CAPÍTULO XIII - A CASA DOS MEUS SONHOS É FEITA DE UTOPIAS POSSÍVEIS?
(Capítulo XIII, completo, do livro publicado MINHA CASA OCIDENTAL – RELATO VERDADEIRO SOBRE A MORTE DO FACÍNORA, composto de XXXIV capítulos e 988 páginas, de autoria de CISINO COSTA. Dá-se continuidade à apresentação de informações relativas ao personagem número um do romance, José Marcelino da Silva, já agora no começo dos anos setenta, logo após o recrudescimento do golpe militar com a edição do AI-5, em 1969. Aborda a fase de militante estudantil dele, na Bahia, a um passo da clandestinidade, flertando com ideologias, sonhos, utopias e a luta armada. E, o mais importante no objetivo do romance, que tem a pretensão de incluir o tempo como personagem marcante, o capítulo traz detalhes sobre as complexas questões do mundo naquelas décadas após a Segunda Guerra Mundial, temas que não davam paz ao espírito em ebulição de José Marcelino da Silva, embora este fosse incapaz de compreender a portentosa dimensão. Apesar da aridez, estes assuntos tratados eram de comum enfrentamento pelos jovens naqueles anos distantes das redes sociais modernas. Jovens “movidos pela tática da miríade dos sonhos absolutos, sem forma e nem conteúdo, que não temiam a força da gravidade e nem as queimaduras do sol tórrido… que viviam embalados pelos egos inflados e eram fluentes em fantasias, romantismo e desviadas paixões platônicas”)
Senhor juiz: vai comparar roubar uma casa bancária com o roubo decorrente da fundação de uma?
(Personagem de A Ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht, se defendendo no tribunal da acusação de roubo a banco, afirmando que o “Banqueiro é mais ladrão do que o próprio assaltante”)
CAPÍTULO XIII
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A CASA DOS MEUS SONHOS É FEITA DE UTOPIAS POSSÍVEIS?
Salvador, Bahia, 1972 da E.C.
Movido por ideais não bem definidos e com utopias difusas a serem conquistadas, José Marcelino da Silva corria “solto na bagaceira”, como se dizia na Bahia, na carreira de militante estudantil. Primeiramente, manejando e abusando de palavras de ordem já consagradas na nomenclatura das esquerdas. Depois, após adquirir certo refinamento cultural — o que é dito com ressalva —, utilizava-se de expressões sedimentadas na literatura, na doutrina e nos costumes, das quais se apropriava e utilizava com competência incomum. Destilava conhecimentos gerais, mas, sem conteúdo firme, desde que simplesmente consultava os textos de maneira rápida, escolhendo e pinçando as palavras e frases que lhe interessavam, descartando o restante volumoso. Até mesmo ignorava o contexto em que se encontravam empregadas. Transformara-se em tremendo decoreba, o ás da aplicação, nos colóquios e nos discursos, dos bordões e slogans esquerdistas; de expressões latinas aprendidas — decoradas — nas complicadas aulas de direito romano do professor Jenner Simões e das citações de frases, pensamentos e passagens consagradas de obras de autores consagrados. O que ele não guardava na cabeça, repetia das anotações constantes de um bloquinho mal-ajambrado de consulta rápida que o acompanhava por todos os lados, e que já compunha, com louvor, o equipamento da faina que desenvolvia.
¡No pasarán!; a religião é o ópio do povo; hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás; figura Lombrosiana; condição sine qua non; ainda existem juízes em Berlim; existe algo de podre no reino da Dinamarca; o que fazemos em vida ecoa na eternidade. O coração tem razões que a própria razão desconhece; data venia; sui-generis; modus operandi; ex vi legis; jus estrebuchandi; dura lex sed lex; vox populi vox dei; numerus claususus; capitis diminutio. Estes eram exemplos de expressões estereotipadas que ele ressoava a toda hora, tentando passar uma imagem de erudição cultivada, através de desempenhos normalmente convincentes, embora sujeito a eventuais risos. Porque era engraçado mesmo. Aquele pernambucano desconfiado, de rude sotaque sertanejo, contaminado de baianidade praieira, pronunciando as palavras como se estivesse degustando, sem pressa, todas as sílabas, em nome de uma melhor comunicação e apresentação sonora final. Muitas vezes, ele soava ininteligível, em virtude do raciocínio mais rápido do que podia acompanhar a capacidade de expressão. Detalhe. Ele nunca revelava a fonte das citações, deixando passar como se fosse coisa da própria lavra, trabalhada com afinco (nem sequer se lembrava, pois só anotava no bloquinho o texto desejado).
Contudo, quando alguém indagava se ele havia descansado bem no final de semana, costumava dizer:
— Que nada! Passei em companhia dos mestres, mais precisamente dos clássicos, abeberando-me de conhecimentos.
Quando ele entrou na faculdade de direito da Universidade Federal da Bahia, no começo de 1972, a Bahia era gerida por um governador biônico, Antônio Carlos Magalhães, político estreante, mas arrojado, indicado ao cargo com a ajuda decisiva de Juracy Magalhães. Este último, líder nacional histórico, iniciado e azeitado ainda no tropel do tenentismo na década de vinte, encontrou no apadrinhado afoito o seu algoz continuado até alcançar as descendências próximas.
O governador fora nomeado pelo soturno presidente da República, general Emílio Garrastazu Médici, o qual, em nome da doutrina da segurança nacional e com os órgãos de informação e repressão bem engraxados, dava o toque da alvorada. Atuava com muita licenciosidade na guerra revolucionária, caçando e matando os inimigos do regime. Supunha-se completamente abrigado sob o suporte jurídico do manto ditatorial elástico do Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, e sob as normas da Emenda Constitucional 01, de 1969, outorgada pela caricatural Junta Militar que o antecedera. Modificada pelo Ato Institucional 14/69, essa emenda passou a prever a pena de morte, excepcionalmente, também nos casos das guerras, psicológica, revolucionária ou subversiva. Estas leis deram ao mandatário a oportunidade de assistir à televisão e afirmar, como fez em 1972: “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto ao noticiário. Porque, no noticiário da TV Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”. Os gritos e os martírios dos porões e masmorras não eram ouvidos sequer do outro lado da rua, por isso mesmo não contavam. O Brasil ainda surfava — beleza! — nos eflúvios oriundos da conquista do tricampeonato mundial de futebol da Copa do Mundo de 1970, no México, ainda assim, os mais críticos gritavam: “Cadê a copa do mundo, serviu para quê, na realidade?”. O país vivia o melhor momento do seu afirmado “Milagre Econômico”, bem representado pela realização de obras megalômanas de inspiração militar, como a rodovia transamazônica (cinquenta anos de construção, e ainda inconclusa até hoje), a hidrelétrica de Itaipu, a ponte Rio-Niterói e o primeiro metrô de São Paulo. Na indústria, era bem representativo o marco alcançado pela Volkswagen, ainda em 1970, da fabricação de um milhão de carros, tendo à frente o VW Fusca. O país era aclamado pelos “alienados”, no dizer dos oposicionistas do regime, através de frases ufanistas e intimatórias, do tipo “Brasil, ame-o ou deixe-o”, veiculada fartamente pela propaganda do rádio, da televisão e de cartazes nos quais as cores verde, amarelo e azul-anil da bandeira nacional, eram aproveitadas. Era decantado por canções de arregimentação, do tipo passa o rodo geral, como “Pra frente Brasil”, exemplo de música que, embora inspirada na paixão nacional pela pelota que zanza tonta nas quatro linhas do futebol, era criticada por muitos como “alienada”. O próprio José Marcelino da Silva costumava dizer que ela era o “Hino da ditadura militar”. No entanto, paradoxalmente, muitas vezes ele se surpreendia, e aos outros, cantando o refrão: “Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil do meu coração…”. Canção burguesa, gostosa danada!
Para celebrar o excepcional ânimo desenvolvimentista vivido pela política econômica do país, rotulada com jactância de “integração nacional”, o governo ditatorial preparou uma grande festa cívico-militar, com direito a vastas comemorações em todo o território. A finalidade era promover um amplo espetáculo de apelo ao patriotismo e à reafirmação da nacionalidade e, assim, dentre outras atividades, foram elencadas homenagens a alguns heróis nacionais. Teria como ápice a chegada, ao Brasil, dos restos mortais (ossos pútridos, arcada com dentes amarelados aos pedaços e entranhas reduzidas a pó por força da desidratação com o tempo) de uma figura histórica épica — Dom Pedro I, o “Rei Soldado” — que retornariam de Portugal. Ficariam de vez em São Paulo, mas, sem o coração, que fora doado à Igreja da Lapa, no Porto. Contudo, antes de sossegar, os restos mortais fariam uma inusitada peregrinação póstuma, com o esquife colhendo saudações e honras militares em todo o país, inclusive o desfile de dezoito mil soldados na Avenida Paulista, em São Paulo. Nascido em 12 de outubro de 1798, em Lisboa, Estremadura, no Palácio de Queluz, residência oficial da família real, em um quarto decorado com motivos da obra “Dom Quixote de La Mancha”, do escritor castelhano Miguel de Cervantes, Pedro de Alcântara veio para o Brasil, com os pais, em 1808. Ainda criança. Terminou promovendo a independência do Brasil (após o “brado retumbante às margens plácidas do Ipiranga”, conforme lembra a poética do hino nacional), sendo coroado imperador com o nome de Dom Pedro I, em 1822, após o retorno do pai, D. João VI, para Portugal em 1821. O pai o deixara aqui, no Brasil colônia, como príncipe regente. Com a morte do pai, em 10 de março de 1826, envolveu-se na sucessão do trono português, tendo assumido brevemente o país de ultramar, com o título de D. Pedro IV, de Portugal e Algarves. Logo depois, abdicara em favor da sua filha adolescente, Maria da Glória, designada como rainha de Portugal e prometida em casamento ao seu irmão, Dom Miguel, que acumularia a condição de marido com o cargo de regente até a maioridade da sobrinha, conforme acertado. Contudo, Dom Miguel assumiu o poder absoluto, fato que determinou o retorno de Dom Pedro I ao reino de Portugal, deixando no Brasil o seu filho menor, Pedro II. Retornara para guerrear com o irmão, que crescera ao seu lado e não honrara o compromisso assumido. Nem sequer desposara a sobrinha menor (o que gerou, nas ruas e bancos de praças de Lisboa e se estendeu para o interior do reino e ultramar, entreouvidos risíveis do tipo “somente quem não sabe dançar, balança a criança”). Dom Pedro I invadiu Portugal através do Porto, cuja população o apoiou fortemente (e recebeu como prêmio o seu coração, depois de morto), saiu vitorioso e repôs a filha no trono, mas acabou contraindo tuberculose. Morreria pouco tempo depois, em 24 de setembro de 1834, no mesmo quarto em que nascera, no Palácio de Queluz. Depois de ter abdicado de dois tronos, participado de guerras em dois continentes, casado duas vezes e tombado do tílburi da vida com apenas trinta e cinco anos, Pedro de Alcântara, enterrado em Portugal apenas com as honrarias deferidas ao generalato português, retornava ao Brasil republicano e militar. Desprovido do coração, o imperador D. Pedro I, guindado a herói da independência e maior integrante do panteão nacional, teria os seus despojos mortais inumados ao lado das suas ex-esposas, a Imperatriz Maria Leopoldina e Amélia Leuchtenberg. Descansariam em criptas situadas na Capela Imperial do Monumento à Independência do Brasil, na colina do Ipiranga, em São Paulo.
Eram as comemorações do Sesquicentenário da Independência, ocorridas naquele ano de 1972, que celebraram heróis nacionais bem antagônicos e diversificados. Os festejos começaram no dia 21 de abril, dia de Tiradentes, o alferes enforcado e esquartejado pelo poder colonial português. Foram encerrados no dia 07 de setembro, data da independência, com o representante da dinastia real que supliciou o alferes nas ruas de Vila Rica, pelo crime de lesa-majestade, Dom Pedro I.
A festa do sesquicentenário da independência, para José Marcelino da Silva, aconteceu tão somente através de dois momentos bem estanques. No primeiro deles, tomara conhecimento, através do jornal Pasquim, que, dentre outros, um dos irmãos “coragem” e uma das atrizes principais da novela Irmãos Coragem, de Janete Clair, transmitida pela Rede Globo, foram enterrados no “cemitério dos mortos-vivos” de Henfil. Isto ocorrera a título de patrulhamento irreverente e de bom humor (segundo se afirmava), e não de censura, pois era o tempo do “É proibido proibir”. Foram punidos por terem participado da festa oficial do governo. No segundo momento, sob a forma de um círculo de conferências do qual ele participara no Instituto de Música da Universidade Católica de Salvador. Ele ouviu uma interessante palestra sobre “O Papel da Bahia na Independência do Brasil”. Gostou, muito embora tenha definido o evento com obviedade de dar dor na unha, como “palestra chapa branca, coisa de milico fardado, engomadinho, com coturnos grosseiros tilintando de novos e os colhões lustrados com pasta Nugget”. Fora arrastado pela companheira de lutas, Carminha (ele ficou vidrado nela, mas não foi correspondido, um tipo de mulher pequena, mignon, “nunca teria condições de bater em mim”, sorriso lindo, dentes perfeitos, toda aprumada, com a bunda no lugar e portadora de peitos empinados de quem queria transar gostoso). No entanto, segundo ele dizia, tinha um defeito de fabricação adquirido ainda no útero materno: só conseguia ver até os limites da própria genitália, portanto, só gostava de mulher. Pênis, nem pensar, nem mesmo untado na manteiga e assado na brasa.
