Carta de direitos fundamentais na era digital
Já não era sem tempo! Entregámos o projecto no dia 15.
PROJETO DE LEI N.º ___/XIII
APROVA A CARTA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ERA DIGITAL
1. Em 2018, pela primeira vez, mais de metade da Humanidade passou a ter acesso à Internet, aprofundando a grande transformação digital começada no final do séc. XX. No entanto, muitos milhões de homens e mulheres continuam em situação de ciberexclusão, o que pode comprometer a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável e da Agenda 2030, designadamente a erradicação da pobreza e da fome, o combate às desigualdades, a educação de qualidade e a promoção da saúde para todos.
As organizações internacionais têm vindo a dar crescente importância à discussão de temas relacionados com as consequências da revolução digital. No seu recente relatório sobre o progresso alcançado na implementação das conclusões da Cimeira Mundial sobre a Sociedade de Informação a nível regional e internacional, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, assinalou a urgência de combater as desigualdades entre países e entre mulheres e homens, enfrentar as mudanças disruptivas no mundo do trabalho, na economia e na educação e pôr o potencial das tecnologias ao serviço da realização dos direitos humanos.
Em julho de 2018 foi criado, também por iniciativa do Secretário-Geral da ONU, um Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital, com a missão de elaborar, no prazo de nove meses, um relatório de estratégia sobre o futuro digital à escala global.
Em domínios fulcrais como a aprendizagem automatizada, a inteligência artificial e a decisão baseada em algoritmos as vagas de inovação suscitam desafios ainda sem resposta e são muito mais céleres que o seu enquadramento jurídico a nível internacional e nacional.
2. Apesar de diversos esforços, não existe ainda uma Carta Internacional dos Direitos Digitais, aprovada no âmbito da ONU. Foram ao longo do tempo surgindo iniciativas de alcance desigual como a “Carta das Comunicações do Povo" (1999), a "Carta dos Direitos da Internet" da Associação para a Comunicação Progressista (2001-2002) e as Declarações de Princípios das Cimeiras Mundiais da Sociedade de Informação (2003/2005/2008). Na mesma linha, Tim Berners Lee pediu a elaboração de uma Magna Carta da Internet no quadro da iniciativa "A Web que queremos".
Um estudo que mapeou 30 iniciativas tendentes a afirmar um “constitucionalismo digital” apurou que 73% dessas Declarações de direitos digitais são de âmbito internacional (22 de 30) e 2 são de âmbito regional ("Declaração Africana sobre Direitos e Liberdades da Internet" e "Declaração do Conselho da Europa sobre Princípios de Governança da Internet"). Seis textos aprovados ou em preparação têm um âmbito nacional (Itália, Brasil, Filipinas, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos) com destaque para o Marco Civil da Internet.
Em 2011, a ONU deliberou incluir no elenco dos Direitos Humanos o direito à Internet. Em documentos sucessivamente aprovados desde então foram densificadas diversas dimensões da era digital, bem sintetizadas em resolução do Conselho de Direitos Humanos
Muitas propostas de “Declaração de Direitos da Internet” surgidas desde o advento da Net resultam do trabalho de organizações da sociedade civil, da cooperação entre Estados ou da iniciativa de instituições internacionais. A dimensão transnacional também é dada pela participação de organizações como a Electronic Frontier Foundation (EFF)e a Association for Progressive Communications. Merecem destaque a "Declaração Multisetorial da NETMundial" e a aprovada pelo "Fórum de Governance da Internet " que elaborou em 2014 uma sugestão de "Carta de Direitos Humanos e Princípios para a Internet".
Proliferaram, entretanto, os instrumentos jurídicos vinculativos que à escala de toda a UE definiram políticas e direitos, com destaque para a Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, o Regulamento Geral de Proteção de Dados e o Código das Comunicações Eletrónicas. Este último inclui um vasto conjunto de novas regras para o sector, visando a implantação rápida e alargada das redes 5G e de outras tecnologias da próxima geração em toda a Europa e uma maior proteção dos consumidores, abrindo novos caminhos e acarretando novos problemas.
Ao desafio de construir um mercado único digital somam-se outros, não menos ambiciosos como o de propiciar melhor democracia e novas formas de participação cívica em sociedades livres do pesadelo orwelliano.
3. Portugal participa nesse processo, registando de forma sistemática melhorias na sua posição. Os direitos consagrados desde 1996 formam um quadro já significativo, mas disperso e desigual. Na própria revisão de 1997 o artigo 35.º da Constituição da República foi enriquecido com o aditamento de uma norma que garante “a todos” “o livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras", consagrando o primacial direito de livre acesso a redes digitais.
