Breve relato de viagem do velho ao novo paradigma
1. Mudança das partes para o todo
Na ciência o primeiro critério do novo paradigma é a mudança das partes para o todo. No velho paradigma, acreditava-se que, em qualquer sistema complexo, a dinâmica do todo poderia ser entendida a partir das propriedades das partes. No novo paradigma, a relação entre as partes e o todo é invertida.
As propriedades das partes podem ser entendidas somente a partir da dinâmica do todo. Em última análise, não há partes, em absoluto. Aquilo que chamamos de parte não passa de um padrão numa teia inseparável de relações. [...]
A mudança que foi tão dramática na física na década de 20 foi uma mudança da visão do mundo físico como uma coleção de entidades separadas para a visão de uma rede de relações. O que chamamos de parte é um padrão, nessa rede de relações, que é reconhecível, porque possui certa estabilidade. Portanto, focalizamos nossa atenção sobre ela e podemos, então, delineá-la aproximadamente e dizer "É isto o que eu chamo de célula", ou de átomo. Mas o fato decisivo é que, todas as vezes que você delineia essa parte e a separa do restante, você comete um erro. Você isola do todo algumas das interligações, física o conceitualmente, e diz: "Isto é agora o que eu chamo de parte. Sei que ela está ligada deste e daquele modo ao resto, mas não posso levar em consideração todas essas ligações, pois isto se torna complicado." Portanto, elimino algumas delas no processo de delinear a parte. [...]
Ora, no velho paradigma também se reconhecia que as coisas estão inter relacionadas. No entanto, conceitualmente falando, você tinha de início as coisas com suas propriedades, e, a seguir, havia mecanismos e forças que as interligavam. No novo paradigma, dizemos que as próprias coisas não possuem propriedades intrínsecas. Todas as propriedades fluem de suas relações. É a isso que me refiro quando falo em entender as propriedades das partes a partir da dinâmica do todo, pois essas relações são relações dinâmicas. Desse modo, a única maneira de entender a parte é entender a sua relação com o todo. Essa descoberta, que ocorreu na física na década de 20, é também uma descoberta fundamental da ecologia. Os ecologistas pensam exatamente dessa maneira. Eles dizem que um organismo é definido pelas suas relações com o restante. [...]
Eu gostaria de abordar a relação entre os seres humanos e a natureza. Nesse ponto, uma distinção muito útil emergiu durante as duas décadas passadas, a distinção entre ecologia profunda e ecologia superficial. Na ecologia superficial, os seres humanos são colocados acima da natureza ou fora dela, e, naturalmente, essa perspectiva condiz com a dominação da natureza. Supõe-se que o valor reside nos seres humanos; dá-se à natureza apenas um valor de uso ou um valor instrumental. Quanto aos ecologistas profundos, eles vêem os seres humanos como uma parte intrínseca da natureza, como nada mais que um fio em especial no tecido da vida. [...]
Da maneira como entendo os ecologistas profundos, e teóricos sistêmicos como Francisco Varela, por exemplo, eles diriam que cada espécie tem características especiais, que você não pode, em absoluto, dizer que uma espécie é ''superior" ou que ela é ''inferior''. Varela diz que não pode nem mesmo falar sobre uma complexidade superior, porque a complexidade tem muitos aspectos. Num aspecto, obviamente, o organismo humano é muito complexo. Num outro aspecto, os insetos são muito complexos. Desse modo, cada espécie tem suas próprias características especiais. Metaforicamente falando, as abelhas diriam que elas são o ponto mais alto da criação, e os cães diriam o mesmo de sua espécie, e é isso o que afirmamos sobre a nossa espécie. Parece-me que isso cria problemas, ou desafios, tremendos para os teólogos, porque na teologia convencional sempre se considerou que os seres humanos estavam acima e fora da natureza, destinados a dominá-la. [...]
2. Mudança de estrutura para processo
O segundo critério para o pensamento do novo paradigma na ciência é uma mudança de estrutura para processo. Pensava-se, no velho paradigma, que havia estruturas fundamentais, e a seguir que havia forças, que havia mecanismos por cujo intermédio essas forças interagem, dando assim nascimento a processos. No novo paradigma, cada estrutura é vista como a manifestação de um processo subjacente. Toda a teia de relações é intrinsecamente dinâmica. [...]
Deixe-me voltar a um tipo particular de processo, os processos da vida. Na nova teoria dos sistemas vivos, os processos da vida são entendidos como processos essencialmente mentais. De fato, a mente é definida como um processo. Nessa teoria, a relação entre mente e matéria é uma relação entre processo e estrutura. Não há mente sem matéria. As duas são complementares, desse modo, seria impossível qualquer tipo de fenômeno em que se tenha espíritos flutuando livremente sem um complemento material. O que isso tem que ver com a noção de um espírito divino sem nenhuma matéria? [...]