Quanto ao milagre econômico, afirmado como existente no país, era sempre um tema de difícil enfrentamento e completa negação pelos companheiros que, claro, seguiam matreiros a cartilha do quanto pior, melhor. Ele dizia, no que era bem acompanhado, que “Não existe milagre que dure para sempre, ainda mais quando o santo é de pau oco, pois a dívida externa está aí e está aumentando vertiginosamente”.
Esperava que o sentimento anticomunista, muito presente à época em vastos segmentos sociais, especialmente nas forças armadas, fosse refreado completamente no futuro, dando oportunidade à cor vermelha e aos “vermelhos”. Falava-se que até mesmo exemplares do romance O vermelho e o negro, de Sthendal, foram apreendidos no começo do golpe militar à guisa de caça aos comunistas encarnados, embora não compusesse a lista dos livros censurados pela Polícia Federal. Nem tampouco guardasse relação evidente com ideologia política.
Não importava! Com ou sem milagre econômico. Com ou sem o pleno emprego e fartos investimentos, o pensamento comum de grande parte das vanguardas, na época, andava muito longe das vitórias apregoadas pelo regime. Confundindo desejo ardente com a realidade negra e fria, parecida com mármore de necrotério, restou inaugurada uma fantasia. Desta última, depreendia-se que o país vivia uma crise completa em todos os sentidos, e que o regime estava prestes a desmoronar. Bastava, apenas, um conveniente empurrão na direção certa do precipício adequado. O próprio sistema de produção capitalista, em que o trabalho era social, mas o lucro era individual, dava os seus últimos suspiros de vida e seria substituído pelo socialismo que avançava imponente no mundo todo, tal como previra Karl Marx. O sonho avoado era gigante. Compreendia a ilusão de que o povo silente — o qual, diga-se de passagem, não era levado muito em consideração, apesar de a luta ser realizada em nome dele — estava pronto para tomar nas mãos o leme da história, através da insurreição. Na sequência do pensamento atabalhoado, o povo se constituía de uma massa de manobra “alienada”, mas sofrida, espoliada pela burguesia, podendo ser trabalhada e modelada através de tratamento de choque, com o que reagiria, de maneira vigorosa e firme, a seu próprio favor. Vale dizer, ligado o estopim da revolta, e deflagradas ações firmes contra o regime militar-civil, corporificadas sob a forma de atos generalizados de desestabilização das diversas ordens que compunham a base de sustentação do poder constituído, o povo marcharia junto. Passeatas; agitações; greves; focos de guerrilhas; atentados e explosões; justiçamentos; sequestros; ações expropriatórias em busca de dinheiro, armas e munições, eram condições necessárias para que o povo, vergastado pelas desigualdades sociais e inconformado, pudesse intervir. Tenderia a receber de braços abertos os seus “salvadores”, que, ao mesmo tempo, também seriam salvos pelo amplo apoio da população em estado de prontidão para agir. Gente e armas se uniriam. Os estudantes, os operários, os camponeses, os militantes que concorriam entre si com suas linhas, correntes e tendências. Até as donas de casa — proprietárias dos seus aventais e dos terços cristãos utilizados, até então, para esconjurar o comunismo —, portando vassouras e pano de chão à guisa de arsenal de guerra, desencadeariam prontas reações. Sairiam às ruas para saudar a liberdade, peitar os tanques de guerra e promover um gigantesco movimento de rebeldia civil na cidade e no campo, redundando na vitória da libertação nacional com a desarticulação do governo militar. Os alucinados iam mais longe. Entendiam que a burguesia brasileira, impávida e eufórica quanto aos rumos do país, e até fomentava, na ofensiva armada, a criação de grupos radicais ultradireitistas, a exemplo do Comando de Caça aos Comunistas – CCC (sem contar os extremistas enquistados no próprio aparelho estatal), de repente mudaria de opinião. Por obra, talvez, de uma espécie de amnésia coletiva, magia ou feitiço, seria redirecionada para uma nova visão substituta da anterior e far-se-ia democrática, anti-imperialista e socialista sem maior resistência, afastando o sentimento anticomunista retrógrado, fora de moda no mundo todo. Uma completa reviravolta. A chegada ao poder das forças progressistas, portanto, era apenas uma questão de tempo e estratégia. “Estratégia de ação beligerante”, disse José Marcelino da Silva em tom grave, com voz artificial, em uma das assembleias da Juventude Comunista Soteropolitana, da qual participara. “Porque bem tensionado em demasia, o arco quebra”, complementou lá do alto do seu entendimento completamente desautorizado pela perspectiva histórica. Era uma luta com causa, com pontos “modestos”, conforme anotara: reforma agrária, nacionalização, eliminação das concessões e, afinal, expulsão do capital estrangeiro. Só, e apenas isso.
As estratégias de resistência ao regime, colocadas em perspectiva, eram as mais diversas em todo o país. Muitas se corporificaram em ações, algumas delas com tons espetaculares e capacidade de assombrar o poder vigente e justificar o aparato de repressão instalado.
No entanto, no universo de inquietação frequentado por José Marcelino da Silva, na Bahia, até a última quadra de 1972, as ideias da luta política, apesar de fartas e engenhosas, mantinham-se, considerando-se o aspecto prático, no campo da ingenuidade e da experiência corriqueira. No balanço geral, o resultado apresentado era módico e não ultrapassava o exercício incansável de discussões infindas, sem convergências no final, e as ações esboçadas eram as mais comuns. Panfletagens e pichações; jornalecos; contatos estéreis com entidades sindicais desconfiadas; visitas às portas das fábricas para convencimento de operários indiferentes; passeatas com demais estudantes; “penetração”, na maioria das vezes fazendo piquetes com faixas, alvos fáceis de bombas de gases lacrimogêneos e de tiros com balas de borracha, em greves operárias esvaziadas. Assembleias e mais assembleias, a panaceia de todos os males e o sonho de consumo dos desfiles de egos e das palavras discordantes. Em uma das surtidas de passeatas de estudantes, ele levou uma bomba de efeito moral diretamente nos glúteos, tendo sido objeto de tremenda gozação entre os companheiros. Com o tempo, foi sendo levado a sério. Foi até convidado para participar de um roubo — expropriação — a um banco, quando, muito esperto, forneceu uma resposta daquelas bem egressas da senda acadêmica: “Como vou roubar um banco se quero ser um formatador de nações e talvez até de impérios?”
Nesse meio tempo, José Marcelino da Silva, além de cometer pequenos escritos literários (coisa rala, mas que parecia adquirir caráter de regularidade, o que não se revelou verdadeiro), estava se firmando, também, como o mais requisitado redator de frases curtas à disposição dos movimentos de resistência na Bahia. Era tarimbado na arte das mensagens e palavras de ordem inscritas nas faixas e muros, misturando a língua e as letras com a militância política. Desenvolveu, e muito bem, a arte da grafia com sprays ou pincéis. Com menor maestria, fazia desenhos eventuais (desenhava, lindamente, fuzis e cabeças de militares bem elucidativas, demonstrando hostilidade). Tentou até colaborar com a remessa de textos para o “O Inimigo do Rei”, tabloide que circulava nos becos da cidade, mas não obteve retorno. O mesmo aconteceu — nada — com os textos enviados para uma associação soteropolitana, chamada “Sede Sapientiae”.
Os seus locais de preferência para o exercício da militância eram a reitoria, o restaurante universitário e a superintendência de cursos da universidade. O dirigente desta última era suscetível a críticas maciças por se declarar publicamente a favor do poder militar e por ter anteriormente dirigido a Penitenciária Lemos de Brito (“Nada a ver com os estudantes”, diziam). Ademais, exercia o cargo com muito rigor, especialmente no trato com os universitários, “um magote de comunistoides”, segundo afirmava com muita ênfase.
Esse superintendente, de nome Augusto Barroso do Amaral Lacerda, transformar-se-ia muito tempo depois, quando já estava com mais de oitenta anos, em um dos peculiares “amigos ocultos” de José Marcelino da Silva. Essa era a denominação — “amigos ocultos” — que ele dava às pessoas que conhecera no passado, havia reencontrado por acaso anos depois, e adquiriu o hábito de acompanhá-las furtivamente pelos shoppings e ruas com ares detetivescos. Como se fosse o personagem Hercule Poirot, de Agatha Christie, ou um vil criminoso à espreita para atacar, ferir e roubar. Anotava em um bloquinho e, tempos depois, no smartphone, os detalhes observados. Ele nunca procurava essas pessoas, mas quando as encontrava e dispunha de tempo suficiente, sempre tinha a estranha disposição para seguir, observar e anotar. No caso específico de Augusto Barroso do Amaral Lacerda, ele ficava se perguntando como seria o definhar de dias daquele idoso, anteriormente empoderado e distribuindo ordens com muita potestade. Agora, no final da vida insignificante (a exemplo, talvez, da dele próprio), apodrecendo e sendo cozinhado, vivo, em um apartamento minúsculo, de um prédio minúsculo, situado na rua José Leite Duarte, no Tororó, 1º andar, poente, batendo sol na frente pela parte da tarde. Tratava-se de uma artéria amontoada de carros por todos os lados. Buzinavam, faziam barulho dos motores e emitiam gases nocivos. Em pelo menos uma oportunidade, ele ouvira, da rua, gritos terríveis vindos do prédio e do apartamento do antigo superintendente, mas não conseguiu saber o que acontecia, no primeiro momento. Em razão da curiosidade mórbida, deu para frequentar uma padaria situada nas intermediações da Avenida Joana Angélica, três quadras adiante do local no qual o antigo superintendente morava. Exatamente na esquina que dava para a rua José Leite Duarte. Com muita atenção, ele o via chegando, acompanhado apenas de um resignado cachorro amarrado pela coleira, sujeito a atropelos e violência urbana, talvez movimentando os pés em seus últimos passos claudicantes. Vinha comprar pão francês, fatias de mortadela e, eventualmente, tomar uma média de café com muito açúcar e pão bastante amanteigado na chapa. Mastigava os alimentos com o apoio das gengivas molhadas e uma boca carente de dentes, notando-se o desgaste pela cárie dos que ainda resistiam. Quando tinha disposição e estava de bom humor, o ex-superintendente desfiava algumas piadas idiotas e repetitivas, cuja graça era exatamente a falta de graça e de sensibilidade para saber que não tinham alegria nenhuma. Exemplo: a piada do pãozinho. O padeiro do estabelecimento havia batizado um pãozinho com o nome de “nanete”, e ele perguntava repetidamente às funcionárias, durante anos, segundo elas afirmavam, enchendo a paciência das mocinhas: “Essa nanete é prima da baguete?” Outra, impõe-se contar, quando ele perguntava às atendentes, imaginando que estava abafando na verve de humor original: “Sabe que eu me casei com a mulher possível? Pergunte por quê! Perguntou? Porque eu queria me casar com uma loira do Rio do Sul, mas terminei me casando com uma morena do Rio Grande do Norte, tirada a índia”. “Já passei por muitas coisas nesta vida besta”, dizia ele às garçonetes, José Marcelino da Silva, de ouvidos ligados nas conversas alheias. “Já comi uma pizza arretada de ruim, sabe onde? Em Roma, perto da Santa Sé. Para completar, no Rio Grande do Norte, uma guia turística nos levou em excursão na maternidade em que ela própria nasceu. Pode uma coisa dessa?”
Ao final de algum tempo, ele descobriria a razão dos gritos oriundos do prédio do antigo superintendente. Este cuidava, sozinho, de um filho adulto, na faixa dos trinta e cinco anos, portador da Síndrome de Down, com dificuldade de locomoção e certo grau de alienação mental, prenhe de testosterona até nos olhos. As brigas no pequeno apartamento eram constantes e extravasavam os limites. Só se acalmava, para valer, quando o pai trazia prostitutas gordas, deformadas, apanhadas a esmo no Pelourinho e que aceitavam de bom grado o serviço de entrega carnal sem discriminação de qualquer jaez. Era uma explosão de sexo movida a urros, acomodação difícil e salivas escorrendo pelos cantos da boca. O ápice bem alongado era reconhecido e aclamado na portaria do diminuto prédio: “Zequinha gozou!”, brincavam os porteiros, que, ao verem as prostitutas vergastadas entrarem, opinavam baixinho, rindo de escárnio: “Grande foda!”.
Além de seguir e cercar a “vítima”, muitas vezes José Marcelino da Silva até mesmo se aproveitava do anonimato para abordar, bater um papinho e ajudar o investigado a atravessar a rua. Sempre sondando por informações para tirar conclusões bem pessoais a respeito da pessoa. Ficou rico? (Essa era a primeira indagação recorrente dele). Mora bem? Tem mulher? Tem filhos? Está sofrendo com doenças? Quais? Foi vergado pelo tempo? Melhorou com o tempo, ou piorou?
