BIRD BOX: a insuportável dor da consciência
O filme Bird Box, suspense apocalítico baseado em livro homônimo, narra uma história de perdas, sofrimento, solidariedade e autoconhecimento. No início, somos apresentados à protagonista Malorie, a qual está grávida de um filho aparentemente indesejado e de pai desconhecido do espectador. Ao pintar seus quadros com pessoas de olhares perdidos, Malorie parece expressar sua dificuldade de relacionamento e, principalmente, o seu medo de se tornar vulnerável. Penso que a personagem seja a mais interessante da trama, demonstrando força, coragem e discernimento em vários momentos, bem como superando traumas pessoais em nome do amor recém descoberto pelos filhos.
A humanidade passa a ser dizimada pelo “Problema”, criatura que obriga a pessoa a enxergar seus traumas e medos mais profundos. Vendo a realidade nua e crua, sem os subterfúgios criados pela mente, sem qualquer palavra amiga de consolo ou apoio, a pessoa se entrega ao suicídio como fuga de uma dor que não é possível suportar. Quando Malorie está correndo para fugir da criatura, uma mulher sai de casa, seu abrigo seguro, momento em que olha para o problema e chama pela mãe. Abre-se uma importante brecha para o questionamento de que a personagem carregava uma culpa ou ressentimento o qual, revelado em sua extensão, causa o desejo pela morte como alívio.
Ao longo do filme, percebemos que as pessoas consideradas “loucas” não são afetadas pelas criaturas da mesma forma. Por algum motivo, elas não cometem suicídio e tentam fazer com que todas as pessoas abram os olhos para verem a “revelação”. Viver fora da racionalidade padronizada significa, assim, transpor um limiar: a verdade não causa dor, a realidade é apenas um ponto de vista possível, e qualquer revelação convive pacificamente com uma mistura de experiências e sensações que não precisa mais ser racional. O personagem Gary relata o encontro com fugitivos de uma prisão para doentes mentais. São estes, renegados e julgados pela sociedade, que demonstram estrutura emocional suficiente para resistir ao suicídio quando a verdade mais dura é mostrada em um único choque.
A atuação de Sandra Bullock como Malorie traz o fio condutor ideal para a trama. Em meio a uma realidade extrema quando qualquer piscar de olhos pode significar a morte, Malorie aceita o envolvimento com um homem mais novo, descobre o amor materno e, em vários momentos, enfrenta a morte com coragem. De certa forma, superar seus próprios traumas e o medo da solidão parece quase tão insuportável quanto a perspectiva da sombria visão que as criaturas poderiam trazer. Em uma cena cheia de delicadeza, ela se desculpa com a sua filha adotiva, que está sendo atormentada pela criatura, e o perdão imediatamente concedido pela menina a conduz até a mãe e a afasta da morte certa para a qual o ressentimento iria lhe arrastar.
Em nenhum momento do filme, podemos enxergar as criaturas, que se configuram, justamente, como um medo sem rosto ou forma: pode ser a mágoa que Malorie sente por seu pai narcisista e ausente; a dependência emocional e temores da vida de Olympia; o trauma vivido na guerra por Tom; a falta de empatia de Douglas. É justamente a ausência de imagem que causa o pavor mais intenso e prende o espectador até o final do filme quando surge uma esperança: o homem que fez contato pelo rádio (Rick), de fato, tinha boas intenções e havia, ainda, uma comunidade onde reinava a paz e perspectivas de felicidade. Estas que, a despeito de qualquer força sobrenatural, jamais deixaremos de buscar.