A boa vizinhança dos vieses
Ah! Como é mais fácil concordar. Como é mais fácil dizer que está tudo bem, mesmo não estando. Como é mais fácil você seguir a opinião do todo e deixar seu chefe, seu professor, seus amigos felizes porque não foi você que provocou a antítese ou a contradição na sala. Não foi você que incomodou. Não foi você que deixou a cara das pessoas enrugadas de dúvidas. É assim que levamos nossa vida em sociedade: buscamos os atalhos mentais, as pontes cognitivas mais simplicistas para resolver conflitos que - se bem analisados - demandariam um esforço mental muito maior. Demandariam uma carga cognitiva expressiva, para se atingir o tão desejado consenso.
Se você já leu Rápido e Devagar deve saber do que eu estou falando. Daniel Kahneman foi brilhante quando nos fez entender como funciona nosso cérebro quando temos que tomar uma decisão. O sistema 1, que busca atalhos e que pouco se esforça para resolver conflitos e prover respostas e o sistema 2, mais complexo, que demanda esforço e que, esse sim, tem a capacidade de transformar ou mudar as respostas simples e fáceis que o sistema 1 nos fornece.
Refletindo sobre isso me veio a questão: será que nós, brasileiros, nos acostumamos de alguma forma a pouco utilizar nosso sistema 2? Paramos de discutir e debater por que simplesmente estamos com - literalmente - preguiça de pensar? Se o estamos, estamos fadados ao fracasso. Por que um ser humano que se apega 100% ao sistema 1, é o ser humano mais facilmente manipulado. É aquele que vai buscar as respostas mais simplórias para os dilemas da vida, para as discussões do cotidiano, para os plenários. É aquele que confia plenamente em suas pontes cognitivas, controlado pelas suas emoções e instintos primitivos.
Era chamado de sofista, na Grécia Antiga, aquele que era dirigido pelas suas paixões. O indivíduo que não distinguia o instinto do impulso racional e da reflexão crítica que seus contemporâneos, os filósofos clássicos, tanto se debruçavam em promover. No fundo, estamos falando da mesma coisa. Enquanto uns se entendiam em suas angústias e se contemplavam mutuamente nas dúvidas cruciais da existência ou humana, outros pregavam meias verdades, falácias e respostas absolutas - afinal, suscitar dúvidas é sempre bastante arriscado. É, pessoalmente e a outrem, um convite ao incerto, ao desconhecido, a uma possível (r)evolução. Beber dessa cicuta não é para todos, de fato.
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Debater consigo mesmo também não parece resolver. Afinal, vivemos em sociedade. E embora a democracia esteja longe da perfeição enquanto regime, é ainda o antídoto mais eficaz contra a tirania dos apaixonados. O problema reside, no entanto, na falta de permissão para que o debate aconteça. "Como assim, somos livres?". Quem dera fossemos! Essa liberdade de escolha é de poucos. Estar presente no papel de poder e passível de usar sua voz como ferramenta de transformação requer, na sociedade atual, muito mais do que a simples presença em plenário. É preciso poder. E poder, na sociedade do capital, é isso mesmo que vocês estão pensando: cargos, posições, dinheiro - pecúnia. Mando.
Há um caminho para transpor tal muralha? Sem dúvida. O caminho de contradizer e discordar. O problema é que, ao fazê-lo, prepare-se para beber o fel do viés alheio, que provavelmente vai mostrar suas garras da resistência, a cara feia que diz silenciosamente “mas por que isso agora?”. Mal sabe ele, meus caros, que é desse embrulho gostoso que nascem as evoluções. Mas em época em que contrassenso tem sido evitado, será que estamos preferindo mais as águas calmas da concordância? Ou estamos com medo de que os limites se rompam, surgindo uma guerra que as notícias já dão como certa?
Escapar do que é belicoso mentalmente pode ser muito mais difícil do que escapar do conflito humano real. Mas é necessário. É preciso que mostremos, no dia a dia, as garras das nossas discussões. Antes que os sofistas, estes sim violentos, comecem a trocar seus gritos incautos por fuzis liberados – em vejam só – liberados em processos legais