O primeiro que sofrera este assédio, se é que se pode chamar assim, uma vez que o observado vitimado não chegava a ter conhecimento do fato, foi o senhor “Minha faculdade”, assim nominado nos registros que me foram repassados por ele. Tratava-se de um estudante veterano do curso de engenharia da Politécnica, que fora contratado pela universidade federal para ajudar na recepção aos calouros aprovados no vestibular de 1972. Este estudante foi a primeira imagem que ele teve da universidade quando fez a matrícula no curso de direito, e ficou marcado pelo resto da vida. Por ocasião da matrícula, José Marcelino da Silva recebera das mãos do futuro senhor “Minha faculdade”, o cartão IBM perfurado da moderna computação com furos, empregada à época, no qual estavam cravados os seus dados da inscrição e as matérias que pretendia cursar naquele primeiro semestre. Daí o nome atirado por ele: “Minha faculdade”, aquela mesmo que ele nunca conseguiu cursar até o fim. Existem anotações nos registros de mais de vinte anos de relacionamento unilateral dele com o senhor “Minha faculdade”. Desde o primeiro momento em que registrava um “jovem alto, bonito, desenvolto, caixa de peito atlética, mas com indícios de que iria engordar e engrossar a linha da cintura”, até o último encontro que ocorreu uns poucos meses antes da morte dele próprio. Na oportunidade, segundo informação nos registros, ele terminara perdendo o “perseguido” após este entrar nos provadores de uma loja de departamentos, C & A, no Shopping Iguatemi e demorar a sair. Estava muito apressado e não podia esperar os próximos passos.
Nos debates, palestras e reuniões, nos bancos escolares, nas praças, e nos pátios das universidades, cada companheiro cabeludo e muitas vezes barbudo, com ares descolados, indumentárias transadas e até modos de revolucionário de qualquer coisa, com ou sem causa, tinha a “solução” para resolver os problemas do Brasil e do mundo. Tudo começava, por assim dizer, com o afastamento do governo militar e a instituição de um regime socialista do tipo “tudo para todos”, desapegado de coisas materiais individuais e com muitos valores espirituais presentes.
Era para ser, como dizia o colega Paulo Lega, ladrão de pão, que escondia na jaqueta e outras coisas mais, pois no restaurante universitário podia comer, mas não levar fora da barriga:
— Vamos dividir. Tudo para todos!
— Dividir o que, Paulo, se você não tem nada na vida? — Perguntava um companheiro chato.
O companheiro dissidente lutava para tirar do “bolo”, ou melhor, do liquidificador velho e barulhento, as suas bananas internadas na residência universitária e apanhadas regularmente por Paulo, sem ordem do dono, para fazer vitamina, a famosa “venenoroba”. O gosto dessa iguaria nunca mais seria repetido no futuro. A receita era aleatória e abarcava tudo que existia pela frente, e ao alcance das mãos, no momento da feitura. Bananas, leite, restos de bolacha, de refrigerantes, de pizzas, de doces, de cocadas, de rapaduras, de extrato de tomate. Determinado dia, ocorreu até a inclusão, na vasilha, de cinco comprimidos do antiácido Sonrisal, por parte do maluco Paulo Lega, que queria comer muito e não passar mal. O mesmo cuidado valia para as calças jeans, também utilizadas por Paulo Lega, sem pedir ao proprietário (era por isso que José Marcelino da Silva guardava as suas calças Lee debaixo do colchão, e em muitas ocasiões, quando não estava usando, a transportava na capanga, para manter a salvo).
Após um espetáculo no teatro Vila Velha — A Ópera dos três vinténs, peça do marxista Bertolt Brecht — um grupo de estudantes se reuniu ao lado para debates, no passeio público, pegado ao palácio da Aclamação, na avenida Sete de Setembro. Discussão free lancer.
José Marcelino da Silva, achando curiosas as vestes de um participante, tentou manter contato e ser espirituoso. Dirigiu-se ao jovem franzino (um falso magro, pois ostentava muita carne na região superior das pernas e ancas), que, em plena noite quente da Bahia, usava um capuz muito suspeito e mantinha as mãos nos bolsos, e indagou:
— Você é cantor, pintor, escritor, artista, ou apenas usa este capuz todo invocado?
O jovem, indagado, meio encabulado, falou:
— Eu? Eu apenas uso este capuz todo invocado — E tirou o corpo fora, saiu de fininho, resmungando baixinho: “Tchau e benção!”.
Logo depois, José Marcelino da Silva percebeu que ele, ao tomar a palavra, falara contra a homofobia, “Também ela, uma ditadura cerceadora da liberdade”. Dera continuidade ao discurso, bradando que “O gênero da pessoa vem de dentro e não da matéria passageira do invólucro de fora; temos que respeitar as diferenças e as prerrogativas democráticas abarcam muitas frentes, inclusive a de opção sexual, pois, como dizia minha avó, nem toda Maria é igual. O importante são as conexões humanas”.
Afirmara, ainda, com uma inesperada voz andrógina que tinia nos ouvidos dos presentes:
— Pai! Mãe! Mundo! Beijo para o mundo! Aceita, mundo! Aceita!
José Marcelino da Silva, pasmado, exclamou para o companheiro do lado:
— Pô! O bicho é só veado mesmo! Lutar pela liberdade de dar o rabo, perder as pregas? Ficar todo frouxo, afolozado? Esse negócio de homossexual existe mesmo! “O cara gosta é dos caras”! Duvido que essa reivindicação pegue para valer.
No entanto, a dúvida persistia:
— Por que o capuz? Não entendi o capuz, não entendi o capuz. Vamos tomar cuidado! Se brincar, esse sujeito é espião infiltrado do Serviço Nacional de Informações e está aqui para nos vigiar. Ele é tão estranho que pode ter sido cooptado, mas não tenho certeza. Pode ser também até agente da CIA.
Num futuro distante, José Marcelino da Silva identificaria esse companheiro ainda portando os olhos acesos e vidrados de homossexual chupeta. Antes da universidade, era incubado, vivia enrustido em conserva, mas não se sabia se era de óleo comestível ou molho de tomate. Talvez fosse de azeite extravirgem. Depois, assumiu. Agora, usava um “nome social” adotado — apelido de guerra, claro, que estreou primeiramente nas boates ao som de Vênus, do Shocking Blue —, e depois ganhou as ruas: Rakelly — “uma deusa de fogo e desejo no cume da montanha” — que pronunciava de uma maneira característica. Imprimia perfeita sintonia entre a pronúncia e os gestos, franzindo boca e rosto com torces e retorces, culminando com uma performance estática de milionésimo de segundo, a senha para dizer que, finalmente, havia concluído o espetáculo de revelar a sua graça pessoal com a qual não fora batizado(a) pelos pais. “Rakelly”. Tinha até um esposo, um homem transexual — uma “Bartira” que virara “Dimitri” —, para quem havia destinado as suas inclinações românticas e sexuais. Ambos faziam parte de um grupo teatral, a Companhia Baiana de Espetáculos Populares, importante na cena local e com um único espetáculo de comédia de travestidos que repetia exaustivamente durante mais de vinte e cinco anos. Mantinham um dorso de script, mas iam adaptando as falas e as piadas com o tempo, aproveitando os acontecidos mais recentes. José Marcelino da Silva, muito sacana que era, concluiria em parecer enfático: “Para quem era da turma dos ‘manjas’, que se entrincheirava nos banheiros para olhar a pinta dos outros e pensava ganhar a guerra dando a bunda, até que ele não se saiu muito mal não”.
Como explicava Freud, para entender uma mulher é preciso ouvir o que ela tem a dizer. Não apenas — esta opinião jocosa, envolvendo Freud e o acréscimo horrível adiante, convém dizer, são literalmente e exclusivamente da autoria dele, José Marcelino da Silva — “Esgaravatá-la com dedos, boca e pipeta dosadora entesada”.
Assim, em uma das oportunidades de acalorados debates, foi dada oportunidade à militante Ritinha para falar. Ela era uma ex-normalista que tinha um viés católico apostólico romano oriundo da família interiorana praticante, e que nunca perdia a missa aos domingos, “porque domingo sem missa é semana sem Deus”.
Ela falou:
— Companheiros! Queria propor aqui algo assim menos radical, se é que vocês me entendem. Propor que fizéssemos, através de comissão, uma visita a Dom Avelar Brandão Vilela, Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil. O objetivo é convencê-lo da legitimidade da nossa luta, e ele pode, sim, nos ajudar em algum momento difícil, pois o lema religioso escolhido por ele — vejam bem o alcance! — é de plenitudine christi. Trata-se também, além de homem de Deus e fervoroso católico, de pessoa enfronhada com o seu tempo, dotada de profundos contatos em todas as áreas do poder, inclusive a militar.
Ritinha!
Essa Ritinha havia sido, até pouco tempo atrás, namorada de José Marcelino da Silva. Vivia enrabichada, no modo “arriada os quatro pneus”, para o lado dele, sempre se abrindo em flor de lótus (como ele dizia, parodiando meio mundo de pessoas), disposta a fazer qualquer coisa para engatar novamente o curto romance desfeito. Ele desconfiou que ela apresentara a proposta apenas para agradá-lo. Ela sabia do profundo respeito que ele nutria por Dom Avelar, que fora consagrado, com apenas trinta e três anos, bispo de Petrolina, tendo se transferido para a Arquidiocese de Salvador no ano de 1971, anterior ao que ele chegara, também, na cidade.
Foram namorados por um curto período. Ele a largara em razão dos peitos moles, moles e enrugados, que lhe davam a impressão de esperma aprisionado em camisa de vênus. Ademais, ela tinha seios otários que não olhavam direto para a frente. Apontavam, estranhamente, para as laterais, mirando horizontes diversos e antagônicos (mesmo assim, eram risonhos, ele reconhecia). Na primeira vez que dormiram juntos na residência estudantil, infringindo todas as regras da ocupação da casa, tiveram que corromper o vigia troncho noturno, que só a deixou passar para olhar a farta bunda dela e certamente imaginar movimento e façanhas de putaria (bingo!). Foi um sufoco. Ela dormiu de barriga para cima, as pernas abertas e os pés derreados para os lados de fora, como se fosse um pinguim em descanso polar, olhando para o céu do ártico sem estrelas. A moça possuía uma disfunção no quadril que, na prática, fazia as pernas dela ficarem desconjuntadas e os pés penderem lateralmente. Durante a noite, tomou todo o espaço do beliche e disparou toques certeiros nas canelas dele, que ficou emborcado num canto, sem conseguir pregar os olhos e nem soltar um peido aliviante (passaria o resto do dia seguinte em busca das ventosidades perdidas, lutando para conseguir um destampar eficiente). Ao tempo em que ela, nas palavras dele, “soltou muitos elásticos de calçola”. Quando acordaram pela manhã, antes de irem filar o café do restaurante universitário (mais uma vez, a mulher bunduda e sem peitos formosos seria apresentada como bilhete de entrada), ela — erro crasso dos erros crassos — depositou carinhosamente a pesada coxa em cima da dele. Agiu premeditadamente, como se fosse prendê-lo até o fim dos tempos, no meio das pernas rechonchudas, macias e com uma pele sedosa, parecida com a epiderme de princesa dos contos de fadas. Ele, no cantinho, assustado, com as mãos cruzadas no peito, parecendo um defunto atento ao seu próprio enterro, reagiu com cuidado tentando se libertar, mas ela demorou eternos trinta segundos, olhando fixamente na cara dele com a maior marcação, para finalmente levantar a coxa e liberar. O fato determinou o seu abandono para sempre, e no mesmo dia, sob o argumento alucinado de que “o mundo não me quer com você”. Nos embates amorosos dele, nenhum deslize seria perdoado, inclusive a falta de combinação legal entre bunda e peitos. Também, essa coisa de aprisionamento não era com ele, não! Não era apenas isso! Não! Quando transavam e ele chegava ao ápice, ficava doido para se livrar logo do abraço apertado, mas ela o apertava ainda mais entre os braços, com força (dizia ser o “melhor momento!” da transa) e não o deixava sair de cima dela por um tempão. Ele ficava postado lá, após gozar, se sentindo com a maior cara de otário, penetrando e constatando o membro, que já era pequeno, refluir até se perder sem objetivo na experiência frustrada de imersão sem causa. Um horror dos infernos!
