Atire a primeira pedra aquele que é plenamente feliz

Atire a primeira pedra aquele que é plenamente feliz

A natureza humana e a nossa forma de evolução como ser social diz: a plena felicidade é um objetivo que nunca será alcançado

Meu pai tem um mantra quando a família vai em casa – só pode falar de coisas boas. E as ruins? Essas devem ficar escondidas, nas sombras, jogadas para debaixo do tapete. Ele, com a sabedoria dos homens quase octogenários, hoje só quer ouvir e ver as pessoas que ama felizes e falando de coisas legais. Ele brigou com minha mãe na mesa durante um almoço porque ela começou a falar que tinha dado espinha no rosto da minha irmã – algo que ela luta contra há tempos. Para ele, penso eu, falar desse “problema” dela era um ataque a ela e talvez especialmente à sua postura de Pollyana, adquirida recentemente com o avanço da idade.

As pessoas tendem a esconder problemas. Se assim não fosse, o “tudo bem” após a pergunta de como você está não seria tão padrão e automática. Quem responde que não está é quase um alien. Afinal, quem diz que não está bem acaba por exigir do interlocutor um algo a mais, ter de perguntar o que houve. Vira uma obrigação moral a réplica. E como a pessoa já tem os seus problemas para lidar, não quer ouvir os do outro – ainda mais se for um outro sem grande proximidade ou íntimo.

Por que a gente tem a necessidade de ser feliz em público e deixar os problemas no privado? A nossa sociedade é feita de eus em selfies sorridentes, com comidas excelentes, em locais paradisíacos, com objetos de consumo tidos como relevantes e importantes para a construção do status social. No campo privado, entretanto, reina certa desilusão, uma insatisfação daquelas de doer o peito, decepção consigo mesmo e com os demais e uma sensação dominante de intranquilidade. E não estamos falando especificamente da questão financeira ou de emprego. É algo mais fundo, que vem da alma. Um sentimento de incompletude. Atire a primeira pedra aquele que se sente completo e feliz.

Já foram feitos inúmeros estudos que mostram que a satisfação com uma situação tende a diminuir com o tempo. Uma situação inicial tem um nível de satisfação que não bate com a mesma situação algum tempo depois. Daí até as melhores coisas (comida, carro, emprego, parceiro\a) irem perdendo o encanto e o interesse. Aí vem aquele papo da grama do vizinho, mais verdinha que a nossa. A felicidade seria um estágio do grau de satisfação que temos com as coisas da nossa vida. Quanto mais alto seu ponto de satisfação, maior o da felicidade no gráfico satisfação x felicidade. Banal, mas é assim mesmo. O gráfico de linha horizontal e linha vertical com uma flecha a 45 graus. E quanto mais permanecemos numa mesma situação, a flecha da satisfação vai caindo. Por conseguinte, a da felicidade.

Esteja satisfeito com seu trabalho, relacionamento, amigos, lazer e você estará feliz. Correto? Errado! Você estará feliz por um determinado tempo. Logo algo dentro de você dá um clique e aquela satisfação não será mais a mesma. É do ser humano isso. A satisfação é prazer, sentimento de saciedade, mas chegará a hora que a rotina, o estabelecido e cumprido diariamente, virará uma coceira, um leve incômodo, que passará a um desgosto, tédio, irritação, depressão e por aí vai. Virou insatisfação, margeamos a infelicidade. É preciso mudar, mas como se aquela situação era o que me fazia feliz? Como posso não estar feliz se tenho o que considerava os atributos para a felicidade? Como meu estado de satisfação pode variar no tempo se os padrões permanecem os mesmos? Eu tenho uma bela casa com todo o conforto, tenho a mulher mais bonita e afetuosa, um emprego que ganho muito e trabalho pouco. Quando conquistei, estava radiante de felicidade. Um ano depois, a coisa já não era tão radiante. Mas como pode isso se ser bem-sucedido, ter a mulher mais linda e todo o conforto material continua a ser meus alicerces de satisfação?