O engraçado a respeito do conceito de auto-organização é o fato de que ele pode ser apresentado sob a forma de uma natureza "trinitária". São estes os aspectos: o padrão de organização, a estrutura e o processo. O padrão de auto-organização é a totalidade das relações que definem as características essenciais de um sistema vivo. Esse padrão pode ser descrito de uma maneira abstrata, sem se referir a energia, a substâncias físicas, a organismos, e assim por diante, sem usar a linguagem da física e da química. É um padrão abstrato de relações. A estrutura de um sistema vivo é a realização física desse padrão. O mesmo pode ser realizado em diferentes estruturas biológicas (uma célula, por exemplo, ou uma folha ou uma flor), e essas estruturas são descritas na linguagem da física e da química. O erro que a maioria dos biólogos comete atualmente é o de trabalhar no nível da estrutura e acreditar que, conhecendo cada vez mais a respeito da estrutura, eles finalmente conhecerão a vida. Porém, eles jamais saberão o que é a vida enquanto se limitarem aos seus aspectos estruturais. Somente quando também levarem em conta o padrão é que eles serão capazes de realmente apreender o fenômeno da vida. Agora, a realização ininterrupta do padrão de auto-organização numa estrutura biológica específica envolve um processo dinâmico, o processo da vida. Envolve também a contínua auto-renovação do organismo, a adaptação do meio ambiente, a aprendizagem, a evolução, e assim por diante. E esse processo da vida, de acordo com Bateson, é essencialmente um processo mental. [...]
Você não pode derivar o padrão partindo da estrutura. Você tem de estudá lo e de entendê-lo independentemente da estrutura. Veja bem, posso dizer a você se um dado sistema é auto-organizador ou não. Mas se você me impuser a condição de que terei de permanecer fiel à linguagem da física e da química, e de não ir além dela, nesse caso não serei capaz de lhe dizer. Preciso ir além do aspecto material e falar sobre padrões abstratos de relações. [...]
O outro conceito que eu gostaria de discutir neste contexto é o de evolução. Quando falamos sobre os processos da vida, vemos que eles levam a um caminho de desenvolvimento, tanto para os organismos individuais como para a evolução das espécies. A teoria da auto-organização afirma que não há objetivo nesse caminho. Ele é chamado de deriva. Maturana e Varela, dois dos principais pesquisadores nesse campo, falam sobre uma deriva ontogenética e uma deriva filogenética. Essa deriva é uma resposta mental contínua às influências ambientais. Criatividade a cada passo. É por isso que dois organismos se desenvolverão em direções diferentes e terão individualidades diferentes ou personalidades diferentes. No entanto, não há plano, não há projeto e não há direção. [...]
Quando você olha para um organismo num meio ambiente, você observa que ele se desenvolve, que ele segue emitente o seu caminho, e você pergunta se ele tem um propósito ou se está apenas derivando. Ora, se você muda desse nível para um nível mais amplo, você percebe que os movimentos dos organismos menores são parte do padrão de organização do sistema mais amplo. Isso me parece totalmente óbvio. Por exemplo, se você olha para uma única célula do sangue em minhas veias e a segue, ela derivará; você não será capaz de predizer coisa alguma. Mas se você estudar o corpo como um todo, você poderá dizer."Machuquei o meu dedo, e agem, o meu sistema imunológico está reagindo.'' Há uma resposta global ao ferimento, e é por isso que essa célula do sangue vai até lá. É totalmente óbvio para mim que o movimento e que o desenvolvimento de uma parte é parte do padrão de organização do sistema mais amplo. Nesse sentido, posso ver um propósito. [...]
3. Mudança de ciência objetiva para ciência "epistêmica"
Meu terceiro critério para o pensamento do novo paradigma na ciência é uma mudança de ciência objetiva para aquilo que chamo de ciência epistêmica. No velho paradigma, acreditava-se que as descrições científicas eram objetivas, isto é, independentes do observador humano e do processo de conhecimento. No novo paradigma, acredita-se que a epistemologia, o entendimento do processo de conhecimento, tem de ser explicitamente incluída na descrição dos fenômenos naturais. Nesse ponto, não há consenso a respeito de qual é a epistemologia apropriada, mas há um consenso emergente de que a epistemologia terá de ser cada teoria científica. [...]
Penso que as pessoas que estão na vanguarda dessa pesquisa tendem a dizer que uma escola conhecida como ''construtivismo'' é a epistemologia apropriada. Segundo essa escola, o que observamos não é um mundo que existe objetivamente, e que em seguida é representado. Em vez disso, é um mundo que é criado no processo de conhecimento. Como dizem Maturana e Varela: ''O mundo é gerado no processo de conhecimento." [...]