Tempos à frente, quando o volúvel José Marcelino da Silva estava com sérias dificuldades pessoais e financeiras, eles reataram o caso por uns poucos meses, o que ocorreria também em rápidos e constantes intervalos posteriores. Vai e vem repetitivo, igual ao Ferry Boat da ilha de Itaparica no final do ano. Ritinha, já completamente organizada na vida como cirurgiã dentista e protética de primeira — uma verdadeira artista, com dons da perfeição de Michelangelo, na confecção de dentes formosos, e caros, de porcelana —, o ajudou bastante. Inclusive, doara-lhe a parte dela em uma quitinete antiga, tão pequena quanto uma caixa de fósforo, e toda arrombada, na ladeira da Independência, em Nazaré, que compraram juntos, mas que ela quitara muito mais. Ela assinou o papel do apartamento e pensou: “dou uma prova de amor e ele volta por inteiro”, mas não voltou, coisa nenhuma, porque ele pensara antes: “pego a minha parte e me mando de uma vez por todas, mas se pegar todo é ainda melhor”. Tudo terminou abruptamente, mais uma vez, quando ele a abandonou ao destino implacável dela, mas com uma tal maestria que parece que fora ela a autora do desatamento, entendimento que não se sustentou por muito tempo. Em um dia de briga feia, ela colocou um bilhete na geladeira, pregado com um ímã sob a forma de pinguim, mas como se fosse um manifesto voltado para o mundo. Falara, estranhamente, no plural majestático: “Nunca mais cuecas em nosso banheiro. Não queremos mais esse homem do pau pequeno na nossa casa”. Finalizou, panfletária ao extremo: “Pau pequeno nunca mais, ainda mais com floresta de pentelhos descuidados!”. Quando ambos já tinham mais de cinquenta anos, ela, que sempre o incomodava para voltar — “O sonho besta acabou, volte para mim, atraque no meu cais, sou um porto seguro, temos muitas coisas em comum, até veneramos o mesmo deus” — e conseguira apenas curtidas esporádicas, deu em cima dele novamente. Firmemente, com garras totais expostas, disse: — “Sei que errei…”. Recebeu dele o seguinte veredito, antes mesmo de continuar: “Sei que você errou, e muito, mas mesmo que tivesse acertado, e muito, não teria adiantado nada; mesmo que fosse uma deusa, não adiantaria nada. Primeiro, porque prefiro deusas que não envelhecem, tipo Calypso, a deusa que Ulisses encontrou na ilha de Ogígia, na volta da Batalha de Troia em direção à ilha de Ítaca; ou tipo as garotas bailarinas do programa de televisão do Domingo do Paulão, pois o tempo passa, passa e elas continuam jovens e lindas por força do milagre da metamorfose, enquanto o Paulão continua apodrecendo de dias. Depois, nosso amor nem sequer existiu. Mesmo que tivesse existido, o amor vem de uma talagada só e o coração não é plateia idiota que pede bis para ouvir porcaria. Eu me astrevo — nunca aprenderia a pronunciar a palavra certa: atrevo — a dizer que você nunca foi sequer uma parceira considerável, nem lembro de ter lhe dado um beijo de amor verdadeiro. Você — nunca se esqueça disso! — não gostava sequer de brincar de casinha, preferia bater perna nos shoppings. Podemos dizer, na verdade, que apenas fomos juntos ao Motel Maxim’s, na Boca do Rio. Perdi muito esperma com você, curvei-me às suas exigências de sexo, mas tudo terminou. Até o Motel Maxim’s já foi demolido e não existe mais. Iam construir uns prédios no local, mas a empresa quebrou. Depois, se algum dia eu voltar, sei que você me esperará, parada, no mesmo lugar, gorda, bunda empedrada, em toneladas dilacerantes, uma, duas, três… Cada vez que você engordava, meu pênis diminuía ainda mais. Não adianta me pastorar”. No entanto, ela não acreditou que ele estivesse falando a verdade. Talvez não estivesse mesmo! Até mesmo porque, eram as mulheres que sempre o escolhiam, ele apenas as largava despedaçadas pelos caminhos, após se extinguir, como ele afirmava, “o prazo de validade delas, estampado na testa”. Este prazo, de ordinário, coincidia com a capacidade de rir do rol de piadas idiotas, e sem graça, dele; do exaurimento das histórias a serem divididas; da saciedade dos locais de passeio mais comuns. Principalmente, o prazo final era alcançado quando ele começava a sentir necessidade de costas magras, abraçar uma mulher e receber menos volume nas mãos, pois parecia que a vida em comum com ele dependia exatamente dessa prova física, táctil. “Ele gosta delas pequenas, magérrimas, frágeis, os ossos aparecendo, com as bundas de meninos. Afirma que as mulheres grandes batem nele. Prefere quase pássaros abatidos, nunca vi nada semelhante. Contudo, fica com elas apenas nos primeiros ensaios, na chamada final ele ‘morre’ mesmo é nas de biotipo de bunda de tanajura, como eu; vem amor, me joga no chão, me arrasta no terreiro e me chama lagartixa vagabunda”, dizia Ritinha, arretada da vida, porque virara graxeira, flor sem cheiro. Falava com despeito, equilibrando-se do alto das suas gorduras compostas de celulites e estrias bem fornidas, mas ainda acreditando. Ritinha, pode-se afirmar sem dúvida, tinha senso de autocrítica. Ainda quando jovem, reconhecia: “Posso até ser feia, mas é a maioria, democracia meu filho. Sou baiana, mas nem tabuleiro tenho, tenho mesmo são as curvas sinuosas. Eu me viro com aspectos do corpo, por exemplo, tenho a bunda linda e um sorriso cativante de Monalisa na defesa avançada. Pulso, funciono, realizo, não sou estátua magistral esculpida em pedra dura, quero ser conduzida, mas ir caminhando ao pé do altar”. Ritinha, que era fundamentalmente honesta (não gozava, mas também não fingia, e não mentia depois), e tinha lá os seus pingos vertidos de umidade vaginal, quando ele a abandonava por vezes e vezes, falava aos cotovelos, implorava até, mas os ouvidos dele não a ouviam. Escrevia, esgrimia belas palavras e o texto aparecia enxuto, preciso, manchado apenas pelas lágrimas derramadas, mas os olhos dele não liam. Os ouvidos dela, afiados como os de tuberculoso, começavam a ouvir e a entender, em todos os seus dizeres, pormenores e subentendidos, as músicas de dores de amores que tocavam no rádio e vazavam na veia. Era um amor que não se comprazia com as juras somente obtidas nas noites de insônia dele, quando ela acreditava estar sonhando delirantemente. Um amor que não se comprazia com a situação de que ele nunca a elogiava, nunca falara que o cabelo dela era bonito e nem que o derrieré dela era melhor que um tubo de televisão em cores, o que já seria bem suficiente para ela. Ele, na hora da despedida, com qualquer uma delas, sempre culpava o começo do relacionamento, o primeiro encontro. No caso de Ritinha, dizia: “O que poderia acontecer com um amor que começou no cinema, assistindo filme de Kung fu?”. Eles foram individualmente ao Cine Guarani, na Praça Castro Alves, e lá se encontraram, na sessão das nove da noite. Ritinha, após alguns retornos fugazes com ele, terminou sozinha os seus dias, apenas com uma filha gestada de um pai adoidado, a quem conhecera depois. Sempre contemporizadora e política sem pisar no chão de guerra, dera à filha o nome de Alina. Aliança Libertadora Nacional. Morreu solitária e merencória, sonhando que a filha era de José Marcelino da Silva. Na verdade, na última transa diletante que tiveram, já após superado o tempo de sobrevivência do enlace, ela armou para engravidar dele — “deixarei um rastro para o futuro” —, mas não aconteceu e ela resolveu ter um filho — filha, na verdade — com qualquer um. “Quem sabe ele não me ame como na música A Maçã, de Raul Seixas?”, indagava-se no final da vida. Por essa época ela não trabalhava mais há muitos anos, tinha medo da mordedura dos clientes, pois, quando dizia “abre, fecha” a boca, não tinha mais desenvoltura para retirar o dedo rápido e terminou sendo mordida um dia. Mordida por um cliente de oitenta anos, mas ainda com a mordedura firme como o diabo cristão. Ademais, ela estava presa de renitentes roncos incomodativos na barriga, que atrapalhava na hora do serviço, pois tinha certeza que os clientes ouviam. Mesmo quando velha, ela olhava para homens belos e mais jovens e dizia, para si mesma: “Se ele estiver me procurando, vai me achar…”. Com toda essa convicção, essa mulher ainda guardava amor no coração e uma vagina entre as pernas, talvez até intumescida.
As conversas entre os companheiros, entremeadas de ranços revolucionários, germinavam em todos os pontos.
— Por que não formamos uma força revolucionária no vale do Capão Redondo, em Lençóis? — Falou um dos integrantes do grupo, David, que, no futuro, passaria mais de vinte anos lendo o “Jogo da Amarelinha”, de Júlio Cortázar, obra que, segundo ele, mudaria o curso da sua vida para sempre.
Continuou, explicativo:
— Poderíamos instalar um enclave, fazer de lá a nossa Serra Mestra, ou mesmo uma espécie de quilombo. Zumbi de Palmares, sabem, lembram? Aproveitar os povos locais para formar um foco de insurreição. Soube que lá tem uma sofrida comunidade quilombola…
— Sierra Miestra — corrigiu o colega Eduardo, que se especializara no hábito de pronunciar, com perfeição, palavras esparsas — lugares-comuns — das línguas, inglesa, espanhola, italiana e até alemã. Tratava-se de um negro boçal e pedante — daqueles que, segundo o pai de José Marcelino da Silva, “quando não melava na entrada, melava na saída”. No futuro, ele lançaria no currículo que dominava o idioma alemão, mas, na verdade, nunca estudou mais do que um ou dois semestres no Instituto Goethe. Era “lindo”, escreveu José Marcelino da Silva no amarfanhado de notas, “vê-lo pronunciar ‘Gérard Depardieu’ na língua francesa, ou ‘Juan Francesco Arrutia’, na espanhola, ao tempo em que parecia distender as pregas anais na elocução. Ou, então, se mostrar, escrevendo no caderno ao tempo em que olhava para você, como se dissesse: ‘Olhe o que o macaquinho de cor sabe fazer: escrever sem olhar!’. Gostava de fazer o mesmo na máquina de datilografia — escrever sem mirar o teclado, mas não mostrava o texto para ninguém. Muito provavelmente saía todo errado”. Eduardo era tão otário que, quando menor, dizia que mulher rica e bonita não bufava. Passaram-se muitos anos até ele aprender e reconhecer que “não bufava, mas na frente dos outros”, em face da cultura, da educação e dos bons modos de gente rica. Procedimento idêntico, segundo ele, não acontecia com as feias e pobres que, sem pudor, se soltavam de qualquer maneira.
O colega David era o mais radical do grupo. Portava — e gostava de mostrar aos outros — um revólver calibre ponto 22, niquelado, de cabo de madrepérola, mas já completamente enferrujado de tão velho que era, arma que adquirira na permuta por um aparelho de toca-fitas cassete, marca Philips. Sonhava em entrar em um grupo armado. “Quero ser cooptado!”, dizia aos quatro ventos. “Entrar na luta armada radical”. Terminou não concluindo o curso e nem tampouco entrou na luta armada. Passaria a ganhar a vida como empresário de restaurante macrobiótico. Depois, enveredou na moda do “verde” que irrompeu na Alemanha, coincidentemente, depois que o grupo terrorista Baader-Meinhof foi derrotado. Virou adepto declarado da não-violência (usava camisetas com declarações do tipo), ecologista e ativista natureba com um movimento chamado “onda verde e azul” em que defendia as praias, pássaros em extinção, baleias e quaisquer outros monstros marinhos que por acaso aparecessem. Na verdade, o objetivo era salvar-se a si próprio. Conseguiu, e com saúde, porque a comida de vegetariano fazia muito bem naqueles anos, especialmente quando associada à maconha natural da terra virgem: Vixe Maria! No respeitante à corrente ideológica, David começou como comunista aspirante à beligerância. Depois, virou socialista liberal, posteriormente, suprimiu “socialista” e restou apenas “liberal”. Por último, liberal com liberdade (novo liberalismo?), quando, prestigiando o ecumenismo, “uma das facetas da liberdade”, segundo enunciava, começou a fazer experiências religiosas diversas. Passou a frequentar um terreiro afro e receber “passes” de um babalorixá que se dizia guardião das sete chaves de Oxóssi e versado por completo no espaço das vinte e uma linhas brancas dos orixás. Esse pai de santo, que se apresentava todo paramentado, cheio de marmota, prometia resolver conflitos emocionais e abrir caminhos para obtenção de riqueza material antes do desencarne. Nesse desiderato, o “religioso”, com especial apego aos deuses das florestas e matas, era um firme adepto da purificação pelo sangue, obtida nas jornadas de abate e sacralização de animais, especialmente galos valentes de rinhas, cujos restos eram lançados em despachos nas encruzilhadas da cidade de Salvador. O babalorixá não se negava a incluir jornadas sexuais nas curas (o batidão afro virava gemido miscigenado). Com o passar do tempo, terminou fundando um clube de experiência de cura unissex, no Edifício Thamires, na Praça da Sé, que David passou a frequentar como aficionado. Este último, a partir daí, não demorou muito, já na meia-idade, terminou virando homossexual temporão. Foi classificado como da espécie “duas telas”, ou “gillette”, que cortava por todos os lados (bebia e ficava feminino, com trejeitos estranhos, teatral, como se fosse encarnado por outra pessoa). “Coisa espiritual mesmo, sabe?”, ele justificava, portando uma almofadinha rosa que levava por todos os lados. Dizia, também: “Todos têm liberdade para fazer o que quiserem das suas vidas e vamos nos permitir. Cada um cuida do que é seu e dos interesses, como meus pais me ensinavam e demorei a aprender”. Complementava: “Lembro muito bem como os meus pais, piedosos cristãos que rezavam de verdade, abominavam o aborto e eram a favor da pena de morte, olhavam os pedintes na escadaria da igreja. Igual aos meus filhos e netos hoje em dia, quando olham os pedintes além dos para-brisas envidraçados dos carros. Não têm pena, não se comovem, são conscientes de que eles eram livres e escolheram este caminho da mendicância em virtude da preguiça, da falta de coragem e, talvez, até das mãos gigantes do destino. Assumam, calem-se e morram com as suas escolhas”. Como ato final, já agora, em 2018, David escolheu como objetivo e ápice de vida a condenação do ex-presidente Lula, o caminho mágico, segundo entendia, para resolver de uma só talagada todos os problemas do Brasil. Sem dúvida de qualquer tonalidade, o atalho que o levaria ao reino dos céus, tanto da denominação católica, quanto dos orixás africanos, e talvez até à vahalla dos antigos Vikings. Com certeza, David irá morrer na tradição liberal e na libertinagem. Votou, claro, em Bolsonaro, nas eleições presidenciais de 2018, o candidato que aplicou sistematicamente a mentira, o grotesco e o bizarro como arma política e cujos eleitores tiravam selfie dizendo “bala”, em vez de “x” ou “sex”, e faziam gestos ameaçadores de “arminhas” com as mãos. Tempos desanimados. O prelúdio confuso para colher um retumbante fracasso nacional, após deixar muitos cadáveres pela estrada.
