Brasil e acaso, um caso sério
Quantos terríveis acasos ainda teremos de sofrer para saber o real estado de pobreza material e exaustão emocional com que chegaremos às eleições gerais de 2022? Não bastassem os pesadíssimos desafios econômicos, sanitários e humanitários trazidos pela pandemia da Covid-19 e as incríveis falhas no seu enfrentamento, corremos também o risco de sermos assaltados por eventos inesperados. É o que nos sugere a nossa tão sacolejada trajetória.
Por cinco séculos, inúmeros cenários futuros aparentemente bem traçados para o Brasil acabaram sendo sucumbidos de uma hora para outra por fatos imprevistos de graves consequências. Esses episódios surpreendentes não desembocaram em guerras fratricidas, mas mexeram com o arcabouço legal em diferentes graus, derrubaram e criaram líderes e alteraram radicalmente o curso da história do país.
Especialmente nos últimos anos, essa recorrente ciclotimia se acentuou, testando a resistência das instituições e até minando a fé do povo na sua pátria. Após ser condenado e preso por 600 dias, o ex-presidente Lula passou a gozar da liberdade em razão de nova mudança de entendimento da Suprema Corte sobre a prisão após condenação em segunda instância. O que poderia ser mais estranho? Este mês, seus processos na Lava-Jato foram, numa canetada, postos na estaca zero e seus direitos políticos virtualmente devolvidos.
Além da depauperada segurança jurídica, outra vítima de sempre com tais intercorrências absurdas é a formação de consensos amplos e sólidos para livrar o Brasil das pragas da corrupção, ignorância e desigualdade. O suicídio de Getúlio nos anos 1950, a renúncia de Jânio nos anos 1960, o Movimento Diretas Já nos anos 1980 e gigantes protestos de rua na década passada são exemplos de situações novas que se convertem em posterior frustração.
Não faltam outros exemplos de que o acaso insiste em invadir a cena para mudar os trilhos dos acontecimentos da vida brasileira. Em 2014, a terceira via proposta pelo presidenciável Eduardo Campos (PSB) foi ao chão junto com o seu jato, logo na decolagem da campanha. Quatro anos depois, Jair Bolsonaro sofre sério atentado 40 dias antes da eleição de primeiro turno. No embalo da comoção pós-facada, sagraria eleito presidente semanas depois.
Antes disso, Tancredo Neves (PMDB) fora internado na noite de véspera da sua posse na Presidência, promovendo a gambiarra ilegal que converteria seu correligionário recente e vice de chapa, José Sarney, em maestro da transição democrática. O governo do presidente maranhense amealharia os piores e melhores índices de popularidade da história.
Em 1992, o então inédito impeachment de um presidente, justamente o primeiro eleito após o longo regime militar, promoveu reviravoltas. Ninguém esperava que seu sucessor, Itamar Franco, daria guinada na confusão geral ao decidir tornar seu chanceler, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), ministro da Fazenda. Bem sucedido com seu plano de estabilização, ele se tornaria imbatível rumo ao Planalto.
Quando o PMDB retorna ao poder, em 2016, o vazamento de comprometedores diálogos do presidente Michel Temer com o dono da JBS impediu que seu governo aprovasse a Reforma da Previdência, retardando a recuperação econômica do país e afetando o quadro eleitoral. Eis como estamos agora. Não dá para prever o que ainda pode nos acontecer até o fim do próximo ano. Estamos pra lá de fatigado de tanta crise. Será que, de tanto flertar com o acaso, podemos ir ao definitivo ocaso?
Mesmo neste momento, quando o mundo inteiro enfrenta uma catástrofe sanitária com consequências imprevisíveis, impulsionada pela pandemia do coronavírus, o Brasil acrescenta a ela os seus próprios eventos trágicos e inesperados. Sempre aflitos, nunca morreremos de tédio. Morreremos, talvez, do longo caso com o acaso.
Administrador
3 aPara que se estuda história se não aproveita nada com os ensinamentos que ela nos deixa?!