Carta sobre azul: o designer como autor.

Existem muitas etapas no campo editorial literário. Existe a produção do texto, edição, revisão, imagens, ilustrações, diagramação, projeto gráfico exportado para impressão e/ou digital, a própria produção do livro em si, número de páginas e de cadernos, papéis, acabamentos. Dessas etapas, a parte gráfica é regularmente associada ao design.

No entanto, quando o designer assume funções multidisciplinares, como é o caso da autoria de textos e discursos, sendo verbais ou não-verbais, e da edição da publicação, a tipologia editorial assume características gráficas, subjetivas e metodológicas em que o sensível toma forma robusta de acordo com as escolhas editoriais.

Foi acompanhando o "Ritos do Nascer ao Parir", da Mana Bernardes, que nasceu a ideia da cor como personagem do livro. Nesse exemplo, Mana escreve sobre se embrenhar dentro das impressoras e potes de tinta com toda a equipe da gráfica para garantir que o vermelho da capa do livro fosse o tom correto, o vermelho-sangue verdadeiro. Há um carinho muito grande por ela ter participado do nosso primeiro livro, o Velhas Lembranças, Memórias de Vida.

Essa ideia do designer autor, editor, artista gráfico e alquimista, combinando pigmentos em níveis milimetricamente calculados, envolvido em um processo gutural e figurativamente ser engolido pelas máquinas para alcançar uma sutileza, me parece um verdadeiro ato de amor pela mensagem escolhida e a comunidade a qual ela representa.

"Educar, Cuidar e Nutrir" é um projeto cultural que celebra a inclusão de alimentos orgânicos em centros de educação infantil na Zona Leste de São Paulo, baseando-se nos 30 anos de experiência do CREN - Centro de Recuperação e Educação Nutricional. O projeto inclui a publicação de um livro de fotografia, gravuras e relatos de memória oral. Crianças com idades entre 1 e 4 anos participaram de exercícios de experimentação gráfica, e entrevistas com mulheres agricultoras, cozinheiras, mães e professoras foram registradas para criar um memorial afetivo sobre a importância da alimentação saudável.

A iniciativa visa conscientizar escolas públicas, população e autoridades sobre a importância da alimentação orgânica comunitária, culminando em dois eventos de lançamento do livro e exposição. Para o livro "Educar, Cuidar e Nutrir", o designer como autor trouxe uma característica especifica ao projeto: a experimentação. Experimentação com oficinas pedagógicas para obter a perspectiva de crianças, experimentação com materiais e experimentação com a luz solar e a cor azul.

Considerando o projeto gráfico e editorial, a cianotipia tomou a frente. Uma técnica de revelação de fotografias de forma artesanal, utilizando uma solução fotossensível de ferricianeto de potássio e o citrato férrico amoniacal aplicada ao papel Hahnemühle de 220g/m². Ao secar, o negativo da fotografia desejada, impresso em acetato, é posicionado sobre o papel, e os dois elementos são dispostos entre duas placas de vidro, um embaixo e outro em cima, para garantir a aderência do acetato ao papel.

Esse “sanduíche” é exposto à luz solar direta ou luz negra, sendo que neste caso foi utilizado um refletor de luz negra de 300w de potência, durante 20 minutos contados. Após a exposição, o papel é lavado por 10 minutos para a remoção da parte amarelada da solução, deixando apenas gravado o azul ciano. Em suma, essa técnica foi particularmente escolhida por se tratar de algo necessário ser exposto à luz para que possa existir em sua plenitude, que em sua poesia dialoga diretamente ao trabalho empenhado para fazer florescer o CREN, a horta comunitária, a produção das Mulheres do G.A.U., as crianças e todos os envolvidos nisso que foi testemunhado.

Os materiais obtidos trouxeram a consolidação de algo que já é perceptível ao estar em um ambiente de partilha. O fortalecimento dos indivíduos e dos laços em todo esse arranjo proposto, é refletido na fala de cada entrevistado e de cada gravura. Proposto por profissionais e pesquisadores do campo do design, o projeto é desenvolvido integralmente por meio da perspectiva do design e sua multidisciplinaridade, relacionando simultaneamente a produção e viabilização de artefatos (tanto no design gráfico como no design de produtos e serviços), a semiótica para a comunicação, a experimentação gráfica e o processo de curadoria, aplicando os conhecimentos da área para alcançar os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável por meio da ação cultural. 

Em um cenário onde as fronteiras do design se tornam difusas, a cultura emerge como uma aliada poderosa para a sustentabilidade, reunindo múltiplas linguagens como fotografias, vídeos, gravuras e ilustrações para novas possibilidades de mundo. A interpretação das manifestações culturais e a produção cultural estratégica são destacadas como elementos essenciais.

Compreendendo a erradicação da fome como um objetivo fundamental até 2030, torna-se também papel do design comunicar paradigmas emergentes que mostram outros caminhos possíveis para uma sociedade justa e perene. No entanto, a autoria única também passa a convidar a presença de coletivos de artistas, autores e designers difusos, estes que praticam os processos de criação do design mesmo que de modo informal, constituindo uma grande rede colaborativa de criativos, de diversas idades e vieses, oferecendo um resultado também coletivo.

A jornada do designer autor do livro "Educar, Cuidar e Nutrir" reflete uma dedicação e um carinho semelhantes aos do "Ritos" em sua busca pela cor vermelha perfeita para a capa de seu livro. O processo de mergulho no universo das máquinas e tintas para garantir que o azul fosse fiel e verdadeiro, revela o envolvimento de todo um coletivo de projeto com a cor das cianotipias, que permeiam todo o livro.

A escolha da cianotipia, com sua técnica artesanal e sua necessidade de exposição à luz para revelar a cor, simboliza a atenção meticulosa e o amor pelo processo criativo, que contou com mais de 6 meses de testes e experimentações para o resultado apresentado. Assim, "Educar, Cuidar e Nutrir" compartilha uma essência ao leitor: transformar os relatos de memória do quotidiano em sublime, garantindo que cada detalhe, cada cor e cada pessoa no livro conte uma história de dedicação e afeto.

A cor, além de componente visual, faz-se uma expressão vibrante da missão e da mensagem que transcende as páginas, unindo arte e significado em uma celebração tangível do cuidado e da nutrição.