Quando Comi a Pilha
Aqui na Bahia, não tenho certeza em outros estados, temos uma gíria, “comer a pilha”. Basicamente a pessoa que come a pilha é aquela que se deixa influenciar, que se deixa levar por pressões externas ou que acaba se alimentando por ideias de outras pessoas em vez de dar atenção aos próprios pensamentos, ideias e sentimentos. Um exemplo: você está se arrumando para sair, coloca aquela roupa que você acha legal, sente satisfação a se ver no espelho, mas alguém chega e comenta como sua roupa está inadequada ou que não está combinando, então você esmorece, se recolhe e resolve mudar de roupa. Você comeu a pilha! Outro exemplo: uma conversa sobre um tema qualquer evolui para uma discussão, você tranquilamente expõe seu ponto de vista, alguém na conversa discorda de você e rebate de forma dura ou grosseira, você sai do seu estado de tranquilidade e devolve também com dureza e grosseria. Você comeu a pilha!
É comum comermos pilhas cotidianas, nos deixando influenciar por pessoas, situações, pela mídia que manipula introjetando padrões em nossos sistemas, criando modelos nos quais as pessoas “precisam” se sentir pertencentes, caso contrário são tidas como fracassadas e naturalmente tendem a ser excluídas ou rejeitadas por outras. É comum comermos a pilha principalmente no leito da família, desde cedo os pais, as mães, tios, avôs, avós, lançam suas expectativas sobre o que querem que nos tornemos e, assim, nos induzem por caminhos sobre os quais mais tarde, na maioria das vezes, acabamos nos perguntando ou sentindo desconfortáveis, nos vemos desencontrados e insatisfeito com nossas vidas. É comum criarmos vínculos com pessoas que chamamos de amigas e a partir das quais nos miramos e nos moldamos, deixando nossas características mais essenciais de lado ou mesmo nunca chegando a ter uma real noção de quais características são nossas.
Dessa maneira, muitas pilhas são comidas, pilhas mais fracas e pilhas mais fortes, nos alimentamos muito do mundo exterior e não geramos força interna, nos tornamos incapazes de uma autogestão, da gestão das nossas potencialidades, raramente tocamos o autocuidado e, consequentemente, não tocamos o autoamor. Dentro de um processo natural, mais orgânico, as interações deveriam servir para elevar à autopercepção, ao autoconhecimento, sendo que os fatores externos serviriam como nortes e possibilidades, não como modelos rígidos que devem ser seguidos, como se não tivéssemos criatividade para escolhermos ou gerarmos nossos próprios modelos. Desta forma, seguimos apagados, acreditando na vida de responsabilidades e obrigações, com tendência a buscar fazer com que os outros estejam rindo satisfeitos, enquanto nós também estamos rindo, mas um riso mascarado que tem a pequena função de esconder os níveis de frustrações aos quais nos entregamos.
Comigo aconteceu há bastante tempo. Dentre todas as pilhas que eventualmente eu venha comendo, houve um momento que foi crucial. Eu tinha ideias, planos e um jeito próprio de estar na vida, com conceitos, preconceitos, buscando uma identidade que expressava na minha compleição, na forma de me vestir, na forma de agir. Tinha minhas convicções acerca do caminho profissional que eu queria seguir e, ao mirar o horizonte dessas possibilidades, eu me sentia bem e radiante. Contudo, aos poucos, as críticas ou pontos de vistas externos vieram chegando, digo, eu fui deixando que entrassem e, assim, comecei a questionar tudo o que naturalmente emergia da minha essência. Aos poucos fui mudando o foco, no começo realmente me senti muito dividido, até que não havia mais divisão e eu me encontrei mergulhado em algo que inclusive passei a acreditar ser meu. A necessidade de dinheiro para ter, para poder ser melhor, para poder adquirir, para me apresentar tal qual era esperado, para poder estar entre os outros e não marginalizado, a necessidade de estar inserido e de ser aceito.
Hoje, um tanto mais desperto, mais experiente e consciente dessas questões, concluí que a felicidade é algo de fato individual, digo, mesmo que esteja relacionada com interações no coletivo, ela é algo subjetivo, inerente à natureza individual. Cada pessoa tem seus próprios sonhos, anseios e aspirações e é nestes elementos que podem encontrar a satisfação, também conhecida como sucesso. Vale ser dito que os sonhos, anseios e aspirações individuais podem se somar aos de outra pessoa, ou de outras pessoas, desde que isto seja ressonante e harmônico. E para chegar aí é fundamental ter coragem, coragem para buscar um nível maior de autonomia, coragem para sair da zona de conforto e, principalmente, coragem para enfrentar as contradições trazidas por outros modelos ou por expectativas. É preciso enfrentar o mundo, as coisas e as pessoas, para então poder estar em paz com tudo isto, em paz com o todo. O fato é que em conflito interno, gerado pela insatisfação com a vida, haverá sempre inquietação. É com coragem que a pilha se torna uma força interna geradora de possibilidades autônomas e criativas. É a partir da coragem de dizer não ou sim, a coragem de tomar decisões, sem comer pilhas, que de fato cada pessoa pode criar sua realidade.
É preciso enfrentar o mundo para, então, se harmonizar com ele. É preciso, como dizemos aqui na Bahia, “se empilhar” pra depois “ficar de boa”.
Fundador e Terapeuta Integrativo na Soluz Terapias Integradas
6 aExcelente texto, irmão! Continue assim!