Por falar em Lula, citado no parágrafo imediatamente acima, José Marcelino da Silva, carinhosamente, batizou um cãozinho da raça Spitz alemã, com o nome de “Lulinha” em singela homenagem. No opiniático dele, constante das informações repassadas, ele reconhece que “o único crime comprovado de Lula foi o de lesa-majestade, caracterizado ao manter relações comerciais firmes com Cuba e a Venezuela de Hugo Chávez e Nicolás Maduro. Também, quando, no melhor momento da carreira, tempo em que exibia uma voz rouca, mas que ecoava no mundo todo, abriu a boca, insensatamente, para dizer que todos os países tinham o direito de possuir uma bomba atômica. Os Estados Unidos não perdoariam tal ato de ‘terrorismo’. Já estava fichado desde quando ajudou a criar o Foro de São Paulo ao lado do proscrito Fidel Castro, tendo sido flechado pela CIA norte-americana no exato momento em que as condições favoreceram. Comeu o pão que o diabo amassou”.
— Já estive na região — disse Emílio, outro companheiro de lutas, também estudante da faculdade de direito, na qual obteve o nada recomendável adesivo com a logomarca de “jurisconfuso”. Quando começava a falar, entrava em um labirinto e demorava a sair do outro lado, o que nem sempre acontecia, pois muitas vezes se perdia para sempre. Continuou, ele: — Lá tem também um grupo chamado “Os Vigilantes Filhos do Universo”. Eles compraram uma fazendinha e puseram uma cadeira bem alta na frente da casa. É tão alta que só pode subir de escada. Na verdade, é uma escada-cadeira, ou cadeira-escada, fincada no solo. Cada dia, um sobe e fica de plantão lá em cima, esperando contato com os extraterrestres.
Emílio, depois de uma vida regular, já aposentado sofrivelmente pelo INSS, arranjou uma “Gabriela” amorenada de vinte anos, apontando para a eternidade efêmera. Largou a mulher e foi morar com ela em Ilhéus, Bahia, no paraíso, “perto do sol e do lado de Deus”, segundo informara a José Marcelino da Silva. Arrancharam-se — ele e a morena cheia de curvas e sorrisos — numa barraca na beira da praia do Pontal, também utilizada para fins comerciais, cujo estabelecimento ganhou o nome de “Os Milionários da Vida”. Vendia cerveja, refrigerantes e petiscos, mas não aguentou seis meses. Foi expulso pelas muriçocas, pelas cobras, pelos ratos de praia, pelos cachorros e — o pior de todos os males, segundo ele — o barulho insuportável das ondas brilhantes sob os raios da lua, quebrando na praia. Largou a morena na praia com o estabelecimento e tudo, queimando os poucos recursos de toda uma vida e voltou para a mulher antiga que o esperava de braços abertos, certa da aliança eterna. A partir de então, até onde foi possível, eram vistos arrastando as velhices de mãos dadas no Shopping Barra, olhando as vitrines, muito mais do que comprando.
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Agora, na tela de mexericos, o bom companheiro Abelha, um vacilão otário da porra. Não ligava para os extraterrestres, assim como os demais. Interveio, assim dizendo, dentro da sua supremacia branca, nodoada pelos cabelos encaracolados:
— E os negões de lá têm quase dois metros de altura, lutam capoeira, são bons remadores, dominam a arte da navegação pluvial e conhecem a floresta toda. Dariam bons revolucionários.
Acrescentou, sem esconder o entusiasmo:
— Lá tem também maconha natural. Direto do pé, sem agrotóxico, sem química! Muitas cachoeiras com água. Tem até praia com água do rio.
— Ah! Sim, “xarope”! Aí, vai agora virar agricultor? — Indagou José Marcelino da Silva, ríspido.
— Eu, não! — Respondeu Abelha, cabisbaixo, após pensar um pouco.
Compunha a trupe, ainda, Marquinhos, o penetra do grupo, o eterno secundarista. Baixinho, invocado, com déficit intelectual, ouvia tudo com os ouvidos bem abertos, mas sem reter nada no arcabouço da cabeça. Nunca chegou a passar de verdade em qualquer vestibular. Vinte anos depois de ter concluído o segundo grau, tentou novamente — mais uma, das inúmeras vezes — para “ver como estou”, segundo dizia, e perdeu feio. No ano seguinte, o vigésimo primeiro após a conclusão do curso científico, conseguiu aprovação em uma das inúmeras faculdades particulares financiadas pelo estado, que, também, dava créditos aos estudantes para pagarem as mensalidades. Negócio da China para os empresários, estes estabelecimentos inundaram o país na década de noventa, por conta de diretrizes do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Marquinhos ligou para o pai, dizendo:
— Papai — (“Papai?”, o papai dele ficou logo desconfiado) — passei em ADM. Preciso da sua ajuda!
— Passou em quê? — Perguntou o pai.
— ADM. Administração de empresas. Fui aprovado no vestibular. Vou raspar a cabeça e tudo o mais a que tenho direito.
— Meu filho, olhe bem! Até os carrapatos e os percevejos estão passando em Administração. E não ire pagar mensalidade, não!
— Por quê?
— Meu filho, entenda bem! Chega de tanto curso. Já está quase na hora de você morrer, já está quase na hora de fazer um curso de como se portar depois de morto no caixão de defunto. Você está perto de quarenta anos e precisa trabalhar para se alimentar. Não come todo dia? Então, tem que trabalhar todo dia. Se eu for pagar as mensalidades dessa faculdade, logo você pedirá dinheiro para fardinha, merenda escolar e inevitáveis provas de segunda, terceira ou até quarta chamada. Depois, se conseguir terminar o curso, se… eu digo “se”, vai querer fazer pós-graduação, mestrado, cursos de especialização, de atualização e se eternizar como estudante. Deixa quieto! Beijos do papai! O papai lhe ama! Acabe também com essa onda enganosa de que gostaria de ir trabalhar com a construção de abóbadas douradas, dessas que se vê no mundo islâmico. É muito longe! Sei que você está se preparando para um “grande destino”, mas vamos botar para frente essa onda de academia. Tenho certeza de que essa coisa de personal training um dia vai pegar, muitos solitários vão querer companhia na hora da malhação. Veja bem… para ter sucesso, diminua logo a sua própria barriga.
Marquinhos não era exatamente o que o papai queria. Não seguia à risca os conselhos, mas após ter deixado a barba crescer, botou um bar denominado “BarBudos”, com um sócio, também de barbas desleixadas e careca frondosa. Incrivelmente, o negócio virou sucesso imediato, isto já no final dos anos noventa. Ficava numa das transversais da Pituba, e a maioria das cadeiras e mesas do estabelecimento era posta no meio da rua, atrapalhando o trânsito. Os carros passavam e roçavam perigosamente a clientela, que parecia até gostar. Cerveja bem gelada, azáfama, trânsito, gás carbônico exalando das descargas dos automóveis e muitas comidas gordurosas que deixavam o ar empesteado. O povo baiano adorou a mistura poluída dos elementos urbanos. Ele ganhou bastante dinheiro e muitos amores, mas tudo se acabou quando ele morreu precocemente de AIDS. A companheira dele, que torrava o próprio corpo fritando hambúrgueres no estabelecimento, em uma área envidraçada muito quente, passou anos e anos tremendo nas bases sob a suspeita da doença, definhando de danação abaixo da ameaça. Apesar das dores, sobreviveu. Mudou de profissão e terminou registrando uma patente como inventora do cabide aveludado, que cuidava com carícia das roupas dependuradas.
As crenças em projetos mirabolantes se sucediam em ritmo acelerado. Mais na frente, mesmo forçando a cabeça ao extremo, José Marcelino da Silva jamais conseguiria entender a “fase puerperal vivida” (assim, ele definiu o momento preparatório, antes de partir para a clandestinidade e a consequente luta armada), e extrair qualquer medida lógica das atitudes audaciosas, tendo em vista o rigor do freio da realidade repressiva. Na própria Bahia, bem perto dele, a repressão ostentava cores perversas e sanguinolentas. Como tinham coragem de pensar em realizar atos contra o regime, quando a repressão caía em cima de simples manifestações estudantis? Ou quando os crimes dos temidos esquadrões da morte se revelavam em todo o país?
No entanto, com ou sem hipocrisia, causa, meios e racionalidade, os corações de fogo selvagem e os espíritos insurgentes se faziam presentes e ruidosos, ensaiando hinos revolucionários. A beleza da situação, chegou a imaginar José Marcelino da Silva em suas masturbações filosóficas posteriores, talvez se devesse ao fato de que os corações juvenis da época não tivessem pensado efetivamente em resultados práticos. Simplesmente tramavam ações sem esperança de realizações e sem frutos, na região da matéria etérea dos românticos sonhos estéreis, na qual se inebriavam e muitas vezes, entediados e sem rumo, se deixavam levar através de escolhas ilusórias que os encaminhavam para a morte, ou, alternativamente, até o desbunde geral. Afinal, todos sabiam que a repressão fazia as suas vítimas tombarem nos mais diversos lugares, inclusive contando com o apoio do aparato norte-americano de informações. Sabiam, sim, mas parecia algo longe, irrealizável.
Nos últimos anos, as atividades repressivas, no Brasil, haviam sido centralizadas através da estrutura montada pela Oban–Operação Bandeirante, nascida e apresentada em 1969 no seio do 2º Exército, em São Paulo. Instituição informal, nunca existiu à luz do direito, fundada entre o conúbio incestuoso do público — bens e recursos públicos —, e do privado, que a financiava parcialmente. O mesmo modelo aproveitado em seguida pelos “esquadrões da morte” clandestinos, em que as empresas privadas bancavam a repressão ilegal e, esta, em troca, retribuía com atividades criminosas a favor dos interesses dos investidores.
O desmantelo violento de tentativas de guerrilhas ainda retumbava nos jornais, mas os estudantes não se tocavam da tragédia. A exemplo daquela montada na Serra do Caparaó, em Minas Gerais. Na empreita, os companheiros revolucionários cabeludos, sem qualquer nexo, tentaram conquistar um país de dimensão continental como o Brasil apenas subindo em direção ao sol, para escalar uma montanha inóspita de quase três mil metros de altura no meio do nada. Marcharam adentro, no meio do Saara verde de mata fechada, enfrentando encostas íngremes, chão úmido e temperaturas negativas de até cinco graus. Foram fazer o quê lá em cima, nas adversidades do Pico da Bandeira, cantar a Internacional e gritar ordens gerais do pináculo até os limites das fronteiras do país? No final, a única causa revolucionária, para eles, era a tentativa de sobrevivência a qualquer custo. As listas de desaparecidos e os relatos de torturas, já completamente institucionalizadas no aparelho estatal, eram comuns, como, por exemplo, revelou para o mundo o “Documento de Linhares”, de 1969, elaborado por presos políticos da penitenciária de Linhares, localizada na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Os falsos “suicídios”, nas prisões, abriam as manchetes dos jornais, utilizados pela ditadura para conferir credibilidade aos laudos oficiais criativos e mentirosos. Os desaparecimentos de pessoas, a exemplo do ex-deputado cassado Rubem Paiva, que foi preso no Rio de Janeiro e desapareceu em seguida. Na Bahia, além da morte de Lamarca no interior do Estado, em setembro do ano anterior, de 1971, a ex-companheira dele, Iara Yavelberg, havia morrido apenas um mês antes, na rua Minas Gerais, Pituba, acossada pela polícia política. Também havia sido morto Carlos Marighella, o líder do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e comandante geral da organização de extrema-esquerda Aliança de Libertação Nacional (ALN), natural de Salvador, Bahia, e crescido na rua Barão do Desterro, na Baixa dos Sapateiros. Tinha sido assassinado poucos anos antes, em novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, em São Paulo, pelas forças policiais do Delegado Sérgio Paranhos Fleury. O mesmo ocorreu, pouco tempo depois, com Joaquim Câmara Ferreira, também comandante da organização Aliança de Libertação Nacional (ALN), que foi preso em outubro de 1970, torturado e morto. O mesmo ocorreu com o próprio “Che” Guevara (vide abaixo), o guerrilheiro máximo daquele tempo, heroico, carregado de símbolos que se multiplicavam a cada dia. Tinha sido capturado e assassinado com um tiro no peito, a pouco menos de cinco anos antes, em 1967, nas florestas da Bolívia, e o corpo, após extração cirúrgica das mãos, foi enterrado clandestinamente em vala comum, de onde seria resgatado trinta anos depois para alcançar mais glória ainda. Um caso local mais recente, ocorrido ainda no ano de 1972, conforme noticiado no jornal A Tarde, de Salvador. O jornal diário informou que o dentista baiano Célio Augusto Guedes fora morto (lançado na conta geral de “suicídio”) em 15 de agosto. Perecera sob tortura, após ser preso na fronteira do Brasil com o Uruguai e encaminhado para o CENIMAR no Rio de Janeiro. Além de inúmeros outros militantes, inclusive anônimos, mortos, desaparecidos, inglórios, que apesar de não serem reverenciados pela história que registra apenas o passado do “hoje” capturado, sofreram as mesmas dores heroicas antes de serem esculachados. Muitos morreram por ideais de liberdade, igualdade e justiça, outros nem tanto. Morreram apenas porque entraram pela tubulação errada. Tudo isto era do conhecimento público e as quedas das forças oposicionistas continuaram.