Talvez eu devesse dizer mais algumas palavras sobre a consciência. Maturana afirma que a consciência surge com a linguagem. Seu precursor é a comunicação. Ele define comunicação, não como a transmissão de uma mensagem a respeito de uma realidade exterior mas, em vez disso, como uma coordenação de comportamentos por intermédio de uma contínua interação mútua. Mas ainda é linguagem; é uma espécie de protolinguagem. A linguagem surge quando você pode comunicar a respeito da comunicação. Eis um exemplo. Ele diz: "Quando eu me levanto de manhã, a minha gata entra na cozinha e mia, e eu vou até a geladeira e dou a ela um pouco de leite." Isso é comunicação. É uma coordenação de comportamentos. Se, numa certa manhã, eu não tivesse leite e se a gata fosse capaz de dizer "Ei, qual é o problema? Miei três vezes. Cadê o leite?'', isso seria linguagem. Seria comunicação sobre a comunicação. Naturalmente, a gata não é capaz disso. Maturana parte de tal para uma análise da linguagem. Essa comunicação sobre a comunicação pressupõe uma estrutura de rótulos que Bateson chamava de tipos lógicos. Ela envolve a auto-referência, a referência a si mesma. Envolve também as noções de objetos, de conceitos, de símbolos, e assim por diante. Todo o domínio da autopercepção e da consciência surge através da linguagem. Então entra em cena a afirmação mais radical, quando Maturana diz que a consciência é, essencialmente, um fenômeno social, porque nasce através da linguagem que opera num sistema social. Não podemos entender a consciência por meio da física e da química, como também não podemos entendê-la nem mesmo por meio da biologia ou da psicologia, se nos restringirmos a um único organismo. Você entenderá a consciência se se dirigir ao domínio social. [...]
4. Mudança de construção para rede enquanto metáfora do conhecimento
Metáforas arquitetônicas são utilizadas freqüentemente na ciência para falar a respeito do conhecimento. Falamos a respeito de "blocos de construção básicos da matéria", de "equações fundamentais", de "princípios fundamentais", e assim por diante. O conhecimento deve ser construído sobre alicerces firmes. Então, ocorrem as mudanças de paradigma, abalando os alicerces, e todos ficam muito nervosos. Agora, estamos mudando da metáfora do conhecimento enquanto construção para a metáfora do conhecimento enquanto rede, uma teia na qual tudo está interligado. Não há um acima e um abaixo; não há hierarquias; não há algo que seja mais fundamental do que qualquer outra coisa. Essa mudança nas metáforas, do conhecimento enquanto construção para o conhecimento enquanto rede, é meu quarto critério. [...]
Na ciência, essa mudança é uma das coisas mais difíceis de serem aceitas, pois os cientistas estão muito condicionados pela velha metáfora. Ela ficou tão arraigada na linguagem da ciência que é difícil agora mudar para esse ''pensamento de rede''. Por exemplo, a maioria dos biólogos pensaria que o nível genético do ADN, o código genético, e assim por diante, é realmente o nível básico que determina tudo o mais. No novo pensamento, você diria que este é um nível, um aspecto dos sistemas vivos, mas não é o único sobre o qual tudo o mais se edifica. [...]
A ciência do velho paradigma acreditava que havia uma teoria científica definitiva sobre o mundo, uma construção com alicerces sólidos. Os alicerces eram as peças fundamentais da matéria, as leis fundamentais, as forças fundamentais da natureza, as equações fundamentais. Newton e seus contemporâneos acreditavam que a natureza era um livro no qual podíamos ler a vontade de Deus, a maneira como Deus criou o mundo. Desse modo, o que você realmente lê é a mente de Deus na natureza, no sentido de que Deus nos revela o conjunto das verdades. Como cientistas, fazemos isso observando a natureza e, a seguir, deduzindo, a partir dessa observação, como Deus criou a natureza e todas essas coisas fundamentais. Em teologia, você também diz que há um conjunto de verdades fundamentais que foi revelado por Deus. Desse modo, no velho paradigma, Deus é realmente o criador desse conjunto tanto na ciência como na teologia. [...]