Os signatários consideram que não se justificaria fazer uma lei compilatória das normas que na ordem jurídica portuguesa consagram direitos. Ao invés, haverá vantagens em enunciar um elenco diversificado e abrangente, que inove, clarifique e valha também como programa de ação vinculativo dos órgãos de poder.
Assim, nos termos constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, abaixo-assinados, apresentam o seguinte projeto de lei:
Artigo 1.º
Direitos fundamentais na era digital
1. A República Portuguesa participa no processo mundial em prol da transformação da Internet num instrumento de conquista de mais liberdade, mais igualdade e mais justiça social e num espaço de promoção, proteção e livre exercício dos direitos humanos.
2. As normas que na ordem jurídica portuguesa delimitam e protegem direitos, liberdades e garantias são plenamente aplicáveis no ciberespaço.
Artigo 2.º
Direito de livre acesso em condições de igualdade
1. Todos têm o direito de livre acesso à Internet, independentemente da sua condição pessoal, social, económica e do local de residência, sendo garantido em todo o território nacional o acesso universal, geral e não discriminatório à conectividade de qualidade, em banda larga e a preço acessível.
2. Constitui obrigação do Estado:
- a) Promover o uso autónomo e responsável da Internet e o livre acesso às ferramentas de informação e comunicação;
- b) Definir e executar programas de promoção da literacia digital nas diversas faixas etárias e da igualdade de género nas redes de uso público.;
- c) Assegurar a eliminação de barreiras ao acesso de pessoas portadoras de necessidades especiais a nível físico, sensorial ou cognitivo;
- d) Reduzir e eliminar as assimetrias regionais em matéria de conectividade;
- e) Garantir a existência de pontos de acesso gratuitos nos espaços públicos, como telecentros, bibliotecas, centros comunitários, hospitais, centros de saúde, escolas e outros serviços públicos.
Artigo 3.º
Liberdade de expressão
1. Todos têm o direito de procurar, obter e partilhar informação através da Internet de forma livre, sem qualquer forma de censura.
2. A moderação de conteúdos gerados por utilizadores em plataformas de comunicação digital deve obedecer aos princípios e às regras recomendadas pelo Relator Especial da ONU para a Liberdade de Opinião e Expressão (A/HRC/38/35) e os Princípios de Manila sobre a responsabilidade dos Intermediários.
3. Os utilizadores de plataformas de comunicação digital e de redes sociais têm o direito de beneficiar de medidas públicas de proteção contra o discurso de ódio e a apologia do terrorismo, do racismo e da xenofobia e, em geral, contra o cibercrime.
Artigo 4.º
Direito a informar e a informar-se
1. Todos têm o direito de pesquisar e recebe informações e opiniões, e de difundi-las sem limitação de fronteiras, por qualquer meio de comunicação digital.
2. O Estado português aplica o Plano Europeu de Luta contra a Desinformação e assegura aos cidadãos o exercício do direito de participação política e a liberdade de reunir e deliberar em fóruns digitais de debate, bem como de usar meios de comunicação digitais para a organização e divulgação de ações cívicas de protesto ou a sua realização na Internet nos termos previstos na deliberação 38/11 aprovada pelo Comité dos Direitos Humanos da ONU em 6 de julho de 2018.
Artigo 5.º
Direitos de reunião, manifestação, associação e participação
1. A todos é assegurado o direito de reunião, manifestação e associação na Internet e através dela, designadamente para fins políticos, sociais e culturais.
2. Os órgãos de soberania e de poder regional e local dotam-se de plataformas digitais e de outros meios eletrónicos que facilitem o exercício, sem custos para os cidadãos e organizações sociais, dos direitos de participação previstos na Constituição da República e nas leis.
Artigo 6.º
Direito à privacidade digital
1. Todos têm o direito à privacidade online, incluindo o direito de usar criptografia e o direito ao anonimato, nos termos da lei.
2. O direito à proteção de dados pessoais, incluindo o controle sobre a sua recolha, registo, conservação, consulta, difusão, interconexão, apagamento e demais tratamentos, é assegurado nos termos da Constituição da República, dos regulamentos europeus e das leis aplicáveis.
3. É garantida aos utilizadores da Internet a segurança e o sigilo das suas comunicações, não podendo as mesmas ser intercetadas ou decifradas fora dos casos previstos na lei processual penal e com autorização de um juiz.