No entanto, no sentir dos estudantes desprendidos e que pareciam perseguir o perigo, os eventos pertenciam a outra dimensão cósmica. Transitavam numa frequência completamente inalcançável pelo radar dos companheiros movidos pela tática da miríade dos sonhos absolutos, sem forma e nem conteúdo, que não temiam a força da gravidade e nem as queimaduras do sol tórrido. Estes episódios não tinham muita significação para aqueles que viviam embalados pelos egos inflados e eram fluentes em fantasias, romantismo e desviadas paixões platônicas. Acreditavam, no máximo, que eram jogos diferentes, paralelos, orientados por outras regras não aplicáveis no mundo deles. Triste engano!
Abre-se um parêntese suspensivo na linha corrida, para trazer uma situação completamente pertinente ao andamento da narração em curso, relativa a “Che” Guevara e Fidel Castro. Inclusive, transcreve-se um texto esclarecedor escrito por José Marcelino da Silva anos depois, quando já tinha se afastado da luta armada.
As mãos de “Che” Guevara foram retiradas e guardadas em formol. No ano seguinte à morte, 1968, o coordenador da caçada, captura, assassinato e depositário das mãos, o Ministro de Estado da Bolívia, Antônio Arguedas, que contou com o apoio da CIA na empreita, — sendo ele próprio, segundo consta, agente da inteligência americana — abandonou a Bolívia e foi viver em Cuba, numa boa. Levou a tiracolo as mãos de “Che” Guevara, dizendo que as entregaria à viúva. O restante do corpo, ou melhor, o que restava dele, só retornaria trinta anos depois, em 12 de julho de 1997. Recentemente, em 2017, Cuba comemorou 20 anos da chegada à ilha dos restos mortais de Ernesto ‘“Che”’ Guevara e seus companheiros de armas, cuja descoberta na Bolívia foi considerada uma “verdadeira proeza da ciência” do país caribenho, conforme noticiou, no dia 11-07-2017, o jornal estatal Granma. As equipes cubanas, dirigidas por doutores em diversas especialidades da história, da sociologia e da antropologia, escavaram mais de duzentas covas comuns na Bolívia, até identificarem, na localidade de Valle Grande, o esqueleto, sem as mãos, de “Che” Guevara. Estava enterrado com o uniforme militar e ainda portava uma pequena sacola com fumo na jaqueta. Em outubro de 2017, Cuba festejou os 50 anos da morte do mundialmente reverenciado guerrilheiro cubano-argentino, cujo carisma encantou e continua encantando gerações de imaginadores de realidades sob a promessa de novas crenças. Contudo, tal situação não “bate”, não mantém coerência a ida de Antônio Arguedas para Cuba, ainda em 1968, onde viveu cercado de regalias e sem qualquer incômodo por parte do governo ditatorial de Fidel Castro. Qual foi a parte da história que o mundo não entendeu plenamente? José Marcelino da Silva julga ter explicações válidas, conforme escreveu anos atrás em suas anotações jactanciosas que me repassou: “Fidel Castro começou como homem da CIA em Havana, com ou sem carteirinha e ritual de admissão. Era disfarçado. Só depois que botou o poder nas mãos, foi que traiu os interesses imperialistas norte-americanos e se lançou nos braços sedutores da União Soviética. Foi daí que virou um anjo decaído do Senhor, a exemplo do que ocorreria, futuramente, com Saddam Hussein, mas por outras razões. Primeiro, Fidel Castro foi salvo da prisão pela CIA, que o ajudou a transformar a pena de quinze anos pelo assalto ao Quartel Moncada em apenas vinte e dois meses. Depois, a CIA, que atuava independente, à margem do poder central americano e fazia alianças por todos os lados, vielas e bueiros sujos, inclusive com a máfia, consentiu e financiou, desde o primeiro momento, o golpe dele contra Fulgêncio Batista, também bancado por diversos opositores deste último. Essa história de que apenas um grupo de barbudos, armados, abarrotados no casco de um pequeno barco — o Granma, comprado por um desafeto de Fulgêncio Batista — tomaram um país inteiro é pura balela. Mentira deslavada repetida à exaustão pelos vencedores, donos da caneta manipulável da história. Como todo genuíno ditador, Fidel Castro, que somente realizou o Primeiro Congresso do Partido Comunista Cubano dezesseis anos depois da revolução vitoriosa que comandou, eliminava os desafetos e todos os parceiros concorrentes. Nenhum mais parceiro, desde o adventício, e mais concorrente do que “Che” Guevara, de quem ele morria de inveja, sem disfarce, pelo carisma, pela simplicidade, pela coragem e pela fascinação pública mundial que este último exercia e que perdura até agora (o mundo de coração social ama “Che” Guevara). Posso vê-lo incutindo e incentivando na cabeça já bem arejada e predisposta do “Che”, a onda ideológica, e já nostálgica naquele tempo, da “revolução permanente” do movimento proletário mundial, pensada e instrumentalizada por Trotsky e Lênin com a fundação da Terceira Internacional Socialista, em 1919. Até então, o fenômeno não se realizara em seriado em nenhum lugar do mundo. Se não houvesse outras razões para o fracasso, existia Stálin, o sucessor de Lênin, eficientemente prático e desprovido de sonhos irrealizáveis, ele nunca permitiu de verdade essa ideia de “revolução permanente” e terminou dissolvendo o movimento. Stálin estava muito mais interessado em seus próprios feudos, pegáveis, muito embora não quisesse perder a pompa, especialmente para o rival Trotsky, que ele terminou eliminando, de condutor da vanguarda da revolução mundial, fracassada desde o nascimento. É muito fácil imaginar Fidel Castro maquinando, astutamente, para afastar o “Che” de Cuba, identificando um país e um espaço geográfico adequado — uma nova Sierra Maestra, mas muito maior, do tamanho dos Andes latinos — para iniciar uma guerrilha. Uma insurreição que, em teoria, pudesse se alastrar facilmente, alcançando com densidade os territórios de outros países, dando esperança ao sonho romântico de “Che” Guevara de ser protagonista da aventura de uma revolução proletária mundial. Tenho certeza de que Fidel Castro escondeu o detalhe fundamental de que a Sierra Maestra original existiu, no seu nascituro, com apoio norte-americano, embora não oficial, e, diligentemente, arrumou os alforjes do “Che” para este sair em missão de arriba-pés, suicida, mais uma vez. Porquanto, antes, embalado nos mesmos sonhos, fora malsucedido no Congo (onde as “pessoas ainda estavam dependuradas em árvores”, nas palavras textuais e discriminatórias de “Che” Guevara). Quase morrera na investida, no mesmo objetivo, como se fosse um tatu-do-bem, ou Tarzan branco no meio dos negros, nas palavras de Gamal Abder Nasser, o presidente egípcio. Não é difícil imaginar Fidel Castro prometendo ajuda em homens e armas, na hora certa, mas colhendo de imediato a alegria egoísta por estar se livrando de um poderoso rival nos destinos administrativos de Cuba e no panteão dos heróis socialistas. Posso vê-lo cuidando de denunciar, por diversos meios rapaces, conforme me asseguraram, e conforme denunciou posteriormente Régis Debray, em “Louvados Sejam Nossos Senhores”, o esconderijo do “Che” Guevara nas florestas da Bolívia, que somente ele conhecia. Posso vê-lo agradecendo, em oração, a Antônio Arguedas pela morte do “Che”. Pude ver, ainda em vida, pela televisão, as lágrimas de crocodilo dele, quando recebeu os restos mortais do “Che” no retorno para Cuba, trinta anos depois. Vi que estava sendo derrotado por um morto que vive e reina, do mesmo modo que já tinha sido vencido, quando ambos ainda respiravam. Derrotado em vida por um fidalgo poeta com asas nos ombros, que não se recusava a fincar a adaga no coração do inimigo em nome de um sentimento ambíguo de liberdade, nem tampouco lançar esporas nas ilhargas do Rocinante de Dom Quixote de La Mancha. Vivi o suficiente para também ver o local de captura, morte, extração das mãos e enterro clandestino, e provisório, do “Che”, em La Higuera, na Bolívia, entrar para a história, assim como Pôncio Pilatos entrou no credo cristão, pela porta dos fundos. Rendida, a localidade prestaria inúmeras homenagens ao guerrilheiro estrangeiro assassinado. Delimitou a parte que lhe coube no mundo, mostrando que o legado e a bonança do “Che” se encontram muito mais no campo das ideias românticas fáceis de evocação poética, e não com um fuzil nas mãos (lápis, papel, borracha e reconhecimento, por favor, para o poeta de palavras e gestos). Criaram a “Ruta Del Che”, um verdadeiro campo rural de peregrinação. Descobre-se, na andança, um museu com móveis e objetos pobres de marginal martirizado, inclusive a cadeira dura na qual foi imobilizado antes do assassinato a sangue-frio, após poucos anos antes ter dito, parafraseando José Marti: “Chegou à hora das fornalhas, a partir de agora, veremos só luz”. Porém, a luz que ele viu foi a do clarão das detonações que o mataram. No percurso turístico, estátuas erguidas nas principais artérias do povoado estão acompanhadas de citações, palavras de ordem e de símbolos evocativos do homenageado, a exemplo da estrela solitária que adornava a boina militar. Os motivos lançados por todos os lugares, até mesmo no prédio da Delegacia de Polícia local. Um mausoléu, o local singelo onde ele esteve enterrado como desconhecido por trinta anos; a laje de cimento simples e fria onde o corpo foi exposto e as mãos extraídas para depois serem levadas a Cuba. Tudo bem-disposto ao lado de uma cruz cristã, reveladora da bondade e da crença da comunidade. O local — hoje poderoso relicário de lembranças vivas — onde o corpo foi mostrado à imprensa e fotografado. Até o diário de campanha, cujas frases, a partir dele, são estampadas no mundo todo e inspiram o cancioneiro popular. Vi, também, Fidel Castro, com a sua ideia de valor relativo do homem, terminar os seus dias vestindo roupões da Adidas, tomados “emprestados” das seleções olímpicas de Cuba, uma ilha transformada em grande fazenda nacional estacionada no tempo e com um único proprietário com direito à transmissão hereditária: Fidel Castro. Ele mesmo! Isto, convém realçar em cores tonantes, após mais de meio século de ditadura blasonando sobre a defesa da liberdade, do direito e da justiça. A propósito, por falar em ilha, decorei e jamais esqueci as lições da Professora Rita Rodrigues de Aragão sobre o conceito de ilha: ‘uma porção de terras cercada de água por todos os lados’. Como esquecer o conceito de equador, a linha imaginária que divide o globo terrestre em dois hemisférios, aprendido um pouco mais na frente? Nunca! Ainda no rol das minhas perplexidades estudantis dissecadas no decorrer da vida, passei mais de vinte anos para entender a razão pela qual estudei, no currículo escolar do primeiro grau do Grupo Dom Malan, em Petrolina, na fase de adolescência, determinados temas. Por exemplo, a expulsão dos mouros da Espanha, em 1492, que tratava da libertação da península ibérica da presença muçulmana; e a queda de Constantinopla em 1453, que determinou a derrocada do remanescente império romano do oriente, e o aproveitamento da vencida capital bizantina como sede do nascente império otomano islamita. Estes eventos, de interesse da cristandade, deverão ser relembrados nos próximos milhares de anos, mas somente fizeram sentido para mim quando Osama Bin Laden destruiu as torres gêmeas em Nova Iorque, em 2011. Depois, quando, primeiro, Abu Musab al-Zarqawi, e em seguida, Abu Bakr al-Baghdadi, estipularam, em diferentes momentos, as bases do Estado Islâmico do Iraque do Levante, ora em estado de dormência. Muito embora tardiamente, a história entrou arrombando a porta do meu entendimento”.
Continuando…sem perder o encadeamento lógico do início do capítulo.
Em meados de novembro de 1972, quando os relatos da guerrilha do Araguaia pespontavam tímidos nos jornais, José Marcelino da Silva alcançou a condição elevada de militante político além dos limites do campus universitário. Não sabia, por completo, o que esperavam dele, assim como ele próprio não compreendia por inteiro as consequências da sua decisão. O fato é que se alistara na Liga Revolucionária Soteropolitana (LRS) — uma cisão/dissidência do setor universitário do Partido Comunista Brasileiro (PCB) —, entidade clandestina afiliada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), este também uma ramificação desgarrada do partidão, o PCB. A palavra — “dissidência” — ficou arraigada na sua memória e faria parte do seu vocabulário cotidiano. Anos depois, navegando por temas amenos e áreas mais seguras, saboreando um crustáceo cozido com azeite de dendê, no largo do Rio Vermelho, o suor correndo no rosto cheio, disse ao companheiro de mesa, quase se engasgando nos próprios líquidos: — Esse restaurante de camarão gordo aqui, é uma dissidência do antigo Rei da Moqueca.
Na oportunidade, em meados de novembro de 1972, atendera ao convite de Marcos, que passou a ser o único elo entre ele e a organização. Este informara-o de que fora incumbido da primeira missão oficial após o ingresso formal. O encargo era receber um companheiro em fuga, oriundo de São Paulo, entregar um volume e depois dar guarida segura na cidade de Salvador. Por enquanto, apenas uma atividade secundária de apoio da organização, comunicara-lhe Marcos, em tom de desculpa, quase pesaroso.