Para Einstein, Deus interfere com o mundo de uma maneira diferente, de uma maneira que é muito mais significativa, mas ele ainda está sentado lá fora fazendo alguma coisa com o mundo, impondo sua vontade sobre o mundo. A propósito, é exatamente essa a posição de Stephen Hawking. Deus fica sentado lá fora e tem várias opções, e Stephen Hawking se pergunta sobre qual é a opção que ele irá fazer. Hawking é um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, e seu livro, A Brief History of Time [Uma Breve História do Tempo], é brilhante em termos de física e de cosmologia, mas está no nível de catecismo de escola primária em termos de teologia. E está cheio de teologia! Deus está presente em cada capítulo. Hawking diz explicitamente: "Quero entender a mente de Deus." No velho paradigma, onde você tinha a construção do conhecimento, Deus é realmente o arquiteto da construção. Os elementos fundamentais, os blocos de construção fundamentais, são fundamentais porque Deus, como arquiteto, os introduziu nela. Estamos apenas descobrindo quais são eles. No novo paradigma, há coisas que são fundamentais em cada modelo científico. Por definição, essas coisas fundamentais desafiam uma explicação posterior. Mas este é tão-somente um estado de coisas temporário. No modelo seguinte, mais abrangente, algumas dessas coisas serão explicadas. Isso significa que algumas delas serão relacionadas com outras, e serão colocadas num contexto mais amplo. Não obstante, enquanto fizermos ciência, algumas coisas permanecerão sempre inexplicadas. Num certo sentido, o que é fundamental depende do cientista. Não se trata de algo objetivo. Nesse pensamento de rede, onde todos os conceitos e todas as teorias estão interligados, você pode muito bem ter uma teoria na qual alguns elementos ''fundamentais'' são explicados por outra teoria. Portanto, o que é fundamental é uma questão de estratégia científica. Depende do cientista e não é permanente. [...]
Na ciência do velho paradigma, como discutimos anteriormente, é motivada pelo desejo de dominar e de controlar mais nada que o mundo vivo, que não é mais um sistema mecânico e morto, mas um sistema vivo, que tem a sua própria inteligência, a sua própria "atenção" (mindfulness)* como dizia Bateson. Portanto, a investigação da natureza torna-se um diálogo. E assim, a metáfora muda de dominação e de controle para diálogo. Realmente, essa metáfora do diálogo tem sido usada em toda a ciência clássica, assim como em toda a ciência moderna. Usualmente, ela é apresentada como um diálogo com a natureza. Os cientistas não usariam o termo Deus nesse contexto, mas o significado chega muito perto. [...]
Um dos grandes patrocinadores desse pensamento-de-rede na ciência é Geoffrey Chew, na sua física bootstrap. De acordo com a teoria de Chew, a natureza não pode ser reduzida a quaisquer entidades fundamentais. A realidade física é concebida como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. As coisas existem em virtude de suas relações mutuamente compatíveis, e tudo na física tem de partir unicamente da exigência de que seus componentes sejam compatíveis uns com os outros. Chew escreve num de seus primeiros artigos: ''Alguém que é capaz de olhar sem preconceitos para modelos diferentes, sem dizer que um é mais fundamental que o outro, é, automaticamente, um bootstrapper." Em outras palavras, essa filosofia bootstrap, ou filosofia de rede, leva a uma atitude de tolerância. [...]
Num certo sentido, estamos retornando à era pré-industrial, à era pré-moderna. Mas não se trata apenas de um retorno. Na ciência do novo paradigma e no novo paradigma social, há importantes diferenças entre aquilo a que agora chamamos de novo paradigma e aquilo que estava acontecendo antes do velho paradigma. Por exemplo, há hoje muitos paralelismos entre a ciência medieval e a ciência do novo paradigma. Há o holismo, a integração, a percepção ecológica, mas há também muitas diferenças. Uma destas seria, por exemplo, os modos patriarcais de expressão, a ordem patriarcal. [...]
5. Mudança de descrições verdadeiras para descrições aproximadas
Na ciência, o fato de reconhecermos que nossas afirmações são limitadas e aproximadas está fortemente ligado ao reconhecimento de que estamos lidando com uma rede de relações da qual nós mesmos somos parte. Mas se tudo está vinculado com todas as outras coisas, como se pode chegar a explicar qualquer coisa? A explicação, como dissemos antes, está nos mostrando como as coisas estão interligadas com outras coisas. Se tudo está ligado com tudo, você não pode explicar coisa alguma, certo? As propriedades de qualquer parte surgem da maneira como elas estão relacionadas com as propriedades das outras partes. Você nunca poderá esperar obter a explicação de uma propriedade de uma parte qualquer a menos que aceite explicações aproximadas. A expressão "explicações aproximadas" significa que você está levando em consideração algumas das interconexões, mas não todas. Você faz progressos incluindo cada vez mais coisas, mas nunca obterá o quadro completo. Por exemplo, na mecânica newtoniana, a resistência do ar em geral não é levada em consideração. Na física das partículas, os efeitos da gravidade são geralmente negligenciados, e assim por diante. É este o método científico; passamos de modelo aproximado para modelo aproximado, e melhoramos a aproximação. [...]