aos tempos tumultuosos, às realidades cada vez mais maquinadas e em constante evolução. São práticas que ajudam a centrar, exigem atenção plena, cultivam a humildade, pois é mais difícil do que parece, e foram uma fonte de conforto e conexão. Ainda hoje, ao passar pelas ruelas de São Roque, há portas abertas e iluminadas, à noite, onde as mulheres, exaustas de um dia de trabalho, se encontram. Ouvem-se risadas e cantigas numa trama repelente a invasores desterrados, dos tolos à solta e da paciência que as esgota.
Da «renda ao terço» é uma expressão com as suas sombras, porém, é uma frase antiga utilizada para desculpar ou minimizar o silêncio das mulheres. Esta expressão nasceu por volta da era medieval. Naquela época, a mulher não tinha direitos e era considerada inferior ao homem. Por isso, esta frase era como um lembrete para manter as mulheres caladas. Não eram autorizadas a expressar as suas opiniões ou assumir qualquer posição contrária às regras estabelecidas pela religião ou pela lei. Portanto, a mulher que se dedicava, com afinco a esta arte, era considerada recatada e talentosa, submissa e dócil aos poderes instalados vinculantes do silêncio, apreciado e patriarcal.
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Apesar de ter sido mais utilizada por mulheres, o ditado também era visto como um aviso para os homens quando expressavam as suas opiniões ou tomadas de decisão arrogantes. Era, portanto, usada para relembrar a humildade e o poder do foco.
Em algumas casas, porém, era usado como desculpa para fugir da violência física e psicológica a que muitas estavam sujeitas e assim, juntas, centradas, produzindo a sua renda e rezando a sua oração, apartavam-se das tormentas ou adiavam os julgamentos e as dores, do outro lado do quarto. Era o tratamento silencioso da altura, na qual, talvez, o feitiço se tenha virado contra o feiticeiro. É também uma forma de comunicação passiva de renúncia à comunicação; elas optavam pelo silêncio para evitar a discussão, em especial, quando lhes vedavam a liberdade e os desejos.
Por isso e mesmo num mundo atual, lidamos com um barulho contínuo e tumultuoso, das escolas ao trânsito e a ruídos de variadas espécies e origens, não é de admirar que a arte do silêncio continue a ser tão importante e que haja pessoas a voltar à renda e à meditação. Por meio do silêncio, conseguimos ouvir o som da nossa respiração, desenvolver um diálogo interior entre as emoções, sensações e racionalidades. Permite-nos criar uma esfera de contenção e desaceleração. Mas, num mundo cheio de ruídos, as pessoas também estão a recorrer, em demasia, à distância entre uns e outros, apesar de ser uma forma eficiente de criar espaço e tempo para processar emoções e permitir a cura, contudo o corte de comunicação abrupto é algo bastante desumano ou infrutífero, não permite perguntas ou respostas e pode mesmo levar a que o apartado entre num estado de ansiedade sem saber como interpretar o silêncio, pois a interpretação está sujeita a infinitas verdades ou não. Pode, igualmente, ser encarada como a arte da superiorização e desrespeito de uma pessoa sobre a outra, o que provoca ainda mais animosidade e mágoa. A meu ver, a comunicação deve ser sempre feita com respeito, e o desfecho deve permitir a sã argumentação.
professora na Colégio do Castanheiro
1 aE a arte entranha-se na palavra. Ela é silêncio e grito; fogo e gelo! Bravo, Lídia 👏