Então, ele foi andando sob o sol empinado no meio do céu aberto, azul da cor do mar. Meio anfitrião e meio segurança, raquítico, com apenas cinquenta e dois quilos (poucos dias atrás, tinha sido rejeitado como doador de sangue, porque não tinha “caixa de peito boa”, segundo intuiu apenas com o olhar privilegiado, e esclareceu, o diligente funcionário do Hospital Santa Izabel). Tão logo entrou no bairro das Sete Portas e percorreu o caminho que margeava o centenário mercado popular que dominava o largo e homiziava as ofertas e demandas, avistou na frente, na altura da comunidade empobrecida do “Pela Porco”, a silhueta da velha estação rodoviária de Salvador. Indeciso. Dirigiu-se para lá com passos amarrados de quem não queria chegar nunca. Estava com temor. Ademais, como se não bastasse, negligenciava a missão dada como algo menor, que não valia o risco a ser enfrentado. Como se fosse um providencial refúgio, uma ideia lhe irrompeu assim de repente na cachola, abarcando um fato bem corrente naquele tempo.
“Ninguém precisava ter ido ao espaço sideral para dizer que a terra é azul”, pensou. Ele acreditava, com todas as suas forças, que as pessoas não atentavam para o fato, mas a cidade de Salvador, Bahia, era também completamente azul na parte da tarde. Um azul anil intenso, que vinha do firmamento e chegava até mesmo a doer os olhos de quem tinha alma poética, ou mesmo dos que não a possuíam. “Iuri Gagarin perdeu tempo em ser o primeiro homem a chegar ao espaço extraterrestre e dizer para o mundo que a Terra é azul. Bastava ter vindo olhar as azuladas tardes baianas de Salvador, salpicadas de muitos tons de azuis”, concluiu para si próprio, serpenteando o andar, agora com passos largos, para evitar os esgotos ao ar livre e os arbustos que invadiam a vereda irregular que levava ao fundo do terminal rodoviário interestadual. O ônibus não deve ter chegado ainda, pensou, não estou vendo enxame de gente. Ele contava se misturar com as pessoas para receber, despercebido, Roberto Penedo dos Santos, que vinha de São Paulo. Conheceram-se de vista, muito rapidamente, há um ano, quando participaram de um encontro programado pela União Nacional dos Estudantes-UNE. Aquele moço magro, alto, de aparência doentia e gestos comedidos de seminarista, interessou-lhe depois de discursar sobre O Papel dos oprimidos na nova igreja de Cristo, em que citava constantemente a Encíclica Pacem in Terris, de 1963, do Papa João XXIII. Criticava a tradição capitalista do Brasil, em que “poucos enriqueciam em detrimento da grande maioria”, e propunha, como meio de se alcançar a paz social, uma doutrina católica não convencional de desapego e distribuição de terras, em contraposição com a posição conservadora do clero brasileiro. Ele era, naquela ocasião, frade dominicano e estudante de teologia da Universidade de São Paulo e guardava afinidade com a Igreja católica progressista e os movimentos de libertação comprometidos com a chamada “opção povo”. Segundo depoimento dado, admirava imensamente o trabalho pastoral de Dom Helder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, religioso que gostava de dizer: “É mais fácil chamar alguém de comunista ou subversivo do que dividir o pão, mesmo dormido e duro”.
Apesar de serem ligeiramente conhecidos, ele tentou se desvencilhar do encargo logo no primeiro momento em que tomou conhecimento da incumbência. Tratava-se de dar apoio a uma pessoa fugindo dos órgãos de segurança do regime, e ele nem mesmo tinha ciência do conteúdo do embrulho pesado que levara para entrega. Não sabia no que estava se metendo, mas isto não o impediu de se encontrarem como se fossem velhos amigos, após checarem a idiota senha de segurança combinada, de autoria de José Marcelino da Silva, que dizia: “Quando dois se encontram na Bahia”. A contrassenha também atendia ao mesmo nível de babaquice: “A vitória acontece”. Ambos, aflitos e apressados, parecendo estarem atrasados para algum compromisso importante e urgente, muito rapidamente apanharam, no Largo das Sete Portas, um ônibus urbano. Partiram em direção ao ponto final, na Praça da Sé, levando como bagagem de viagem do recém-chegado, consistente apenas em uma pequena maleta de estrutura de madeira compensada forrada com lona cinza, na qual foi alocado o pacote que lhe foi entregue. José Marcelino da Silva notou, com certo pesar e crescente medo, a pequenez e a pobreza da maleta do recepcionado, que estava meio vazia, com a lona balançando sob os solavancos do ônibus. Percebeu a gritante diferença entre a pessoa que ele via, agora, e aquela outra que conhecera no ano passado, que dominara a plateia com uma palestra tão interessante, colhendo efusivos afagos dos presentes. Os olhos do recepcionado pareciam perdidos e os olhares temerosos, circundantes, demonstrava insegurança; o semblante indicava um coração anuviado de dor; a barba por fazer, o corpo exalando um odor acumulado por dias sem tomar banho; a vestimenta puída e apertada, como se tivesse sido tomada de assalto de um adolescente franzino. Tudo era indício do clima de improvisação e urgência que caracterizava alguém em rota de fuga, em estado de clandestinidade. Ele era, também, bem mais velho do que lembrava José Marcelino da Silva. Até o refrigerante que ele comprara apressado na estação rodoviária, acompanhado de uma “coxinha” enrugada e um ovo cozido — rosa artificial — de galinha, era bizarro: Cajuína de Uva. Quem bebe Cajuína de Uva, a não ser uma pessoa correndo acelerado da polícia?
Ele era um cúmplice indesejado, mas não podia negar que nutrisse simpatia pela figura e pela condição do sujeito.
Tentou ser amável, na medida da possibilidade:
— Fique tranquilo. Vamos primeiro ao DDF e depois levo você para uma pensão que conheço lá no Pelourinho. Lugar seguro.
— DDF, o que é isso? — Indagou Roberto Penedo dos Santos.
— Departamento de documentos frios — disse José Marcelino da Silva, ensaiando uma tímida demonstração de alegria e bom humor. Desceram do ônibus na movimentada Praça da Sé, defronte da loja “A Primavera”, de instrumentos musicais, e se misturaram no meio dos apressados transeuntes. Dirigiram-se, com passos rápidos, em direção ao Terreiro de Jesus, pelo lado do conjunto de construções da primeira faculdade de Medicina do Brasil e da primeira Catedral Basílica de Salvador, de compromisso da Companhia de Jesus. Não se importaram com os sucessos pasteurizados e efêmeros da jovem guarda, que tocavam nas inúmeras casas de vendas de discos musicais na área. Nem tampouco observaram, ao passarem na frente da catedral, a imagem dos três Santos jesuítas, vestidos com sotainas, defensores do templo: São Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus; São Francisco Xavier, soldado que se tornou grande missionário e evangelizou o Japão e a China. Também, São Francisco de Borja e Aragão, aristocrata espanhol, considerado “Grande de Espanha”. Este último, abandonara a efemeridade faustosa da corte para servir à eternidade, através da Companhia de Jesus, dando excepcional impulso às missões jesuíticas na América, trazendo para os índios ímpios a catequese cristã da civilização do velho mundo.
Visavam, no caminhar ligeiro, alcançar o largo de São Francisco. Ambos perceberam, com interesse disfarçado, as prostitutas que já aventuravam em busca de clientes dispostos a enfrentar uma gonorreia na zona de baixo meretrício, encravada no Pelourinho, núcleo histórico depauperado. José Marcelino da Silva, inconvenientemente bem açulado com a presença das “mulheres de vida fácil”, ouviu nitidamente e riu baixinho, quando uma delas — volumosa, cheia de tecidos adiposos que se sobressaíam exitosos das vestes curtas e apertadas — comentou com a parceira: “Homem sem carro é homem sem pica”.
“Escutou a filosofia avançada do puteiro?”, ele perguntou a Roberto Penedo dos Santos, na altura do Cruzeiro de São Francisco. Porém, este não havia escutado e ele deixou para lá, pois estavam apressados. Guardou a informação para si, inclusive quando ouviu as mulheres de muitos amores dizerem: “Venham cá, meus amores queridos”. Se tivesse tempo sobrando, e muito certamente embalado pelos ventos que sopravam do comunismo internacional, com certeza indagaria, como já fizera outras vezes: “Quanto é essa xoxota operária?”. Uma vez ouvira como resposta, a que mais gostou, de uma prostituta de corpo com cheiro de pinho-sol e sexo aromatizado com bosta de galinha: “É pelo pacote. Você paga, pega o que puder, mas aviso logo que na sacanagem vale tudo”. Naquela oportunidade, ele adentrara na área do Maciel em busca de vagina de ordem remunerada, visando transa de comportamento binário (entra e sai), e tinha em mente “super peitos na minha boca”, o que não era um pensamento nada incrível para quem tinha um gibi de Superman guardado no bolso.
Apertaram o passo. Atravessaram o largo de São Francisco, passando por diversas funerárias bem ornamentadas de motivos — tinha, até mesmo, miniaturas de caixões de defuntos — que lembravam, evidentemente, o paradeiro final só com passagem de ida (“bela lembrança!”, pensou José Marcelino da Silva). Em uma delas, postado ao lado da porta, um velho alquebrado vendia quebra-queixo. Entraram na igreja de São Francisco, sentando-se no meio da nave central, em um dos bancos de madeira de mogno reservados aos fiéis, logo após terem feito um super-rápido ritual do sinal da cruz, completamente censurável aos olhos de um católico atento. Acima, divisavam os balcões da igreja, na frente, o altar engalanado, e ao lado, o púlpito cristão. Não demorou muito e surgiu na frente deles, vindo do fundo da nave e pelo meio das colunatas, um sujeito de óculos pesados e com cara de fuinha, que pareceu a Roberto Penedo dos Santos, um sacristão estacionado, esquecido de evoluir no tempo, na vida e até no tamanho. Cumprimentou José Marcelino da Silva, que, a título de senha, disse:
— Estamos rezando ajoelhados.
O sacristão falou, antes de sair rápido:
— Sigam-me.
“Isso foi uma contrassenha?”, indagou-se Roberto Penedo dos Santos, curioso.
Lá se foi o cortejo. O sacristão na frente, portando nas mãos o que parecia um breviário, andando com passos ligeiros de menino lampeiro, e os outros atrás, mantendo distância. Dobraram na rua do lado da Igreja e desceram a ladeira do Cine Pax até entrarem numa transversal à esquerda, no fundo, e acima da Baixa dos Sapateiros. O sacristão parou diante de uma casa antiga, parede-meia com outras laterais e entrou, após burilar na fechadura, com uma chave imensa destacada de um pesado chaveiro. Deixou a porta aberta e depois os dois adentraram cautelosos, olhando por todos os lados.
— Podem entrar, podem entrar — falou o sacristão — vou tirar uma foto dele com a Polaroid e entrego em 30 minutos. Rapidinho!
O sacristão tirou a foto instantânea com a câmera alocada em um canto improvisado como estúdio, o qual dispunha de um fundo de tecido cinza. Logo após, entrou para um sinistro quarto lateral, manuseando o equipamento.
— O nome dele é Tião — disse José Marcelino da Silva — Não gosta de apresentações, mas é gente boa. Trabalha muito bem. O papel usado vem direto do Instituto de Identificação Pedro Mello. É original, as cédulas de identidade em branco foram roubadas algum tempo atrás.
— Roubadas, não, amigo! — contestou, sem muita firmeza, Roberto Penedo dos Santos. Dizemos que elas foram expropriadas. Expropriadas em nome do povo sofrido.
Perguntou, fazendo um sinal para a figura de Tião que se encontrava ao lado:
— Ele é sacristão?
— Não, penso que não! Já foi, hoje ele é muito velho para isso, já perdeu as primícias necessárias à função. Trabalha na secretaria da igreja, assentamentos de batizados e casamentos, certidões, etc. Um “faz tudo” da paróquia. E nosso também, uma mão na roda. Ele se acha um verdadeiro padreco.
— Entendi — disse Roberto Penedo dos Santos, esboçando um pequeno riso.
