Caraças, João

O ditado diz que a imagem vale mais do que mil palavras. Podia aqui partilhar algumas das muitas que testemunham uma fração dos momentos em que nos cruzámos. Mas não. Prefiro escrever as tais mil palavras porque será nelas que encontrarei a única forma de amenizar a frustração e lembrar o inefável ser humano que hoje partiu. Apesar da elevada estima, respeito mútuo e experiências vividas, o João não era um amigo chegado. Um amigo próximo é aquele que partilha a casa, a família e os muitos momentos pessoais que povoam os anos que vão passando. Tendo em conta alguns dos nossos interesses comuns, talvez pudéssemos ter repartido mais a esfera pessoal, todavia o trabalho norteou quase sempre a nossa convivência. Consultei-o em vários momentos e tive o apanágio de retribuir algum conhecimento e experiência. Assim ficámos. A minha história com o João remonta há pouco mais de 10 anos. Conhecemo-nos e trabalhámos em projetos conjuntos ainda durante o XVII Governo Constitucional. Durante essa legislatura e a seguinte foram vários os momentos em que o trabalho nos uniu. Aí testemunhei uma pessoa com uma fibra e determinação duras de roer. O verbo que o definia era o “fazer”. Mais tarde, depois de um orçamento participativo da Câmara Municipal de Lisboa, começámos a ver-nos com mais frequência. Apoiei e acompanhei o seu ímpeto de construir uma incubadora exemplar. Fechados num gabinete de um escritório na Rua Castilho, discutimos a marca, o seu propósito e como íamos envolver os públicos que poderiam influenciar o sucesso daquilo que se viria a chamar Start Up Lisboa. A partir desse momento o João não parou mais. Deu tudo o que tinha para dar. E o resultado é o que vemos hoje: uma organização povoada de empreendedores de várias nacionalidades, de parceiros institucionais, empresariais e académicos ativos, da qual já saíram projetos que hoje são grandes empresas multinacionais. Após o seu magnífico contributo para a criação e edificação da incubadora de Lisboa, onde a sua marca pessoal permanecerá intacta para a posteridade, entrou numa nova aventura: assume a pasta da Secretaria de Estado da Indústria no XXI Governo Constitucional. Inconformado por natureza, com um trato personalizado e desprovido de grandes polimentos institucionais, trouxe uma lufada de ar fresco ao modelo relacional entre o Governo e as empresas. Como é usual entre os que modernizam e tentam mudar o sistema, não agradava a todos. Esse constrangimento era mais notório em dois tipos de pessoas: as que valorizavam o estatuto em prol da inovação e as que por natureza se dedicavam às tricas político-partidárias. Defendeu o empreendedorismo e a Indústria 4.0 como alternativas para dinamizar e recuperar a frágil situação financeira que Portugal viveu no pós troika. Por isso mesmo ganhou um título magnífico: o “ministro das start up”. Aprendeu muito e soube partilhar com mestria o seu conhecimento e inspiração. Voltámos a cruzar-nos com bastante mais assiduidade, aí já na edificação da primeira edição do Web Summit. Que máquina de trabalho era o João. Trocámos muitas mensagens de madrugada, falámos vezes sem conta, alinhámos interesses comuns em nome da concretização do maior evento português, um dos maiores do mundo no setor da tecnologia e empreendedorismo. Mais uma vez, os resultados estão aí à vista de todos. Portugal tem hoje um legado, uma pegada e influência sem precedentes no que ao empreendedorismo concerne. E foste tu, João Vasconcelos, em conjunto com uma equipa muito dedicada que conseguiram concretizar esse feito. Há algum tempo tiveste um susto, abrandaste, mas não o suficiente. Hoje a notícia foi a pior de todas. Já não estaremos juntos daqui a quatro semanas em Alter do Chão. E não me venham com paninhos quentes de teres partido como viveste. Caraças, João. Foi cedo demais.