4. É proibida e sancionada nos termos da lei penal a utilização de malware, ransonware, spyware e de qualquer outra forma de manipulação de software, computador, rede ou sítio na Internet.
Artigo 7.º
Direito ao bom uso da inteligência artificial e de robôs
1. Os processos decisionais algorítmicos devem ser transparentes, não podem ter efeitos discriminatórios, devendo ser precedidos de avaliação de impacto e sujeitos a escrutínio humano, aplicando-se as recomendações sobre Inteligência Artificial e Direitos Humanos aprovadas em 27 de fevereiro de 2019 pela Conferência de Helsínquia, organizada pelo Conselho da Europa e as linhas de Orientação sobre o uso da Inteligência artificial apresentadas pela Comissão Europeia em 1 de abril de 2019.
2. São aplicáveis à criação e uso de robôs os princípios de beneficência, não-maleficência, do respeito pela autonomia humana e pela justiça, bem como os princípios e valores consagrados no artigo 2.º do Tratado da União Europeia, designadamente a não estigmatização, a transparência, a confiança, a lealdade, a responsabilidade individual e a responsabilidade social.
Artigo 8.º
Direito à neutralidade da Internet
1. A todos é garantido que o acesso à Internet se faça em condições iguais às dos demais utilizadores, sem que seja dada prioridade discriminatória a determinados conteúdos, nem filtragem ou controle de tráfego por motivos comerciais, políticos ou outros.
2. O disposto no número anterior não impede a adoção de medidas de gestão de tráfego necessárias em situações de emergência.
Artigo 9.º
Direito à literacia digital
1.Todos têm direito à educação para a literacia digital e ao incentivo do Estado a uma cultura de uso da Internet conforme à Constituição e contrária à violência, ao ódio e demais formas de violação de direitos humanos.
2.O serviço público de comunicação social audiovisual contribui para a educação digital dos utilizadores das várias faixas etárias e promove a divulgação da presente lei.
Artigo 10.º
Direito à identidade e outros direitos pessoais
1. Todos têm direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação, à imagem e à palavra, e ao livre desenvolvimento da personalidade, na Internet.
2. É obrigação do Estado o combate à usurpação de identidade e a aprovação de medidas tendentes à boa execução do quadro legal aplicável à identificação eletrónica e aos serviços de confiança para as transações eletrónicas.
Artigo 11.º
Direito ao esquecimento
1.Todos têm direito, nos termos da lei, a requerer e obter a eliminação da lista de resultados obtidos num motor de pesquisa as referências que lhes digam respeito e sejam inexatas, desatualizadas ou por outra razão relevante não devam prevalecer sobre os direitos do requerente.
2. A eliminação da referência nominativa no motor de pesquisa não prejudica o acesso à fonte digital de que esta conste, desde que tal resulte de uma pesquisa que não inclua o nome do requerente.
3. Os titulares de dados fornecidos a redes sociais ou serviços da sociedade de informação similares têm o direito de requerer, em formulário digital simples, e obter em prazo razoável a eliminação dos dados que lhes digam respeito e se tenham tornado obsoletos ou inexatos nos termos do n.º 1.
4. Os dados respeitantes a menores são eliminados sem a limitação prevista no número anterior.
Artigo 12.º
Direito de resposta e de retificação.
1. São garantidos os direitos de resposta e de retificação, aplicando-se aos serviços de comunicação social audiovisual previstos na Diretiva 2018/1808, de 14 de novembro as regras da lei 27/2007, de 30 de julho
2. É obrigatório apor na peça original um aviso e uma hiperligação para o conteúdo enviado.
Artigo 13.º
Direito de atualização informativa
1. A todos é garantido o direito de solicitar aos meios de comunicação social digitais, mesmo que não registados na Entidade Reguladora da Comunicação Social, a divulgação de uma nota de atualização de informação ultrapassada suscetível de gerar danos reputacionais.
2. Da eventual recusa de divulgação, cabe sempre recurso para a ERC.
Artigo 14.º
Direito à cibersegurança
Todos têm direito à segurança dos seus dados, informações e comunicações, devendo o Estado definir políticas públicas que garantam a proteção das infraestruturas e das tecnologias e promover a formação dos cidadãos em matéria de cibersegurança.
Artigo 15.º
Direitos digitais dos trabalhadores
1. Os trabalhadores do sector privado e da Administração Pública têm direito, na utilização para fins não profissionais de correio eletrónico e Internet disponibilizados pela entidade patronal, em condições que garantam a justa composição entre o seu direito à privacidade e a liberdade de gestão e organização que é conferida pela lei à entidade patronal.
