Cancelamento, intolerância e BBB
Cancelamento: uma palavra que temos ouvido e vivido cada vez mais. Um movimento que ganhou vida e força por ser uma forma de trazer à tona desigualdades e injustiças, tem se tornado um grande tribunal — na internet e fora dela. Uma busca incansável por justiça que acaba cometendo, por diversas vezes, grandes injustiças.
O cancelamento é mais uma consequência da revisão de condutas que temos há tempos: preconceitos, machismo, bullying, racismo e tantos outros. Afinal, é nosso papel estar vigilante ao comportamento de instituições, marcas, empresas, governos e, até mesmo, pessoas. Mas, vale ressaltar que existe uma importante diferença entre o cancelamento de marcas (empresas, negócios, produtos etc) e o de pessoas.
Quando cancelamos uma marca, estamos realizando o famoso “boicote”, deixando de frequentar um espaço ou comprar um produto ou fazendo manifestos públicos de repúdio. Essas ações obrigam as marcas a reverem seu posicionamento e tomarem medidas reais em relação às injustiças cometidas por ela. São consumidores falando a língua que o mercado entende: a do dinheiro.
Sabia que 72%* dos consumidores se sentem mais capacitados a compartilhar seus pensamentos sobre uma marca e a cancelariam por conta de injustiça social?
Mas, o boicote é uma ação bem diferente de cancelar uma pessoa — seja ela pública ou não.
Ao cancelar uma pessoa, na maior parte das vezes, nossa atitude vai muito além da critica, de evidenciar o erro ou, até mesmo, denunciar um crime ou atitude discriminatória. O que vemos nas redes sociais é a humilhação, perseguição, ameaças e propagação de calúnias. Sem limites, usamos o cancelamento para propagar nosso próprio extremismo e intolerância. Gerando consequências profissionais, pessoais e de saúde mental e, até mesmo, físicas no “cancelado”.
Quando deparamos com o cancelamento em TV aberta, o impacto foi muito maior do que estamos acostumados a ver nas redes sociais. Percebemos como essa atitude pode ser injusta e danosa. O Big Brother Brasil 21 mostrou que, por vezes, quem “cancela” pode fazer um estrago e desserviço muito maior, mesmo que a motivação seja verdadeira.
O participante Lucas Penteado, em determinado momento, declarou que os pretos da casa deveriam se juntar para tirar os participantes brancos, que jogam por 1 milhão de reais. É claro que essa não é a forma de lutar contra o racismo, mas isso é papo para outro momento. Ainda assim, o resultado desse pensamento e comentário equivocado foi a contestação, acompanhada de briga, humilhação e exclusão. Mesmo com o passar dos dias, não houve diálogo real. O participante sofreu diversos tipos de preconceito — racismo, bifobia e até foi apontado como uma pessoa perigosa. Mesmo claramente ciente do erro, ele não teve a oportunidade de corrigir, se retratar e avaliar o que aconteceu, suas motivações e consequências. Não houve discussão e reflexão para uma mudança pessoal e, no caso, a oportunidade de levar o debate para todo o Brasil. Ouve o simples e cruel cancelamento.
As consequências foram assistidas por aproximadamente 19* milhões de pessoas: tristeza, solidão, total falta de autoconfiança, convicções questionadas e crises de ansiedade. No caso do Lucas, ele teve a “sorte” daquela situação existir apenas dentro de um programa de televisão. A maior parte dessa audiência — e muito além dela, se chocou com esse cancelamento autoritário e se solidarizou com o “cancelado”.
Numa pesquisa de 2020, antes mesmo do BBB 21,79% das pessoas se diziam contrárias à cultura do cancelamento.
É preciso levar essa conversa para além do BBB, pois mesmo que chocados com o cancelamento, ele acontece com grande frequência na internet e fora dela em pequenos grupos sociais. Usamos a ameaça de cancelar alguém para defender extremos e nossas verdades absolutas, desconsiderando que pessoas são passíveis de erros e que estamos todos em constante reconstrução. Somos motivados pela ilusão da perfeição e tiramos o direito que todas as pessoas têm de errar — e aprender com esse erro, sendo que os 3 principais motivos de cancelamento na internet se deve ao posicionamento político, mau caratismo e homofobia. Não dá para ser tolerante com o intolerável, mas será que estamos avaliando as motivações e consequências do cancelamento? Este movimento está realmente trazendo benefícios para o fim das desigualdades sociais, de raça e gênero? Será que a gente precisa cancelar o cancelamento ou conseguimos trazer o diálogo para este movimento?
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Texto publicado originalmente no Medium do projeto Despautadas.
*Fontes de pesquisa: