Cenas antológicas.
Ontem à tarde, encontrei um amigo que dizia estar com a alma lavada.
Porque o conhecesse bem, imaginei três situações em que ele poderia ter protagonizado a sua filosofia de vida – “Quem ri por último, ri melhor”.
No entanto, e para a minha surpresa, ele sentia-se desforrado não porque negasse a um aluno mal-educado, e que o desrespeitou durante todo o ano, o ponto que faltava para não ser reprovado; não porque comunicassem sua promoção a coordenador, no exato momento em que um rival invejoso se aproximava; e não porque desse uma surra memorável em um certo chato que o desafiou ao tênis de mesa, e que jamais imaginara contra quem jogaria.
Na verdade, o gosto que sentia deveu-se a uma cena que presenciou dentro do ônibus, quando ia para o trabalho.
Naquela manhã, dizia ele, todos os passageiros já haviam percebido o mau humor e a impaciência do motorista.
Pouco se importando com o resto do mundo, ele reclamava em voz alta do baixo salário, das contas que não paravam de chegar, do trânsito que tinha que enfrentar todos os dias, e do precioso tempo que perdia por ser obrigado a esperar que uma longa fila entrasse no veículo.
É claro que todos os passageiros, longe de concordarem com essas reclamações, já não aguentavam mais tanta falta de educação, e comentavam entre si até quando isso continuaria. Mesmo assim, o inconformismo não ia além de seus assentos, uma vez que ninguém estava a fim de bater boca.
Em uma certa parada, porém, depois que duas pessoas entraram, seria a vez de um senhor de muita idade e que usava bengala.
Mas quando esse senhor pôs a mão no corrimão, foi imediatamente barrado por um gesto do motorista.
Em seguida, o gentleman disse para o idoso que pegasse um outro ônibus, pois estava com pressa e não ficaria esperando ele escalar tantos degraus.
Todos os passageiros viram e ouviram o que tinha acontecido. Mas antes que mais de uma voz se levantasse, incluindo a do meu amigo, o pobre senhor atendia a um pedido de licença de um homem que estava atrás dele.
O pobre senhor afastou-se, mas não foi embora, pois aquele homem também lhe pedira que aguardasse alguns minutinhos, o tempo necessário para ter um particular com o motorista.
Esse homem, enfatizou o meu amigo, devia medir uns dois metros, e era tão forte quanto alto.
Pois assim que entrou, agarrou o colarinho do motorista, que ficou sem reação, ergueu-o do assento, e disse “à voz melíflua”:
- “Eu vou ficar no ônibus até que esse senhor desça no ponto que ele quiser. Entendeu?!”
E o largou, sem se preocupar com a resposta.
A galera foi ao delírio! Foi uma gozação geral, com risadas, assobios e muitas, mas muitas mensagens de “paz e prosperidade” ao motorista.
Meu amigo fez questão de oferecer seu assento ao idoso, que agradeceu encabulado.
O gigante cumpriu o prometido. E acabou descendo (ovacionado!) no mesmo ponto do seu protegido, uma vez que seu destino já tinha passado.
E se a euforia ainda durou alguns minutos, as orelhas abaixadas e o rabinho entre as pernas do motorista permaneceriam até o meu amigo descer.
Agora, sejamos francos: Independentemente de sermos ou não adeptos da justiça com as próprias mãos – e eu não o sou –, confessa, amigo leitor, que você, assim como eu, ficamos bem sorridentes com essa cena, não ficamos?
Ora, como uma história puxa a outra, bastou ao meu amigo arrematar que estava com a alma lavada, para que eu retrucasse com uma outra passagem, de que acabei participando:
Certa vez, fui ao shopping, e tive que estacionar no último piso, o descoberto, pois, para variar, estava apinhado de carros. Por sorte, consegui avistar o que pareciam ser as últimas duas vagas que sobravam. E para lá me dirigi com certa presteza, pois, como é sabido, há muitos motoristas que tudo fazem para estacionar, mesmo que isso pressuponha trafegar pela contramão, em total desrespeito aos que percorrem o sentido indicado pelas setas.
Atrás de mim parara um Mercedes, que aguardava pacientemente, e com a seta ligada, que eu manobrasse o meu carro, como manda a boa convivência.
Estacionei, respeitando a marcação das vagas, e saí do carro.
Como vi tratar-se de um senhor de certa idade, resolvi me prevenir, e ofereci ajuda para que ele manobrasse sem pôr em risco ambas as latarias.
Ocorre que, tão logo ele engatou a primeira, um Homo Jeitinhoalensis Brasiliensis, que vinha na contramão, fechou os olhos à preferência do Mercedes e, sem o menor constrangimento, enfiou o seu carro naquela vaga.
Por óbvio que o dono do Mercedes reclamou.
No entanto, e para o nosso espanto, o usurpador saiu do carro, e, com a maior desfaçatez, disse estas palavras: “O mundo é dos espertos.” E saiu rindo.
Pois o dono do Mercedes não teve dúvida: Deu ré, parou, acelerou, e jogou o seu carro na traseira do veículo do espertinho, um Fiesta. E foi batendo sem dó nem piedade até conseguir empurrá-lo para fora da vaga.
O dono do Fiesta, um magricela, estava alucinado! E gritava, e gesticulava para que o outro parasse com as batidas.
O dono do Mercedes só parou quando tomou a vaga que era sua.
Ao sair do carro, o ofendido fixou os olhos no engraçadinho, e disse mansamente: “O mundo não é dos espertos. O mundo é dos ricos. Pode mandar a conta que eu pago.”
Pois sejamos francos mais uma vez: Mesmo relembrando que essa atitude não foi a mais correta, uma vez que até poderíamos pensar no crime de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, do Código Penal), um sorriso gostoso acabou escapando, não foi?
E a propósito, será que você, amigo leitor, também não se lembraria de uma cena antológica?