Mulheres, jornalismo, machismo e futebol
Ahh, o futebol! Nossa paixão nacional pode até ter muitos títulos surpreendentes, gols inesperados e craques inesquecíveis, mas sua estrutura passou décadas sem causar nenhuma surpresa em nós. De Pelé, Sócrates e Neymar, ainda é um mundo de homens e muito dinheiro, que deixa jogadoras como Marta, Cristiane e Formiga na categoria “Futebol Feminino”, que pouco olha para as mulheres fora de campo. Sabemos qual é o nome da mais antiga narradora em atividade ou quais são as mulheres das comissões técnicas dos times?
Lutamos para conquistar espaços nas mais diversas áreas e profissões. Mas a impressão que temos é que no futebol tudo acontece um pouco mais devagar. No Brasil, houve um período em que a proibição das mulheres praticarem esportes, inclusive o futebol, era regulamentada por lei — decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941, revogado apenas em 1979.
A luta das mulheres para integrar o mundo do futebol já é longa, mas ainda há muitas barreiras a serem derrubadas. Da torcida à arbitragem, as mulheres ainda são minoria em quantidade e relevância. E o mesmo vale para o jornalismo esportivo. Num país que o futebol é o principal esporte, que obtém os maiores investimentos, o jornalismo esportivo é, em sua maior parte, um jornalismo futebolístico.
O futebol é feito por homens, sobre homens e para homens. Nós, mulheres, não fomos ensinadas a gostar de futebol e olhar para ele como algo possível de se fazer parte. Apoiávamos o time do pai, torcíamos pela seleção Brasileira e, algumas vezes, ousávamos a ter um time do coração. Tudo bem que estou falando dos anos 90, período da minha infância, mas não mudou tanta coisa desde lá. A mulher ainda é subestimada quando decide fazer parte desse mundo e precisa provar a todo instante com competência para falar de futebol.
A primeira narração feita por uma mulher de um jogo de futebol masculino aconteceu em 1997 e só voltou a acontecer em 2018, num canal fechado — A ESPN Brasil, do grupo Disney, que hoje se orgulha por ter mulheres em destaque em quase todos os programas da grade de jornalismo.
Desde o primeiro jogo narrado, foram 21 anos de um país ignorando a presença de mulheres na narração. Luciana Mariano, que foi a narradora do Campeonato Pernambucano de 1997, transmitido pela TV Bandeirantes revelou numa conversa recente: “Nos primeiros jogos que eu fiz, as pessoas não falavam do jogo. As pessoas entravam para me julgar, para me avaliar. […] E eu vou precisar de treinamento, de experiência. E esse tempo me foi negado por 20 anos. Porque ninguém queria uma mulher narrando.”
Não só no esporte, nem apenas às jornalistas, foram negadas chances básicas às mulheres para suas formações profissionais. Com raras exceções, a TV Brasileira colocou a maioria das mulheres do jornalismo esportivo no banco. Nos anos 2000, quando a jornalista Milly Lacombe foi contratada como comentarista pelo canal SporTV, do grupo Globo, foi recebida com desconfiança e machismo, como contou numa entrevista:
Fui chamada de lado e essa pessoa falou: Não concordo com sua vinda para cá. Não acho que precise de mulher no programa. Acho que você é invenção da diretoria. Queria te dizer claramente que sou contra.
Existe preconceito dos veículos de comunicação e do próprio público quanto a contratar mulheres e confiar nelas. À frente das câmeras, na reportagem e na apresentação, as mulheres são minoria e passaram décadas como um acessório bonito nos programas de debate. A “assistente de palco e leitora de e-mails” dos programas esportivos reforçava padrões de beleza e a posição da mulher-coadjuvante. “A mulher tinha que ser gostosa, bonitona. Por quê? Vamos entreter os ‘boys’. Para eles ficarem aqui presos, não tirarem o olho da gente”, diz a própria Luciana. Mas, como ela ressalta, o que os homens do futebol não imaginavam é que essas mesmas “gostosas” iriam aprender sobre futebol e, melhor, aprender a falar de futebol e lutar pelo seu lugar de destaque nos programas.
Segundo a Unesco, só 4% da imprensa especializada fala sobre o esporte feminino e apenas 12% dos programas esportivos são apresentados por mulheres. Não é um problema de talento, e sim de oportunidade. A todo instante as mulheres do futebol e do jornalismo esportivo são questionadas e precisam provar que são boas, que merecem ocupar aquele espaço. Além de não serem raros os casos de assédio sofridos com jogadores e torcedores, ou mesmo pelas redes sociais com hate e assédio das torcidas.
melhor coisa que eu posso falar para qualquer garota, para qualquer mulher, é: permita-se experimentar. Experimente! Sem medo, experimente!
(Luciana Mariano, em conversa ao vivo no Instagram Despautadas)
O jornalismo esportivo é um reflexo do pensamento da sociedade, é impossível separar o machismo no Brasil com a falta de mulheres no meio do esporte. Falta ousadia da TV Brasileira para mudar esse sistema retrógrado e dar à mulher o mesmo status que concede ao homem. Os movimentos feministas, de luta por igualdade, equidade e direitos já trouxe reflexos positivos, mas a impressão é de que mulheres no futebol é um mundo recente repleto de primeiras vezes e novas conquistas. Repetidamente. E é mesmo! Hoje, ser mulher no meio do futebol e do jornalismo esportivo já é um ato político e de heroísmo. A luta pode ser antiga, mas as primeiras oportunidades ainda estão só chegando.
Texto originalmente publicado no despautadas.medium.com