2. O estabelecimento de regras de utilização dos meios de comunicação da empresa ou de organismo público devem constar de Regulamento Interno, aprovado após audição estrutura representativa dos trabalhadores, ficando a produção de efeitos dependente da publicitação do respetivo conteúdo e de notificação à Autoridade para as Condições do Trabalho.
3. O acesso da entidade patronal ao correio eletrónico só pode ter lugar em caso de havendo sérios indícios de prática de infração disciplinar, devendo limitar-se à visualização dos endereços dos destinatários, o assunto, a data e hora do envio, podendo o trabalhador assinalar a existência de mensagens de natureza privada que não pretende que sejam lidas pela entidade empregadora, caso ainda não tenha tido a oportunidade de as eliminar ou arquivar em pasta própria.
4. O trabalhador que cesse funções tem o direito de ver eliminada a conta de correio eletrónico que lhe foi atribuída, e que pessoalmente o identifique, depois de serem retiradas do arquivo digital as mensagens de cariz pessoal, assegurando-se que o mesmo endereço eletrónico não seja ulteriormente atribuído a outro trabalhador.
Artigo 16.º
Direito de desligar dispositivos digitais
1. Todos têm o direito de desligar dispositivos digitais fora do horário de trabalho, por forma a garantir o direito ao descanso e ao lazer, a conciliação da atividade profissional com a vida familiar, e a intimidade da vida privada, sem prejuízo dos contactos a realizar pelo empregador em casos de urgência de força maior ou no quadro de relações profissionais de confiança pessoal.
2. A política de utilização de dispositivos digitais aplicável às várias categorias de pessoal, incluindo quem preste serviço à distância deve ser definida nos termos do n.º 2 do artigo anterior.
Artigo 17.º
Direito à intimidade no local de trabalho
1. A utilização de captação de imagens à distância no local de trabalho é permitida apenas para detetar situações ou acontecimentos que de forma acidental ponham em causa a segurança de pessoas e bens, não podendo ter a finalidade de controlar o desempenho profissional.
2. A captação de sons só pode ler lugar em situações de risco para a segurança de instalações, pessoas e bens, e com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade.
3. As condições de utilização dos equipamentos devem ser estabelecidas por escrito, seja por via contratual ou regulamento interno.
4. O disposto nos números anteriores não obsta a que imagens e sons captados por equipamentos instalados constituam meios de prova quando esteja em causa ilícito disciplinar grave ou infração penal.
Artigo 18.º
Direitos digitais na contratação coletiva de trabalho
Os instrumentos de contratação coletiva de trabalho podem incluir normas que ampliem e densifiquem os direitos previstos na presente lei, reforçando a proteção dos trabalhadores.
Artigo 19.º
Direito à proteção contra a geolocalização abusiva
1. Todos têm direito à proteção contra a geolocalização não consentida, só podendo a mesma ter lugar nos casos legalmente previstos nos domínios da segurança, defesa e investigação criminal.
2. Os metadados respeitantes a pessoas obtidos através dos meios de geolocalização não podem ser tratados, designadamente com recurso à inteligência artificial, fora dos limites previstos na legislação em vigor sobre proteção de dados pessoais.
Artigo 20.º
Direito ao testamento digital
1. São aplicáveis aos dados na posse de prestadores de serviços da sociedade de informação respeitantes a pessoas falecidas as regras seguintes:
- a) Os herdeiros têm o direito de decidir sobre o destino a dar aos conteúdos em linha produzidos pelo de cujus;
- b) Quando esteja em causa pessoa menor, cabe aos seus representantes tomar as decisões sobre o futuro do património imaterial deixado em suporte digital.
- c) As pessoas com imputabilidade diminuída são representadas nos termos da lei civil.
2. A supressão de perfis pessoais em redes sociais ou similares não pode ter lugar se tiver sido deixada indicação em contrário do titular do direito.
Artigo 21º
Direitos digitais face à Administração pública
Todos têm os seguintes direito digitais face à administração pública:
- a) Direito à adoção de procedimento administrativo digital;
- b) Direito à comunicação e informação digital relativamente a procedimentos e atos administrativos;
- c) Direito à assistência pessoal no caso de procedimentos exclusivamente digitais.
Artigo 22.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no primeiro dia do mês subsequente ao da sua publicação.
Palácio de São Bento, 15 de maio de 2019
Os Deputados,
Carlos César
José Magalhães
Pedro Delgado Alves
Filipe Neto Brandão
Bacelar de Vasconcelos
Porfírio Silva