O pilar de sustentação dessa satisfação envolve vários pontos e varia de pessoa a pessoa. Falando bem grosseiramente, podemos dizer que são 3 os pilares mais comuns no ser humano:

- DINHEIRO (satisfação material, conforto, o que envolve comer bem, vestir-se bem e dentro da moda, se divertir nos lugares mais badalados, viajar etc.)

- RECONHECIMENTO (envolve sentir-se útil e valorizado no trabalho, perante os amigos, familiares, portanto abarca o lado profissional e pessoal)

- AMOR (ter uma vida saudável nas relações de amor e sexo, com uma pessoa ou várias, casado ou solteiro, dentro do que melhor convir no momento, o que envolve companheirismo, prazer, cumplicidade)

Cada pessoa tende mais a um desses pilares, mas os três são fundamentais. Entretanto, o foco em um deles pode deixar o outro de lado. Se você busca muito o dinheiro, pode ter problemas no campo amoroso. Se ama demais e se dedica a ele, pode acabar deixando de lado outros prazeres, trabalho e amigos. Se foca demais em ser reconhecido e valorizado, pode se cegar a ponto de não valorizar coisas e momentos e, além disso, se prender a críticas que podem levá-lo à ruína.

Se você parar para pensar nesses 3 tópicos, todos têm uma coisa em comum: para ser bem-sucedido neles, a pessoa depende de outras pessoas. O reconhecimento vem da projeção valorizativa que o outro faz de nós. No amor nem precisa dizer, né? Ainda não se descobriu a autossuficiência no amor, ou o auto amor. Claro que tem as pessoas que se amam demais, daí chamamos de egocêntricas, autocentradas ou arrogantes. Mesmo isso não o livra de querer estar com alguém e se relacionar. Em relação a dinheiro, em 99% dos casos conquistamos vendendo nossa mão de obra\conhecimento a outros que acham que vale a pena pagar por ela. Mesmo quando você é um self made man\woman, o dinheiro não vem só de si, envolve a colaboração de outros. Sozinho é raro conquistar a independência.

Assim, pensando nisso, aquele papo de que você precisa ser feliz consigo mesmo para encontrar a tal felicidade chega a ser balela. Ninguém é feliz sem ao menos um outro ao seu lado. O ser humano precisa de outros seres humanos para serem felizes. Pode ser esposa\namorado\amante, uma família unida, pode ser o chefe que paga seu salário, pode ser aquele amigo que te admira e reconhece em ti uma pessoa singular ou o colega que vê em você atributos poderosos e diz abertamente isso.

Somos seres sociais e precisamos uns dos outros para viver e sobreviver. A humanidade evoluiu assim, unindo-se para ter mais chances de sobrevivência. Um homem das cavernas percebeu que junto com outros poderia caçar mais e melhor, construir objetos para proteção com mais rapidez e propriedade. Da união vem também a troca de conhecimento e a evolução tecnológica. Dois pensam melhor do que um. Assim, é estando com outros que temos mais chances de obter alimento, mais chances de proteção e sobrevivência, mais chance de procriar (cerne da vida) e evoluir. Deu tão certo que de uma horda de hominídeos na África viramos uma horda de 7 bilhões de pessoas espalhadas pelo globo! Habitamos terrenos propensos para a proliferação da vida e outros com terríveis dificuldades. Domesticamos outros animais, dominamos outros, transformamos a natureza a nosso favor aplicando doses de inteligência e necessidade.

