Cicatrizes cerebrais (à guisa de introdução)
Fotografias tiradas pelo autor do artigo em 2017, no Museu da Loucura, antigo Hospital Colônia, em Barbacena-MG.

Cicatrizes cerebrais (à guisa de introdução)

Não é sobre marcas deixadas por microcoágulos no cérebro. Mas é sobre sequelas. Há alguns anos, me perguntei quais impactos a depressão pode causar a longo prazo nas pessoas, especialmente quando nos graus moderado a severo. Li artigos científicos, conversei com especialistas e a conclusão é que quadros depressivos prolongados ou intensos podem deixar desde desconfigurações químicas de sinapses a lesões, nos casos mais graves e prolongados. Assim como pessoas que sobrevivem a danos cerebrais de causa mecânica (um projétil, um objeto contundente) podem apresentar comportamentos que não tinham antes da lesão, pessoas deprimidas geralmente relatam que não se sentem as mesmas - mesmo após a remissão da doença.

Após dois anos de pandemia e com a nova variante em ação - quando sonhávamos que estaríamos livres -, lembrei-me dessa questão.

No Brasil, foram tempos perturbadores, com milhares de mortos e a sensação vívida de estarmos numa nau à deriva. Entre amigos e conhecidos que se foram durante a segunda onda, parei de contar quando o número chegou a 15. Enquanto poderosos politizam a necessidade da vacina versus liberdade para morrer, milhões de brasileiros continuam há meses ou anos, em desemprego, que está no topo entre os gatilhos de depressão. Cientificamente se sabe que há uma correlação entre histórico familiar e predisposição para a doença, mas também se sabe que qualquer pessoa pode passar por pelo menos um episódio de depressão clínica na vida deflagrado por, por exemplo, morte do cônjuge ou filhos, morte dos pais, divórcio, perda do emprego, etc.

Neste exato momento, e possivelmente em decorrência da persistente situação imposta pela pandemia e a crise econômica que a antecede, pessoas qualificadas com experiência profissional esperam um oportunidade para fazer acontecer, mas muitas podem estar acometidas pelo mal biblicamente conhecido como "a peste que vagueia ao meio dia", ou o "demônio do meio-dia" da tradição monástica, que deu nome ao célebre livro de Andrew Salomon sobre a doença.

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Também me lembrei de um artigo que li na época em que fiz a pesquisa, em que um profissional de uma firma de recrutamento de executivos prolatava: "Não recomendo a contratação de um profissional com historico de depressão". Não lembro seu nome, mas tinha muita curiosidade: Será que sobreviveu à Covid-19? Foi ou está internado - sem poder receber visita de parentes e amigos durante a hospitalização? Foi intubado? Está vacinado? Perdeu algum ente querido? Está empregado? Ainda acha que alguém que teve depressão não deve ser contratado para uma vaga de emprego?

Recentemente, soube que há uma empresa em Minas Gerais em que psicólogos desenvolveram um teste para recrutamentos e avaliação de potencial, os famosos "assessment". A ferramenta promete, entre outra coisas, prever a possibilidade de alguém ter histórico de depressão, ou de vir a tê-la. Claro, assim como todos nós sabemos que tais testes prometem predizer o desempenho de um candidato que ainda sequer ocupou a função. Como se performance decorresse das respostas a perguntas pré-definidas e não da interação entre as competências e a motivação do indivíduo, a qualidade de suas relações com demais colaboradores e superiores, e as demais condições do ambiente de trabalho. Ah, claro... "o teste foi validado". Mas, ainda assim, soa a eugenia.

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Depois dos 45 anos, resolvi retomar um curso de Direito que larguei em 2011 quando ia para o oitavo semestre. Tenho pensado muito na interação entre ferramentas de gestão - metas, avaliação desempenho, pagamento de PLR, feedback, etc -, e como afetam aquilo que no mundo jurídico se chama a "honra interna", e que se chamada em outras áreas de "auto-estima" ou "auto-imagem". E também que há julgados que, sim, aceitam o argumento invocado por empregadores de que depressão é uma doença multifatorial, mas ponderam que o ambiente de trabalho não pode agravar ou contribuir para sua deflagração, sob pena de responder pelo dano causado, e assim há decisões que podem reconhecer quadros de depressão como doenças ocupacionais.

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"Burnout", um nome exótico para depressão aguda já é reconhecida como doença ocupacional que em bom português é "esgotamento", porque se esgotam todos os recursos intelectuais, emocionais e até físicos para lidar com a situação posta pelo trabalho. Algumas culturas preferem o eufemismo genérico "stress" - "fulano veio abaixo por causa de stress" é a fórmula secreta para dizer que entrou em depressão, talvez com quadros de ansiedade generalizada ou pânico.

Tenho pensado em formular como hipótese para conclusão do curso a possibilidade de configuração de dano moral coletivo decorrente de ferramentas de gestão, particularmente, a gestão de desempenho. A fala daquele recrutador, o teste que prevê depressão, o efeito de ferramentas de gestão e avaliação, os julgados que reconhecem con-causa nos casos em que se discute depressão como doença ocupacional, enfim, tudo me leva a crer que cabe muita responsabilidade na atuação dos gestores e, especialmente, dos profissionais de gestão de pessoas. Mas, especialmente, no contexto em que estamos vivendo, deveria haver mais espaço para compaixão.

Leandro Cunha

Especialista em Transmissão de Energia | Engenheiro de Dados & IA

3 a

Genial !

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