Menos de uma hora depois, Roberto Penedo dos Santos estreava o seu novo nome: Maurício de Jesus Silveira, nascido em Vitória da Conquista, Bahia. Fora rebatizado pelo próprio preparador do novo jogo de documentos falsos — carteira de identidade e certidão de nascimento firmada por “tabelião”. Após saborear uma água gostosa que pingou com dificuldade de um pequeno filtro de barro, coberto por uma toalha rendada, e montado em cima de um prato Pirex, ele olhou ansioso para os documentos que lhe foram entregues por Tião. O seu rosto esboçou um leve sorriso, insuficiente para demonstrar o tremendo alívio que sentia no íntimo com o novo nascimento civil. Uma nova foto, um novo documento, um novo homem, um novo começo, um novo baiano e socialista, tal como Marighella. Imediatamente, lembrando-se da morte violenta de Marighella, poucos anos atrás, tentou afastar a comparação. Apesar da tentativa, não pode deixar de lembrar das palavras proferidas por este último um pouco antes de morrer. Na oportunidade, parodiando o texto escrito por Che Guevara na Revista Tricontinental de abril de 1967, ele prognosticou, através da Rádio Havana, que o Brasil “seria um novo Vietnã”, após a invasão dos norte-americanos. Um Vietnã imenso, continental e não um grande quartel, chegara a imaginar Roberto Penedo dos Santos, agora cada vez mais descrente. Morreu o homem, foi-se Carlos Marighella, “o Lênin do Brasil”, mas ficaram as ideias imorredouras, as lições dadas, raciocinou Roberto Penedo dos Santos, agora com outro nome. Primeiro, restaram as lições do próprio exemplo de vida, como corajoso combatente da liberdade. Depois, aquelas outras que ele generosamente ofertara ao mundo como teórico da luta armada, através do Mini manual, no qual ensinava o ABC do guerrilheiro urbano, patriota, defensor do povo, da liberdade e da justiça. Paciência; força; adaptabilidade; desprendimento; sacrifício; engajamento ideológico; coragem; audácia; impiedade; implacabilidade; temperança; patriotismo; resistência física; preparação nas artes marciais, no manejo de armas e na condução de automóveis, aviões e barcos; conhecedor das técnicas eletrônicas e de vida moderna; e dotado das capacidades de despiste, falsificação de documentos. Confecção de bombas, preparo de comidas, noções de enfermagem para cuidar de feridos. Estas eram algumas das qualidades necessárias ao bom combatente — o super-herói social, conquistador e inspirador que pretendia afastar a sociedade putrefata e fazer nascer outra mais sadia. Roberto Penedo dos Santos acrescentava, de experiência própria, outras providências que ele mesmo adotava diuturnamente: manter as janelas do imóvel que ocupava sempre fechadas e com as cortinas distendidas, como se estivesse vazio. Dormir vestido e calçado, “com um olho fechado e outro aberto”, pronto para fugir imediatamente na hora da necessidade. “Não podia dormir de touca!”. Foi exatamente esta última medida cautelar que o salvara de ser apanhado na investida das forças da repressão que estouraram o “aparelho” em que se escondia em São Paulo. Por pouco não tinha “caído” nas mãos dos meganhas. Sentia-se também preparado em história, em política internacional, em marxismo-leninismo e na revolução russa de 1917, com destaque especial no partido bolchevique. Além, evidentemente, dos estudos religiosos — era considerado um expert na filosofia agostiniana, conhecedor com profundidade de toda a obra, inclusive as Confissões, que, na sua ótica, não antagonizava com os princípios científicos do socialismo.
Devidamente munido da identificação necessária, Maurício de Jesus Silveira agradeceu a Tião pelo “excelente serviço profissional”, tendo recebido como resposta um “Deus lhe abençoe e fique na paz do senhor, meu irmão”. Ele e José Marcelino da Silva saíram da casa. Retornaram pelo mesmo caminho, subindo a ladeira do Cine Pax. Passaram no terreiro de Jesus e dobraram à direita, uma rua antes da antiga faculdade de medicina. Desceram numa viela completamente tomada por bares e antros de prostituição (Nas intermediações do Maciel, em um deles, nominado de Korpus Drinks, talvez por gozação ou mesmo tentando resgatar um resquício de dignidade, alguém escreveu com pichação: “moças de fino trato”). Iam em direção ao Largo do Pelourinho, mas antes de chegarem na área destampada, triangular, eles adentraram num prédio de estilo colonial barroco português, a exemplo dos demais que compunham a antiga e degradada localidade histórica. Grande parte do casario se encontrava em ruínas, perecendo ao léu e permitindo o nascimento de vegetação oportunista que se apresentava triunfante em contrastantes tufos alegres e bem vistosos. Subiram uma íngreme e rangente escada de madeira, quase em pé, até alcançarem o terceiro pavimento. Detiveram-se na recepção de um que anunciava “Alugam-se quartos para fins diversos”, sendo recebidos por um atendente baixo, magrinho, nos seus sessenta anos, zarolho (“ligação trocada”, diagnosticou com precisão, José Marcelino da Silva) e cujos olhos, através das lentes grossas, confundia os interlocutores. A cabeça dava sinais de que olhava para frente, mas os olhos pareciam dirigir o foco para outra direção. Negociaram um quarto no final do corredor de assoalho de madeira, com uma janela que dava exatamente para o Largo do Pelourinho, de onde podiam ser vistos inúmeros telhados enegrecidos, localizados mais embaixo e além.
— Eu já tinha vindo aqui, antes, para sondar o local — disse José Marcelino da Silva.
Falou, dando continuidade:
— Se alguém se aproximar, você vai saber pelo ranger dos tabuados de madeira. Sempre há a possibilidade de saltar fora por aqui, disse, dirigindo-se à janela e vislumbrando o casario antigo, um mundo de telhados díspares e o mar da grande baía de todos os santos que dormitava azulado lá embaixo, parecendo ao alcance das mãos.
Disse, mais:
— Ainda esta semana vou trazer uma corda de sisal para o caso de necessidade, ou você mesmo pode improvisar uma “tereza” com os lençóis. Você poderá descer escalando, mas, se for o caso, nunca corra para o largo. É o primeiro lugar a que todo mundo vai. Só vale a pena ir se tiver muito movimento. Também não desça no Plano Inclinado que fica do lado do convento. É o que eles esperam que você faça: fugir para a cidade baixa. O melhor é se perder de maneira aleatória pelas ruas, na direção da ladeira do Taboão, mas com os olhos bem abertos. É impossível eles controlarem todas as ruas e becos, são muitos. Você também pode se esconder debaixo de um caminhão. Ninguém acha!
— Certo! — Falou Roberto Penedo dos Santos, embora duvidando um pouco da ideia de se esconder debaixo de um caminhão.
Sentindo-se mais à vontade, enquanto desarrumava a mala, Roberto Penedo dos Santos perguntou, como se estivesse indagando a um conhecedor da matéria:
— Tem acompanhado a nossa luta cristã?
— Sim, sim, quero dizer… um pouco.
— O objetivo, companheiro, é a libertação. Assim, não têm importância as peculiaridades internas de cada grupo envolvido. O importante é a finalidade comum. Meu sonho é ver subsumido em um papel, uma carta de princípios, o compromisso de todas as entidades com a derrubada do governo militar e a restauração da democracia, independente das tendências e aspirações de cada uma delas. Torna-se necessário que todos os movimentos cristãos, como uma das parcelas mais importantes da sociedade, esqueçam suas questões intestinais. Depois, que a junção dos grupos que professem outras doutrinas ou ideologias se dê sem ranhuras capazes de prejudicar o objetivo maior. É este o meu trabalho hoje, uma congregação de mentes e entidades, sem qualquer discriminação. Uma aliança libertadora nacional de diversos matizes.
— Mas a própria igreja católica tem as suas diferenças…
— Principalmente… são séculos, Tavinho (José Marcelino da Silva tinha se apresentado com esse codinome), de prática pastoral e modelo de igreja que, embora teologicamente superado, continua contrário às mudanças. Isto, a despeito das vicissitudes do mundo que ela teima em converter e salvar através de pueris acenos, todos eles fincados em furibundas raízes. É sempre tudo igual! A salvação da alma mediante ensinamentos e sacramentos, como se Deus não tivesse nem aí e tudo dependesse de nós mesmos, do que aprendemos e do que fazemos. Os rituais e a liturgia teatral de convencimento; a evocação da tradição e cultivo da exatidão das fórmulas ortodoxas oficiais; a primazia de uma ordem hierárquica severa, e daí em diante. No fundo, o que conseguimos foi apenas manter o status quo vigente. Pacificamos para conter os impulsos e manter tudo igual, mas para as mesmas pessoas. É desse ponto que surgem as dissidências e os desregramentos. Conseguimos sobreviver ao protestantismo de Lutero, mas nosso fôlego irá acabar se não existir renovação, e falo de renovação viva, pragmática. Pois, a conversão em Cristo tem duas vias. Além da conversão do “eu” íntimo, tem também a imersão do “eu” no social, no bem comum.
— Aquele largo ali — disse José Marcelino da Silva, tentando mudar de assunto e apontando para o lado — é o Largo do Pelourinho, onde tinha uma coluna de pedra para amarrar e castigar os criminosos no tempo do rei. As Ordenações do Reino eram rigorosas e, muitos, eram trucidados. As partes do corpo eram separadas e ficavam expostas para deleite público, após salgadas para durar mais tempo.
Botando a cabeça pela janela, Roberto Penedo dos Santos admirou a ladeira triangular. As pessoas, vistas de cima, desciam de maneira engraçada aproveitando a força da gravidade, mas freando com cautela, inclinadas para trás. Já para subir, a dificuldade era crescente, inclinavam-se para frente, arquejando e olhando para cima, ansiosas para chegarem logo ao destino no alto.
— Do outro lado — afirmou José Marcelino da Silva, apontando para o Largo do Terreiro de Jesus, em que se via um conjunto de igrejas antigas e casarões coloniais degradados, temos a antiga faculdade de Medicina da Bahia. A primeira do Brasil (e, claro, o primeiro curso universitário do Brasil), fundada por Dom João VI quando transferiu o trono português para o Brasil colônia em 1808. Formavam médicos para o rei, familiares e nobres da corte.
José Marcelino da Silva tomou de vez o uso da palavra.
“Veja como a história”, afirmou, “parece alinhavar tudo e deixar os acontecidos todos ligados entre si, como se fossem iguais e reivindicassem presenças ainda hoje. Quando eu era criança, lá em Petrolina, um dos melhores espetáculos públicos para serem apreciados nas feiras livres e praças de todo o nordeste, eram as réplicas das cabeças de Lampião, Maria Bonita e do bando de cangaceiros, em número de onze. Eles morreram emboscados no massacre de Angico, em Sergipe, nos anos trinta, e tiveram suas cabeças decapitadas pela polícia militar. Maria Bonita, já sem a cabeça, teve a calcinha vermelha arriada, as pernas abertas e a vagina espetada com um pedaço de pau de cinquenta centímetros, aplainado com rigor militar. Rapaz, eu morria de medo quando via as pessoas tirarem as cabeças horripilantes das latas de querosene, onde eram mantidas em líquido conservante, vermelho, sanguinolento. Pareciam reais demais, feitas com não sei o quê. Eles iam tirando de uma em uma e colocando em exposição, de preferência na escadaria da igreja, em cima de uma matéria plástica vermelha, formando um quadro do inferno. Lampião sempre na frente, comandando. Pois, bem! Quando cheguei aqui em Salvador, no ano passado, soube que as cabeças reais de Lampião e Maria Bonita, as verdadeiras, tinham sido mantidas aí no museu dessa faculdade para estudos durante mais de trinta anos. Entretanto, durante todo esse tempo, eles não estudaram nada, não chegaram a nenhuma conclusão. As cabeças terminaram adquirindo o status surreal de ‘patrimônio cultural da Bahia’, nas palavras públicas do diretor do Instituto Médico Legal-Nina Rodrigues, e professor catedrático de medicina legal, Estácio de Lima, que batia o pé para não enterrar de maneira nenhuma. Somente três anos atrás, em 1969, é que as cabeças foram finalmente enterradas, e isto, após uma lei do Congresso Nacional, de 1965, que determinara, conforme constou no texto, o sepultamento ‘até quinze dias após a publicação da presente lei’. A lei foi publicada e nada. Antes do sepultamento, o professor Estácio de Lima, em foto histórica, posou para a revista O Cruzeiro com as duas cabeças debaixo dos braços. Essa mesma faculdade de medicina da Bahia, antes de abrigar as cabeças de Lampião e Maria Bonita, havia homiziado a cabeça de Antônio Conselheiro, que fora decepada após a exumação do cadáver e encaminhada para estudos frenológicos. Também não se chegou a qualquer conclusão. Tenho certeza de que escolheram o membro errado do corpo”.
Acrescentou: “Estou lendo um livro sobre Danton, um personagem da Revolução Francesa, ainda começando, mas quando vejo essa questão de cabeças decepadas, tenho a impressão de que o movimento da guilhotina não acabou. Em lugar nenhum do mundo. A verdade é que, se você der mole, eles vão à feira exibir a sua cabeça. Sepultadas as cabeças de Lampião e Maria Bonita, o sucessor do professor Estácio de Lima, também querendo ter um pedaço de cadáver, notável, elegeu logo outra presa que poderá vir a se tornar também um troféu com o qualificativo de patrimônio cultural da Bahia. Trata-se do mutilado de Santa Teresa, apenas o dorso de um corpo encontrado em um beco na Rua do Sodré, sem pernas, braços e cabeça, perto do convento que leva o nome da santificada. Um estranho tronco, parecido com estes dos manequins dos alfaiates, que tem um pé embaixo como base, utilizado para expor paletós. Está há diversos anos sendo estudado no Nina Rodrigues, mas, por enquanto, conforme constou na perícia, que, aqui na Bahia, sempre apresenta o mesmo argumento, descobriram apenas que quem fez o ‘trabalho’ de desarticulação dos membros tinha profundos conhecimentos de anatomia em face da perfeição dos cortes dados. Sei não! Recentemente, teve outro caso de desmembramento no Politeama de Cima, e a mulher, quando acusada de ser especialista em segregação de membros, apenas disse como defesa do seu modo eficiente de cortar: ‘onde era mole, eu passava a faca e pronto’. Ah! Sim! Descobriram, também — não sei como, talvez fazendo exames no ânus, porque fica no tronco, certo? — Que o corpo pertencia a um homossexual já bem relaxado no ofício. Esse nosso professor escreveu muitos livros, debruçando os seus olhares científicos sobre matérias diversas, tratando, desde homossexualismo masculino, até ética médica”.
“Interessante”, concluiu Roberto Penedo dos Santos, correndo para o corredor em busca de sanitário. Mas só existia um. Ficava lá embaixo.
Advogado autônomo
7 mInteressante.Vou aprofundar a leitura