Evoluímos, crescemos, criamos ambições e queremos sempre mais. Essa foi a lógica da nossa evolução. Manter o que se tem é tido como ruim, negativo. A palavra estagnação já carrega todo um peso negativo com ela. Uma pessoa estagnada é uma pessoa parada, malvista. Uma pessoa de sucesso é aquela que está sempre mudando, fazendo mil coisas, em movimento. Essa lógica é mais clara no campo econômico e corporativo. Exemplo: uma empresa que fatura 20 bilhões de reais por ano lucra 40% disso. São 8 bilhões por ano de lucro. Se manter esse lucro astronômico no ano seguinte, vai ser vista como uma empresa com crescimento 0%, ou sem crescimento, melhor dizendo. Vai perder valor de mercado, investidores vão virar o olho e torcer o nariz, a imprensa vai falar que não é mais a mesma, que tem algo errado ali. Não crescer, no mundo de hoje, é morrer. Mesmo lucrando 8 bilhões! Repito: mesmo lucrando 8 bilhões, se você não lucrar 9 ou mais no ano seguinte você está em maus lençóis! Como pode uma empresa dessa cair no conceito do dito mercado?

O mesmo vale para emprego, relação, trabalho. Estar num emprego legal que você curte e faz todo dia a mesma coisa diz muito de você aos olhos da nossa sociedade: “acomodado, sem ambição, encostado”. Por que temos essa ânsia de sempre querer mais e mais? Se tenho 10 milhões no banco, por que tenho de me matar de trabalhar e me estressar até conseguir 20? Por que não viver bem com essa quantia que é mais do que suficiente para ser rei até a morte?

Como o mundo hoje é extremamente competitivo e desigual, uns ganhando muito e tantos tão pouco, com a redução da oferta de empregos e aumento da mão de obra excedente, acabamos por identificar dois lados muito claros – o dos vencedores e o dos loosers. Nossa mídia idolatra os primeiros, trazendo capas de revistas, matérias na TV, biografias mostrando como aquelas pessoas chegaram ao sucesso. Ganham dinheiro, tem reconhecimento. São o modelo a ser seguido. Nossa sociedade valoriza os que ganham dinheiro, os que vendem bem, como se ganhar dinheiro fosse sinônimo de caráter. E o sucesso, hoje, é muito medido pelo quanto ganha e pelo valor que consegue por seu conhecimento\produto.

Assim, chega a ser contraditório pensar que alguém que ganha bem, é bem resolvido, é bom no que faz, possa se sentir insatisfeito (infeliz) em algum momento de sua vida. Como artistas e pessoas tidas de sucesso podem entrar no mundo das drogas, cometer suicídio, tendo diante de si um mundo que é invejado pela maioria? Algo dentro dele não entende assim, não associa essa “boa vida” com o prazer. Como pode um CEO ser trocado por outro diante de lucros absurdos que conseguiu para a empresa?

A lógica capitalista é a lógica do moto-contínuo. É preciso girar e crescer e ganhar mais e mais. O que move o capitalismo é esse sentimento insaciável por mais e mais. O capitalismo é, no campo econômico, uma alegoria de como a mente humana se formou. Após a união para obter mais segurança e alimento, o homem passou a buscar mais e mais. Domesticou animais, desenvolveu a agricultura, assentou-se num local e deixou de ser nômade, à mercê do tempo e predadores. Passou a desenvolver e criar formas de afastar as intempéries e se fixar como animal dominante. Passou a criar tecnologias e transformar a natureza em favor de seus interesses – que podem ser bons, justos, ou injustos, que farão mais mal do que bem aos demais.

Mesmo com tudo isso a gente chega à noite, depois de comer muito bem, deita na cama e encosta no travesseiro de penas de ganso, sente debaixo de si o colchão macio e cheiroso, põe um pijama confortável e a coberta peluda (ou liga o ar condicionado se estiver calor), assiste a um filme\seriado e, pouco antes de desligar a tv ou a luz, quase no momento de cair no sono, sente que falta algo. Mas o quê? A resposta é dolorida e pode envolver mil transformações, dentro e fora de nós. A busca por ela é de cada um.

Atire a primeira pedra aquele é inteiramente feliz.


 

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